Com deficiência motora, ela correu 25 km para comemorar 25 anos de idade

Em 6 de janeiro, Natalia Andronis decidiu correr 25 km para comemorar seus 25 anos de idade, completados dois dias depois. Para quem já fez duas meias maratonas (são 21 km), seria tranquilo, não fosse uma queda na altura do quilômetro 12.

Joelho e cotovelo machucados, ela se levantou para finalizar o percurso com alegria.

Quem viu Natalia no passado talvez não a imaginaria hoje correndo longas distâncias. Até o ensino médio, ela era a última a ser escolhida nas brincadeiras e atividades físicas da escola, era chamada de "torta", sofria preconceito.

Devido a um acidente que ocorreu quando ainda estava no ventre da mãe, ela desenvolveu hidrocefalia e teve a mobilidade do lado esquerdo do corpo prejudicada.

Nada que a impedisse de, literalmente, correr atrás de um sonho, que é fazer da corrida o seu trabalho, e hoje ter como treinador um preparador físico do Comitê Paralímpico Brasileiro.

Cirurgias antes de nascer

Era 3 de outubro de 1998. A família de Natalia seguia para São Sebastião, no litoral paulista, pela Rodovia dos Tamoios quando um veículo bateu no carro em que estavam. O impacto maior foi na traseira, onde estavam a mãe grávida dela e a irmã de 3 anos.

A menina dormia com a cabeça apoiada na porta do carro, sofreu traumatismo craniano e morreu no local. Natalia, que era um bebê de cinco meses na barriga da mãe, teve hemorragia cerebral que culminou em hidrocefalia.

A condição é caracterizada pelo acúmulo excessivo de líquor, um líquido produzido em cavidades no interior do cérebro. Ele protege o sistema nervoso central, mas, em excesso, torna-se um problema.

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No caso dela, a hemorragia interrompeu a circulação do líquido, aumentando a pressão dentro do órgão. Era preciso agir rapidamente.

"Pensamos com a equipe de obstetrícia e, guiados por ultrassom, fizemos uma punção na moleira da Natalia, dentro do útero", explica o neurocirurgião Sérgio Cavalheiro, chefe do serviço de neurocirurgia perinatal do Hospital e Maternidade Santa Joana (SP).

O procedimento é feito por meio de uma perfuração que atravessa o abdome da mãe, o útero e a moleira do bebê, região sem cobertura óssea. Um pequeno cano inserido ali aspira o líquido em excesso. "É rápido e tranquilo", diz o médico que atendeu Natalia.

Embora o feto produza menos líquor, uma semana depois já havia um acúmulo considerável e a operação foi realizada de novo. Em uma época que se falava pouco sobre cirurgia fetal —o primeiro caso de Cavalheiro foi em 1988—, o tratamento foi bem-sucedido.

A mãe de Natalia teve de tomar medicamentos para acelerar a maturidade do pulmão da filha e no oitavo mês de gestação ela deu à luz. Com três dias de vida, a pequena foi submetida a um procedimento chamado derivação ventrículo-peritoneal a fim de drenar o líquor excedente.

  • A técnica consiste em inserir um fino cateter no interior da cavidade cerebral, conectado a uma válvula que regula a quantidade de líquido no cérebro.
  • A outra ponta do tubo foi para o peritônio, membrana que reveste a cavidade abdominal, onde o líquor foi absorvido.
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Caso grave

Há pessoas que já nascem com hidrocefalia, mas há casos em que a condição é adquirida, como no de Natalia. Pode ser causada por:

  • Acidente vascular cerebral;
  • Hemorragias;
  • Infecções do sistema nervoso central;
  • Traumatismo craniano;
  • Tumores cerebrais.

Entre as consequências da hidrocefalia estão problemas da fala, da memória e da coordenação motora. Cavalheiro diz que o caso de Natalia era "extremamente grave" com uma previsão de desfecho igualmente ruim.

Mas ao acompanhá-la nos tratamentos com fisioterapia e hidroterapia, por exemplo, viu-se um resultado bastante positivo. Notório, o neurocirurgião compartilha o caso dela em congressos pelo mundo, com vídeos que demonstram o desenvolvimento motor da jovem.

