Não era alergia: ela teve diagnóstico errado por 23 anos e quase morreu
Bárbara Therrie
Colaboração para Vivabem
07/02/2024 04h05
Com problemas na pele desde bebê, Maria Zélia da Silva, 31 anos, foi diagnosticada com alergia alimentar por mais de duas décadas. Somente aos 23 ela descobriu o que tinha de verdade: psoríase pustulosa generalizada (PPG). Potencialmente grave, a doença provoca bolhas de pus no corpo, inchaço, vermelhidão e descamação, sintomas muitas vezes acompanhados de febre e indisposição geral. Maria Zélia foi internada três vezes e chegou a correr risco de morrer. A seguir, ela conta sua história:
"Minha mãe de criação conta que, desde bebê, eu tinha escamações no pescoço e no entorno da boca. O pediatra dizia que era alguma alergia alimentar relacionada ao leite. Durante a infância, as lesões iam e voltavam e deram uma pausa na adolescência.
Em 2011, aos 20 anos, pouco tempo depois de ter tido o meu primeiro filho, tive escamações no pescoço, nos pés e no couro cabeludo. A pedido do alergologista fiz um teste de alergia que apontou alergia a poeira.
O médico tratou meu caso como rinite e, como não tive melhora, parei o tratamento por conta própria.
Em 2014, minha mão esquerda começou a descamar e a ficar com manchas brancas, as lesões foram gradativamente se espalhando pelo corpo.
Minha pele ardia, coçava, doía e se formaram bolhas com pus (pústulas). Tive febre e inchaço no corpo.
Médico disse que era alergia a corante
Fui ao pronto-atendimento, o médico disse que era uma crise alérgica relacionada ao consumo de corantes e me orientou a cortar algumas coisas da alimentação, além de procurar uma dermatologista. Passei com a profissional, mas ela também tratou o meu caso como crise alérgica alimentar.
Com o tempo fui piorando, sofrendo muitos impactos e perdendo qualidade de vida.
Fui dispensada do trabalho porque vivia faltando devido às crises de dor, coceira e febre. Tive que desmamar meu segundo filho porque a pele do meu peito descamou. Não conseguia pegar os meninos no colo pois qualquer atrito com a pele me machucava.
Fui morar na casa da minha mãe, para ela me ajudar com as crianças e com as tarefas domésticas.
Trocava o lençol da cama duas vezes por dia porque ele ficava todo sujo e molhado de pus que saia das bolhas. As lesões tinham um odor desagradável, ninguém aguentava o cheiro.
Duas semanas sem tomar banho
Cheguei a ficar duas semanas sem tomar banho de chuveiro porque era torturante, chorava de dor.
Minha mãe me higienizava com água e pano limpo. Ficava sem roupa em casa, me cobria com canga ou lençol. Para sair, usava vestido ou saia de algodão, parei de usar calça jeans e roupas justas.
As pessoas perguntavam que doença eu tinha, mas ninguém sabia, nem os médicos
Cheguei a pensar que tinha câncer de pele, mas os sintomas não batiam com as pesquisas que eu fazia na internet. Vários amigos se afastaram de mim, acho que tinham medo de ser contagioso. Na rua ou nos consultórios as pessoas olhavam com cara de nojo.
Uma amiga da família viu o meu sofrimento e pagou uma consulta particular com uma das melhores dermatologistas da cidade onde moro.
Na hora que entrei na sala a médica disse que eu tinha psoríase, nunca tinha ouvido falar nessa doença. Ela me examinou e fez uma biópsia. Dois dias depois saiu o resultado: psoríase pustulosa generalizada (PPG) —saiba mais sobre a doença abaixo.
Com base no meu histórico, a médica explicou que provavelmente tenho psoríase em placas desde bebê, quando apresentei as primeiras alterações na pele. E depois desenvolvi a PPG, um tipo de psoríase rara e grave.
