Febre do suco: uso de anabolizantes cresce e hormônios vêm até do Paraguai
Numa academia da zona leste de São Paulo, fora do horário de funcionamento, o instrutor de musculação Liam*, 44, espeta a seringa em um frasco, puxa um líquido oleoso e aplica a agulha em sua pele. A substância, conhecida como Durateston, trata-se de um medicamento com derivados de testosterona, um esteroide anabolizante. Liam usa produtos do tipo desde os 17 anos.
Antes de chegar às mãos do instrutor, o anabolizante viajou por cerca de 1.300 km. Foi adquirido supostamente da empresa farmacêutica Landerlan, com sede em Lambaré, no Paraguai. "Uso anabolizantes regularmente desde 2001, só compro deles por meio de um contato", revela Liam à reportagem.
Em abril de 2023, o CFM (Conselho Federal de Medicina) proibiu que médicos prescrevam esteroides para fins estéticos e esportivos. A venda desses remédios é proibida sem receita médica no Brasil.
A suposta empresa paraguaia alega, na apresentação dos produtos em um site com domínio brasileiro, que são apenas para consulta. Além disso, um informativo alerta que os fármacos da galeria de compras não têm registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas é possível encomendar qualquer um deles na própria página.
Ao lado de cada um dos produtos há um botão, que redireciona o cliente a um vendedor via WhatsApp. No teste da reportagem, o representante, que tinha o DDD de São Paulo, informou não ser preciso receita médica e enviou rapidamente uma lista com dezenas de hormônios, alguns deles veterinários de uso restrito.
Entretanto, diversas reclamações no Reclame Aqui acusam a suposta empresa paraguaia de não entregar o medicamento e alegam que o site com domínio brasileiro, trata-se na verdade de um site falso e não da marca original.
O site com domínio paraguaio não apresenta o valor dos produtos, como o brasileiro e fornece telefones e e-mails para contato sem direcionar para aplicativos de mensagens ou vendedores, mas oferece a mesma gama de medicamentos, incluindo os de uso veterinário.
Outros sites com o nome da marca e domínio brasileiro oferecem os produtos e seguem a mesma metodologia: enviar os interessados a uma conversa privada via WhatsApp.
Aumento das vendas legais e apreensões ilegais
De acordo com a Anvisa, houve um aumento de 45% na venda dos três principais anabolizantes industrializados (testosterona, cipionato de testosterona e undecilato de testosterona).
O levantamento usa a comparação entre os anos de 2021 e 2019, de acordo com apuração e reportagem da Folha de S.Paulo. O compilado desconsiderou o ano de 2020, por conta da pandemia de covid-19, em que houve fechamento de academias e diminuição no agendamento de consultas médicas.
Em 2019, o BPFRON (Batalhão de Polícia de Fronteira), responsável por monitorar a fronteira do Brasil com o Paraguai, em Foz do Iguaçu, fez uma apreensão recorde, com 126.082 unidades de medicamentos. O batalhão também acompanhou uma queda nas apreensões em 2020, com 8.339 unidades, e com relativo aumento nos anos consecutivos. Em 2023, foram 47.999, de acordo com dados enviados para VivaBem.
"Entre os medicamentos, estão remédios para disfunção sexual e abortivos, mas a grande maioria são anabolizantes", diz Erioberto Joeckel, tenente do Comando do Pelotão de Operações com Cães e chefe da comunicação social do BPFRON.
"Alguns transportadores podem estar agindo por conta própria, transportando drogas ou outros produtos ilícitos para ganho pessoal, enquanto outros podem estar ligados a organizações criminosas mais amplas. Organizações criminosas muitas vezes utilizam várias pessoas para transportar e distribuir substâncias ilícitas como parte de suas operações", diz o tenente.
Crime e anabolizante paraguaio sem registro
Quem compra e vende hormônios não registrados na Anvisa comete crime, que pode ser tipificado como contrabando de medicamentos, de acordo com o advogado Fabrício Sicchierolli Posocco, da Posocco Advogados.
"Quem vende anabolizantes não reconhecidos na Anvisa comete o crime do 273, parágrafo 1 do código penal. A depender da quantidade, pode representar contrabando/descaminho. Não tendo a droga anabolizante registro na Anvisa, gera o crime de importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância sanitária, com pena de um a três anos [de prisão]", explica Posocco.
