'Meu pai é transfóbico, mas foi meu anestesista na mastectomia'
Gabriele Maciel
Colaboração para o VivaBem
16/02/2024 04h00
Dois acontecimentos foram cruciais para que o jovem Ariel Maria Nogueira Bona Lopes, 22, pudesse se reconhecer no espelho. O primeiro envolveu trâmites burocráticos no cartório para retificar sua documentação. O segundo demandou não só as economias que foram guardadas durante seis anos para fazer mastectomia, mas principalmente confrontar as expectativas que recaíam sobre ele desde o seu nascimento. Especialmente com o pai, o estudante de direito precisou persistir para ser aceito como tal, um homem trans. Ao VivaBem, o jovem de São José dos Campos (SP) conta como foi o processo em busca do seu verdadeiro eu.
"Desde criança, eu me achava diferente e não me encaixava nem no grupo dos meninos nem no das meninas. Quando eu ia brincar com minhas amigas, por exemplo, eu pedia para ser o pai da historinha. Em casa, eu estava sempre sem camisa, igual ao meu pai, e não curtia usar vestido ou saia.
Por volta dos 8 anos, passei a dizer na escola que queria ser menino, aí a diretora chamou meus pais para uma conversa. Ela disse que eles precisavam me levar ao psiquiatra para ser curado. A reação dos meus pais foi de indignação, mas não me lembro de termos tido alguma conversa sobre isso.
Quando eu entrei na puberdade, as coisas começaram a ficar mais difíceis, porque as mudanças corporais me mostravam que aquele era o meu destino, e isso me angustiava. Nesse período, minha mãe tentou me adequar, ela queria compartilhar as coisas do universo feminino comigo. Por dois anos, eu tentei: usava minhas roupas de um jeito mais feminino e até deixei o cabelo crescer. Mas, aos 14, um livro e um documentário me trouxeram de volta para quem eu era de verdade, e aí ficou difícil me desvencilhar.
Viagem solitária
Em 'Viagem Solitária', o escritor João Nery, que é considerado o primeiro transexual masculino do Brasil, narra sua história de autoafirmação. Fiquei especialmente tocado pelo capítulo em que ele descreve a experiência com a cirurgia de redesignação sexual.
Já com o documentário 'Mr. Angel', eu pensei: 'Você é isso, mas você não pode querer ser assim agora, você só tem 14 anos e sua vida vai ser um inferno'. Temia principalmente a reação do meu pai, pois suas opiniões frequentemente refletiam preconceitos contra as pessoas trans. Mas, em segredo, eu comecei a me planejar e busquei na internet informações sobre transexualidade, como fazer a cirurgia de readequação, quanto ela custava etc.
Também passei a guardar todo o dinheiro que eu recebia em aniversários, mesadas. Como eu sentia mais abertura da minha mãe, de vez em quando eu mandava vídeos sobre transexualidade para ela. Ela entendeu as indiretas e me chamou para conversar.
Eu tinha 16 anos quando me assumi. Ela ficou bastante receosa sobre o meu futuro, teve medo de eu sofrer violências por ser quem eu era. Também falei com alguns amigos e pedi para que eles passassem a me chamar pelo meu sobrenome, eu seria somente Bona. Muitos deles se afastaram, achavam que eu estava de mimimi.
Na escola, alguns professores não acataram meu pedido e continuaram me chamando pelo meu nome de nascimento. Aquilo me machucava demais e eu entrei em depressão profunda. Era complicado porque eu era tolhido até mesmo pela minha mãe, com quem eu já tinha me entendido. Ela quis que eu usasse um vestido na minha festa de formatura do colegial, eu me neguei e acabei não indo.
Relação com o pai
Minha relação com meu pai era boa na infância e na adolescência. Ele não falava quase nada do meu jeito. Acho que ele acreditava que eu era lésbica, e não um homem trans. Quando me via assistir a programas de drags na televisão, ele acabava soltando umas falas transfóbicas e preconceituosas, mas isso nunca foi um assunto entre a gente.