Como não tinha condições de pagar o tratamento particular com essa médica, voltei a passar com a dermatologista do convênio, mas ela não conhecia muito bem a PPG. Ela me receitou uma pomada manipulada e corticoide via oral, mas só piorei.
Internação e risco de morrer
Fui internada no dia 31 de dezembro de 2014 e fiquei 14 dias hospitalizada. Minha situação era grave, os médicos já tinham dado todas as medicações possíveis, mas meu corpo não estava respondendo, fiquei debilitada.
Eles disseram que eu poderia morrer a qualquer momento. Eu disse que se fosse para morrer que fosse em casa e não no hospital. Minha mãe assinou um termo e fui embora.
Dois dias depois minha cunhada marcou uma consulta com outro dermatologista, mas ele confirmou que meu quadro era grave e que eu corria risco de vida. Por orientação dele, fui para o Hospital de Clínicas da Unicamp, onde fui recebida por uma equipe especializada em psoríase.
Fiquei bastante debilitada, foram 64 dias internada. Entrei em uma fase rebelde, não queria mais fazer o tratamento, não comia direito, emagreci, passei a me rejeitar, não queria que ninguém me visse e ficasse perto de mim.
Tive que raspar o cabelo devido a uma inflamação no couro cabeludo. Enfrentei crises de estresse, ansiedade e um quadro depressivo. Perdi a vontade de viver. O apoio da minha família e de pessoas que oraram por mim foi muito importante no momento mais frágil e delicado da minha vida.
Aos poucos, a medicação foi fazendo efeito e as lesões foram diminuindo. Perdi a pele machucada e uma nova pele nasceu. Recebi alta em março, fiquei com sequela da PPG em três dedos da mão esquerda, que ficaram atrofiados e não fecham —fiz uma cirurgia de extensão dos tendões.
Doença estabilizou
Em 2015 a doença estabilizou, mas tive uma nova crise no ano seguinte e fiquei 60 dias no hospital. Neste período, desenvolvi a psoríase ungueal, todas as unhas dos dedos caíram e fui diagnosticada com dermatite atópica.
Após 2016, nunca mais tive nenhuma crise a ponto de precisar ser internada, ainda apresento manchas no corpo, não fico 100% livre das lesões, mas desde então a PPG está controlada.
Faço acompanhamento com dermatologista de três em três meses e com ortopedista duas vezes por ano. Atualmente, a base do meu tratamento é aplicar imunobiológico a cada 28 dias e passar pomada quando as lesões aparecem.
O processo com a PPG foi sofrido e doloroso, quase morri, mas Deus fez um milagre na minha vida. Hoje vivo normalmente, cuido da minha mãe, dos meus filhos, sou atuante na igreja, viajo, vou à praia, uso biquíni, não tenho mais vergonha das manchas no meu corpo.
Em nove anos, desde que recebi o diagnóstico, só conheci uma pessoa com PPG durante uma exposição sobre a doença de que participei. A condição é pouco falada e divulgada. Espero que com a minha história mais pessoas possam se informar e se conscientizar sobre ela."
Saiba mais sobre a PPG
1 - O que é psoríase pustulosa generalizada (PPG)?
É uma doença inflamatória da pele que evolui em surtos durante a vida do paciente, ou seja, há épocas em que a pele fica sem ou praticamente sem lesão, e outras em que surgem lesões pustulosas, segundo Ricardo Romiti, médico dermatologista, coordenador dos Ambulatórios de Psoríase, Tricologia e Colagenoses no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
As pústulas são pequenas bolhas repletas por pus que podem ser acompanhadas por vários sinais e sintomas como febre e fraqueza.
Os casos mais graves podem demandar internação hospitalar, às vezes até em Unidade de Terapia Intensiva pelo risco de o paciente evoluir para um choque e quadros de infecção generalizadas.
2 - A pessoa já nasce com PPG ou desenvolve ao longo da vida?
