'Nunca vi as estrelas': artista com 10% de visão ilustra livros infantis
Paul Castle é um artista canadense que, junto com seu marido, Matthew Castle, acumula milhões de seguidores no TikTok e em outras redes sociais. Na pandemia, ele decidiu se dedicar a um sonho de infância: ilustrou e escreveu dois livros infantis. Só tem um detalhe importante nesta história: ele é praticamente cego.
Paul foi diagnosticado na adolescência com retinose pigmentar, uma doença genética rara, que afeta uma em cada quatro mil pessoas no mundo. Mas ele e o marido não deixam que esse seja um assunto pesado em suas vidas. Nos diversos vídeos que compartilham nas redes sociais, há pegadinhas e piadas com a falta de visão.
"Quando Matthew fez uma pegadinha comigo pela primeira vez fiquei tão feliz. Sempre me preocupei com a bagagem que a minha doença poderia trazer para um relacionamento. Foi a primeira vez na minha vida que vi que poderíamos enfrentar minha deficiência com outros olhos", disse em entrevista exclusiva a VivaBem.
E olha que o próprio Matthew admite que se viu em meio a uma encruzilhada quando percebeu que estava gostando de alguém com uma deficiência tão séria quanto a de Paul.
Não sabia como a falta de visão poderia impactar nossas vidas. Meu pai me deu um conselho ótimo: a gente pode estar bem hoje, mas sofrer um acidente e passar a ter necessidades de cuidados e uma deficiência amanhã. Isso faria com que eu o deixasse? Matthew Castle
Bom, claramente a resposta foi não.
Atualmente, o casal vive em Seattle (EUA) com o cão-guia Mr Maple. À reportagem, Paul conta sua história:
"Nasci com retinose pigmentar e os sintomas foram aparecendo aos poucos, em momentos aleatórios da minha vida. Para alguns, essa perda de visão rola bem tarde. Para mim, não. Comecei a perder um pouco da minha visão quando ainda era uma criança, mas ninguém da minha família sabia que eu tinha a doença —nem eu.
Nasci com alguns sintomas. Por exemplo, perdi minha visão noturna muito cedo. Mesmo quando ainda era criança, não conseguia ver as estrelas no céu. Nunca tive essa imagem. Mas realmente percebi que tinha um problema aos 16 anos, quando fui aprender a dirigir.
Sofri um acidente gravíssimo e quase morri quando estava dirigindo à noite pela primeira vez. Tinha a visão na parte central dos olhos, mas a minha periférica estava muito prejudicada. Além disso, a retinose pigmentar afeta muito a visão noturna. Só então descobri que o que tinha era uma doença e tinha nome.
Diagnóstico e desafios
Receber o diagnóstico foi um grande alívio para mim, pois comecei a entender as minhas dificuldades. Em algum momento posso ter questionado porque aquilo estava acontecendo comigo, mas passou rápido. Todo mundo tem problemas com os quais precisa lidar na vida. Esse é o meu obstáculo e consegui torná-lo meu ponto forte.
Sou muito apaixonado por arte desde criança e não ia deixar esse diagnóstico me parar. Continuei pintando e ilustrando, mesmo com as dificuldades que tinha de visão. Aos 20 anos, estava vendendo minha arte em feiras universitárias. Nunca parei de criar.
Nessas ocasiões sabia que, além da arte, estava vendendo um pouco da minha história. Por isso, fiz pequenos cartões que contavam sobre minha doença e minhas dificuldades. Sabia que isso tinha valor agregado ao meu trabalho.
Sei que em algum momento vou perder completamente minha visão. Então tenho uma lista de coisas que ainda quero ver enquanto consigo. Atualmente, minha visão é tubular: é como se eu enxergasse por um canudo, apenas em um pequeno ponto. Tudo ao redor é granulado.
Eu e meu marido estamos falando muito sobre fazer uma viagem para a Tanzânia. Quero conseguir ver o máximo de coisas que posso enquanto tenho visão. Apesar de ter amigos completamente cegos que viajam muito e me encorajam dizendo que depois as experiências também serão boas.
Só porque você não tem visão não quer dizer que não pode aproveitar férias e viagens. O Brasil, por exemplo, é um país que gostaria de visitar enquanto ainda vejo.
Amor inspirou os livros
Conheci meu marido em um aplicativo de relacionamento. Não dizia em meu perfil que era cego, mas ele descobriu fuçando meu Instagram antes de eu ter a oportunidade de contar —não era um segredo.
Nosso relacionamento foi a inspiração para que eu escrevesse os livros infantis "The Pengrooms" (um trocadilho que, em português, significa Noivos Pinguins). Em 2019, Matthew me pediu em casamento e eu queria incluir uma foto nossa no convite. Mas ele não gostou da minha ideia. Acho que não aguentava mais ser fotografado [risos].
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Em meio às nossas conversas, Matthew me disse que eu era um artista, que se quisesse podia desenhar nós dois. Gostei da ideia e, em vez de nos desenhar como humanos, decidi nos representar em pinguins. Amo desenhar animais e esses, em especial, estão sempre de smoking.
Pra dar um charme, coloquei um arco-íris na gravata. Foi um sucesso! Minha prima até fez um topo de bolo inspirado nos meus desenhos para o nosso casamento.
Nem preciso dizer que esses bichinhos se tornaram símbolos importantes para nós. Nós nos casamos em dezembro de 2019 e logo em seguida a pandemia começou. Como estávamos em lockdown, Matthew falou que seria uma boa oportunidade de eu me dedicar a fazer um livro infantil, como sempre quis. Tinha esse desejo desde os seis anos.
Para desenhar, uso um tablet, com a luminosidade no máximo, e dou um zoom bem grande na imagem que estou fazendo. Por conta da minha visão tubular, nunca consigo ver o desenho completo, só pequenos pedaços.
Comecei naquele dia mesmo e hoje já tenho dois livros publicados e uma pelúcia inspirada nos personagens à venda em meu site —além de calendário e diversas outras ilustrações. Essa jornada foi muito divertida. Estou prestes a lançar o terceiro, dessa vez inspirado no zodíaco, e um ursinho inspirado no meu cão-guia."
O que é a retinose pigmentar?
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), no Brasil há aproximadamente 50 mil pessoas diagnosticadas com retinose pigmentar. "Essa doença é considerada uma distrofia hereditária da retina. Os sintomas iniciais são, geralmente, dificuldade na visão noturna e perda da visão periférica", explica a oftalmologista Mariana Matioli da Palma, especializada em genética ocular e terapia gênica.
Apesar de rara, a doença pode ser descoberta em exames oftalmológicos de rotina, com análise do fundo de olho. Nele, o especialista analisará se há palidez, afinamento vascular e a presença de espículas ósseas na retina.
"Existem diferentes genes que podem causar a doença. Dependendo da severidade, a pessoa pode apresentar sintomas na primeira década da vida, mas há relatos de pacientes que só foram descobrir aos 80 anos", diz Palma.
Por ser uma doença genética, ela pode ser passada de pais para filhos. Por isso, é importante uma análise detalhada de quem tem histórico na família. "O teste ajuda a avaliar o risco de transmissão da doença e é importante para toda a família. Um paciente bem diagnosticado é a melhor forma de se beneficiar de novas descobertas, desenvolvimento de pesquisas e abordagens de tratamento", finaliza a médica.
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