Quando eu passei na faculdade e me mudei para São Paulo, contei a ele sobre minha decisão de retificar meu nome e ele reagiu mal. O problema não era a escolha do nome, até porque eu escolhi um que transita bem tanto no masculino quanto no feminino, mas acho que nesse momento ficou claro para ele quem eu era, um homem trans.
Ele não foi agressivo, nem nada, mas simplesmente não me chamava de Ariel. No começo, eu relevava, porque só o via a cada 15 dias mais ou menos. Mas durante a pandemia, quando eu voltei a morar com ele, nossa relação ficou difícil e eu precisei ameaçar prestar queixa de transfobia. Só então ele começou a me chamar pelo nome de Ariel. Entendo que seja difícil para ele, mas meu avô, com seus 89 anos, nunca errou o nome que eu escolhi.
A cirurgia
Meus pais são médicos e teriam condições de bancar a cirurgia de modificação do tórax, mas eu sabia que, pelas convicções deles, isso não iria acontecer. Então economizei tudo que pude, fiz rifa e trabalhei em coisas aleatórias.
Em 2022, eu já tinha conseguido o dinheiro para a cirurgia e minha mãe se dispôs a pagar pela internação, remédios e compressas. Meu pai é médico anestesista e eu quis convidá-lo para estar comigo na cirurgia.
Foi uma alegria muito grande ele ter topado ser meu anestesista. Apesar de isso não ter mudado o que ele pensa sobre transexuais, a cirurgia o fez perceber que, se ele me quisesse presente em sua vida, precisava me aceitar daquele jeito.
A recuperação da cirurgia foi bem tranquila e a sensação da primeira vez que fiquei sem camisa foi indescritível. Antes, eu tinha dificuldade até para dormir por causa do volume, não usava camisetas que pudessem destacar meu tórax e vivia encurvado para disfarçar. Hoje eu encho o peito de ar e mesmo em dias frios, gosto de andar sem camisa."
Perspectiva de futuro
Após passar pela cirurgia, Bona começou a fazer o tratamento com testosterona. A mãe dele, que é endocrinologista, é quem aplica as doses do hormônio. "Esse tratamento costuma ser para o resto da vida, mas eu estou vivendo o hoje e o máximo de planejamento que faço é sobre meus estudos. Quero fazer mestrado e continuar minhas pesquisas sobre os direitos da população trans", declara o jovem.
Como funciona o tratamento hormonal
Luciana Barros de Oliveira, que é professora na UFBA e coordena o Laboratório Transexualizador do Hupes-UFBA (Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia), diz que o uso do hormônio é essencial no processo de transição de gênero para pessoas transexuais.
"Normalmente, o paciente utiliza testosterona por pelo menos um ano antes da cirurgia, pois sua ação na redução das glândulas mamárias influencia diretamente na extensão da intervenção cirúrgica, resultando em uma estética aprimorada", diz.
De acordo com Oliveira, a hormonização também promove a adequação de estruturas musculares e ósseas, redistribuindo a gordura no corpo e aumentando a massa muscular. "Com o tratamento, as características sexuais secundárias também surgem, então a barba cresce, a voz muda de tom e fica mais grave e ocorre a suspensão do sangramento menstrual", esclarece.
O que é a toracoplastia
A cirurgiã plástica Maíra Marques, que é especialista em contorno corporal avançado pela Faculdade de Medicina da USP, foi responsável pela toracoplastia em Ariel Bona e explica como ela acontece: "É uma cirurgia para deixar o tórax dos homens trans mais masculinos, ou seja, nós retiramos a mama, reduzimos a aréola e a reposicionamos para obter uma conformação mais masculina no corpo do paciente".
Além dos aspectos físicos, Marques afirma que a cirurgia melhora a relação do paciente com o próprio corpo e facilita sua identificação de gênero em ambientes sociais.