Existem várias alterações genéticas que podem ou não estar presentes nos indivíduos com PPG. A época de surgimento da doença é variável de pessoa para pessoa. Há casos em que ela pode aparecer na infância ou na adolescência, mas na maioria das vezes costuma ser na fase adulta.
Além disso, a PPG pode recorrer, isto é, se manifestar uma ou mais vezes por ano, como também há pacientes que têm um surto da doença, ela regride e nunca mais se manifesta. Por isso, é fundamental o acompanhamento com o dermatologista para combinar a melhor forma de se estabelecer o diagnóstico e o tratamento da doença, a fim de se evitar novas crises.
3 - Qual a causa e os fatores de risco para PPG?
A doença é multifatorial, não existe uma única causa para a PPG. Entre os fatores de risco podemos: citar casos familiares de psoríase associadas. Às vezes o próprio indivíduo com a PPG já tem um antecedente de psoríase em placas, que é a psoríase vulgar - a presença de placas vermelhas descamativas que acometem o cotovelo, joelho e couro cabeludo.
Em alguns pacientes a doença pode surgir associada ao uso de diferentes medicações. Também pode ser secundário a quadros infecciosos e quadros de estresse.
Em algumas situações a PPG é a manifestação isolada da doença, ou seja, não vem associada com nenhuma outra doença de pele. Ou ainda ela pode surgir de forma espontânea sem que seja possível identificar um fator causal.
4 - Quais os sinais e sintomas da PPG?
Surgimento de pústulas na pele acompanhados de vermelhidão (eritema generalizado), inchaço (edema) e ardência que surgem em um período de horas ou dias.
O quadro se espalha rapidamente pelo corpo e a pessoa pode apresentar febre, fraqueza, dor muscular, dor articular e queda do estado geral.
5 - Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico da PPG é realizado por meio de um exame clínico. O dermatologista pode avaliar a necessidade ou não de se realizar uma biópsia para identificar o tipo de inflamação e o diagnóstico diferencial com outras doenças de pele que também podem cursar com pústulas, eritema e edema.
6 - Que complicações/sequelas uma pessoa com PPG pode ter?
O surto de PPG muitas vezes é uma emergência. O paciente necessita ser atendido de forma rápida e eficiente para estabelecer o diagnóstico acertado, avaliar a gravidade do quadro e se ele precisará ou não ser internado.
Se não diagnosticado e tratado adequadamente, o surto pustuloso pode ser acompanhado por uma série de alterações com alto índice de morbidade que levam a consequências como a ocorrência de choque e infecções generalizadas que demandam uma pronta-intervenção.
Em casos mais graves, a pessoa pode morrer.
7 - Quais os tratamentos para a PPG?
O tratamento será estabelecido de acordo com o quadro clínico do paciente, idade, a intensidade dos sinais e sintomas, se a pessoa tem alguma comorbidade (como diabetes e hipertensão), se é uma mulher que deseja engravidar, se é uma criança. Tudo isso deve ser levado em consideração, mas em geral as formas leves são manejadas com cremes e pomadas anti-inflamatórios e hidratantes.
Formas graves podem ser tratadas com medicações imunossupressoras, que combatem a inflamação de forma abrangente; ou imunobiológicas, que atuam especificamente sobre os mecanismos que causam a doença.
Em pacientes que têm a psoríase em placas associada à PPG é indicado um tratamento que contemple as duas manifestações para que a pessoa não tenha as lesões de psoríase vulgar e não evolua para um surto de PPG.
8 - A doença tem cura?
Não tem cura, mas com o tratamento adequado é possível que durante o acompanhamento a pessoa não volte a ter surtos da doença e haja uma regressão do quadro agudo.
No Brasil, estima-se que a PPG acometa cerca de 9 casos por milhão de habitantes, segundo dados já publicados na literatura médica.
Fonte: Ricardo Romiti, médico dermatologista, coordenador dos Ambulatórios de Psoríase, Tricologia e Colagenoses no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.