Posocco afirma que muitos defendem que a venda desses medicamentos sem receita se configura apenas como uma infração de ordem administrativa e que a punição não seria grave a ponto de ensejar uma prisão. Mas a situação pode ser passível de crime grave, podendo ser considerada crime hediondo, caso exista uma manipulação dessas substâncias e adulteração das mesmas. Neste caso, a punição é de até 15 anos de prisão.
"Pode até mesmo ser tráfico de substâncias ilícitas/entorpecentes, equiparando-se ao tráfico de drogas, cuja pena também pode chegar até 15 anos", diz Posocco.
Para Marcelo Carita Correra, mestre em direito penal pela PUC-SP, apesar da declaração online conter alertas sobre a inexistência de registro no Brasil e do caráter meramente informativo dos valores e dados médicos expostos, não afasta a configuração do crime, já que, conforme apurado na reportagem, o site que se apresenta como uma marca paraguaia realiza a venda direta no país.
"Boom" do anabolizante entre o mercado legal o ilegal
Apelidados como "danones", "venenos" ou "suco" —este último, um jargão popularizado pelo influenciador Rodrigo Góes—, os hormônios sintéticos dominam o assunto em mesas de podcasts sobre musculação e o conteúdo de diversos reels e vídeos no TikTok.
Mas o uso por praticantes de musculação não é novidade. Há relatos de que começou entre o final da década de 1940 e começo de 1950. No livro "Designing Resistance Training Programs", os autores citam que, nos Jogos Olímpicos de 1964, os esteroides anabolizantes estavam sendo usados por quase todos os atletas dos esportes de força muscular.
Ao longo dos anos, o uso se tornou popular. Mais recentemente, em 2017, o funk "Quer Tomar Bomba" era parte do cenário em algumas academias de bairro e amplamente conhecido pelos mais assíduos do esporte.
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Para ajudar, nos últimos anos, a musculação entrou em um cenário de ascensão. O fisiculturista brasileiro Ramon Dino, que já admitiu uso de anabolizantes [prática comum na modalidade] e ficou em 2º lugar no Mr. Olympia 23, campeonato mais importante da categoria, reúne 5,7 mi de seguidores apenas no Instagram.
O interesse do público se reflete no mercado fitness, que movimenta 12 bilhões por ano. São 29.100 centros de atividades esportivas no Brasil, que só perde em números para os EUA, que tem 41.300, de acordo com dados do Panorama Setorial Fitness Brasil de 2021.
As academias de rede trouxeram comodidade e também mais pessoas ao mundo da musculação. Em conjunto, cresce também o interesse por um caminho aparentemente mais rápido: o esteroide.
A busca por anabolizantes se divide em dois caminhos. Em um deles, os hormônios são adquiridos sem registro na Anvisa. São os apelidados pelos usuários como undergrounds, como os administrados por Liam. Entre os diversos riscos, podem estar a superdosagem e a falta de respaldo. "Já comprei falsos, você percebe quando não bate, não ganha força. Mas troquei o contato", conta Liam.
Mas há quem prefira o acompanhamento médico. Apesar de o CFM proibir o uso para fins estéticos, receitar hormônios não é crime, e a avaliação médica e os motivos por trás da indicação da receita ficam no sigilo entre profissional e paciente. É o caso do também médico Yuri*, 35, que buscou essa alternativa e se consultou com um nutrólogo após nove meses de treino.
"Ouvindo alguns amigos falando a respeito da medicação, fiquei curioso para experimentar, já que eu tinha muita dificuldade para alcançar meus objetivos na academia. Passei no nutrólogo, que desenvolveu um plano alimentar e eu pedi prescrição hormonal. Ele receitou oxandrolona, que deveria tomar a cada oito horas por 90 dias", conta Yuri.
"Depois que acabou, eu me autorreceitei e tomei por mais algum tempo. Senti uma pequena diferença no ganho de massa magra. Não tive nenhum efeito colateral, mas optei por parar por medo de alguma reação adversa", continua.
O funcionário público Milos*, 30, também optou pelo acompanhamento médico, mas o fez apenas por algum tempo. "Usei três meses recomendado pelo médico, pois minha testosterona estava baixa pela minha idade. Depois, me rendi ao underground, comprava e eu mesmo aplicava em casa", conta.
Assumindo o risco pelo shape
Para a pesquisadora de masculinidades Helen Barbosa dos Santos, pós-doutoranda em psicologia no Grupo de Pesquisa em Preconceito, Vulnerabilidade e Processos Psicossociais da PUC-RS, o uso de anabolizantes traz a ideia de masculinidades estritamente amparadas no estatuto biológico, onde prevalece o modelo de "homem de verdade" e "mulher de verdade" na inscrição do corpo ideal.