"Como isso aconteceu precocemente, contamos com a plasticidade cerebral dela. Outras áreas não destruídas pela hemorragia assumiram a área da hemorragia e ela teve um desenvolvimento intelectual fantástico", comenta.

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Recentemente, médico e paciente se reencontraram depois de muitos anos. Cavalheiro se surpreendeu ao saber que a jovem tornou-se corredora. Agora, vai atualizar as aulas que dá pelo mundo com vídeos dela em treinos e provas de corrida.

Vida nos esportes

Dos seis meses aos 7 anos de idade, Natalia fez hidroterapia e aulas de natação para desenvolver a capacidade motora desde cedo. Depois, experimentou ginástica rítmica, balé, capoeira, judô e musculação.

25 km foi a distância mais longa que Natalia correu até agora
25 km foi a distância mais longa que Natalia correu até agora Imagem: Daiany Oliveira

"Sempre fui muito independente, sempre gostei de fazer as coisas, me virar mesmo", diz. Junto com os exercícios físicos, ela tinha fisioterapia e fonoaudiologia como alicerce do tratamento.

Entre 2015 e 2021, Natalia viveu aquela clássica ida e vinda da academia, não conseguia manter a constância devido aos horários de trabalho e estudo. Quando entrou para uma plataforma online de treinos, tudo mudou.

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Ela fez amizades e uma delas a incentivou a correr. A jovem duvidou que conseguiria, mas tentou. E gostou. Em junho de 2022, já estava sob acompanhamento de uma assessoria de corrida.

'Pensei que não conseguiria nunca'

No primeiro mês com a assessoria, Natalia participou de um desafio para correr 6 km. "Quando vi que não conseguia correr nem um quilômetro seguido, pensei que não ia conseguir fazer nunca", lembra.

Mas foi o incentivo e apoio das pessoas ao redor —o treinador, os demais corredores— que a fizeram ir adiante. Ela também aceitou se desafiar e em julho do ano passado fez sua primeira meia maratona. Depois dessa prova, ela se engajou mais.

"Minha chave virou, pensei que a corrida é sensacional, transforma. O sentimento de completar a meia é indescritível", diz. Gostou tanto que correu outros 21 km depois de três meses.

E nem ela esperava por isso. "Nunca imaginei que a menina que nem gostava de fazer esteira, ia obrigada, hoje dá de tudo por uma esteira e um treino de corrida", brinca.

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A corrida também transformou os hábitos de Natalia. Ela substituiu as saídas noturnas, madrugada adentro, nas sextas e sábados pelo despertar matinal nos fins de semana para treinar. Reduziu o consumo de bebida alcoólica e passou a cuidar melhor da alimentação.

Sem adaptações

O fortalecimento muscular é essencial para quem pratica corrida. Músculos fortes tornam a corrida leve e ajudam a evitar lesões. Com a deficiência motora, Natalia busca fazer os exercícios de forma igual dos dois lados do corpo.

Se pega 5 kg na elevação lateral com o braço direito, tenta manter o mesmo peso no esquerdo "para não deixar mais fácil". Atualmente, nos treinos de corrida, o instrutor dela incentiva: "usa a perna esquerda!".

Viajar o mundo correndo

Natalia quer viver da corrida. "Meu maior sonho é conhecer a Grécia e correr uma maratona lá", diz. Mas por que a Grécia?

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Além de ser o país onde, segundo a lenda, surgiu a maratona, é onde estão as raízes paternas dela. O pai, falecido em 2012, é filho de gregos e o primeiro da família a nascer no Brasil.

"Ele nasceu no Bom Retiro e sempre foi conhecido como grego. Eu só tenho o sobrenome dele e sempre amei", comenta. Foi por isso também que ela escolheu o nome de usuário @corregrega para o Instagram.

E foi nessa rede social que viralizou um vídeo do desafio dos 25 km, em que ela conta parte de sua história. As imagens chegaram ao treinador de paratletismo Henrique Gavini, que hoje acompanha a jovem nesse novo caminho que a corrida lhe apresentou.

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