"Nesses grupos há uma supervalorização de expressões pela força, crescimento dos músculos. É uma ilusão perigosa de que certos corpos musculosos e fortes estariam associados à saúde de uma suposta natureza que vem com o sujeito, de uma hipermasculinidade natural", diz Santos.
Entre os riscos de tomar anabolizantes estão:
- infertilidade;
- acne;
- ginecomastia;
- câncer;
- aumento da próstata;
- diminuição ou parada total da produção hormonal;
- impotência e queda na libido após interromper o uso.
Ainda assim, o ganho de massa muscular e força atrai quem escolhe fazer uso dos hormônios por estética.
Liam nunca fez exames de check-up, mas diz já ter sentido enjoos e ter quadros pressão alta, enquanto faz uso de hormônios. "Meus pelos corporais aumentaram muito e também tenho mais acnes. Uma amiga que também usa teve um aumento muito grande do clitóris", conta.
O influenciador Marcelo Mendes, 36, faz musculação há 14 anos e decidiu iniciar o uso de hormônios com acompanhamento médico nos últimos quatro anos. "Entendi que cheguei numa maturidade do shape que não tinha mais margem para evoluir, dentro do potencial do meu corpo e genética. Como amante do esporte, queria um pouco mais. Optei por fazer isso depois de a minha mulher ter engravidado. Você assume que está se expondo ao risco em troca de uma melhora da sua performance", conta.
Os últimos exames de Marcelo apontaram que seu eixo hormonal está zerado, isso significa que ele não produz mais testosterona naturalmente. "Se eu parar de tomar hormônio sintético, preciso fazer uma terapia", diz.
O conteúdo dele nas redes sociais é sobre o uso de anabolizantes e musculação de forma geral, com base em sua experiência pessoal. Ele tenta apresentar os riscos do uso e reúne quase 400 mil seguidores entre Instagram e TikTok.
"Tomo muito cuidado com o que posto, não quero estimular o uso, mas já recebi propostas de laboratórios clandestinos para que eu anunciasse o link de venda de anabolizantes deles. Não aceitei, mas muitos influenciadores da área aceitam e vendem isso", conta.
A ilusão da "bomba" pelo shape
O médico e criador de conteúdo digital Paulo Muzy é conhecido na internet por comentar sobre musculação e inclusive tirar dúvidas de seguidores sobre o uso de esteroides.
Ele explica que os hormônios aumentam a capacidade de recuperação muscular e funcionam como uma forma estimulante do sistema nervoso central devido a um aumento de agressividade e iniciativa, bem como de percepção de satisfação, que acaba diminuindo a sensação de desconforto, por exemplo, quando fazemos exercícios. No entanto, alerta para os efeitos colaterais.
"O abuso sempre leva a danos e estes não são possíveis de serem evitados, ainda que possam ser mitigados. O corpo humano possui receptores para hormônios masculinos e femininos, portanto quando falamos de riscos, são para o organismo inteiro. Contudo, acredito que os piores riscos são para o sistema nervoso central e aparelho cardiovascular", explica.
O médico diz que, para ter o corpo desenvolvido, ele não vê como única saída normalizar o uso de esteroides para toda e qualquer pessoa. "Há milhares de pessoas que me procuram justamente porque usaram esteroides com tal objetivo e só tiveram efeitos colaterais. Achar um esporte e enquadrar a ele o uso aceito de esteroides anabolizantes não faz sentido algum. O caminho é o contrário: estimular o esporte sem o uso de esteroides."
Andréa Oshiro, endocrinologista pela UERJ, também trata muitos pacientes que abusaram dos esteroides. "Há aqueles que chegam na consulta com o discurso de querer usar anabolizantes, mas com acompanhamento. Quase todos com o mesmo propósito: melhorar o shape", diz a médica.
"Infelizmente, tem surgido cada vez mais casos em que são prescritos manipulados contendo esteroides, e o paciente não tinha consciência de que estava em uso da substância. Em um dos casos, uma paciente aparentemente saudável desenvolveu arritmia cardíaca", conta.
*Nomes alterados a pedido dos entrevistados.
Outras fontes consultadas: Daniel Edde, ortopedista, especialista em dor e medicina do esporte; José Marcelo Natividade, endocrinologista, metabologista, com especialidade em nutrologia.
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