'Durante internação, fui chamado 7 vezes para me despedir da minha filha'
Após sofrer uma forte crise epiléptica, Joana Barbi Gusson, 8, teve algumas complicações e, desde então, há quatro anos faz uso do canabidiol. Para o pai da menina, o jornalista Cassio Gusson, 41, a medicação, que é derivada da Cannabis (a planta da maconha), não é uma solução 100%, mas é um caminho. A seguir, ele compartilha a história da filha:
"Minha esposa, a Silvia, teve uma gestação normal, mas quando a Joana nasceu notamos que ela apresentou alguns atrasos de desenvolvimento. Por exemplo, aos seis meses ela não girava o corpo, não interagia, não dava muita risada, não levava os objetos à boca. Nessa época, procuramos uma neuropediatra e iniciamos uma investigação.
Minha filha fez vários exames, entre eles um eletroencefalograma com duração de 12 horas que identificou que ela teve 300 crises epilépticas ao longo de um dia. O tipo de epilepsia que ela tem é uma mioclonia, caracterizada por movimentos que podem ser leves ou fortes, com contração muscular abrupta e muito rápida.
De forma leiga, é como se ela tivesse um fio desencapado na cabeça que fica dando vários choquinhos, mas não deixa o disjuntor cair e gerar um apagão. No caso da Joana descobrimos que toda vez que ela levantava os bracinhos e virava o olho ela estava tendo uma crise.
A pedido da neuro, Joana fez um mapeamento genético e descobrimos que a epilepsia dela é causada por uma alteração genética. Ela também foi diagnosticada com transtorno do espectro autista. Minha filha passou a tomar anticonvulsivo para controlar as crises e a fazer fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional para estimular o seu desenvolvimento.
Aos poucos Joana foi evoluindo, conseguia firmar mais o corpo, sentar sem apoio, estava começando a andar, comia com a nossa supervisão. Aos dois anos, porém, ela teve uma forte crise epiléptica que gerou várias complicações.
Ela broncoaspirou o vômito, teve comprometimento pulmonar, precisou da ajuda de equipamentos para respirar, ficou em coma e teve falta de oxigênio no cérebro que resultou em uma paralisia cerebral.
Ela ficou 45 dias internada, nesse período os médicos chamaram eu e a minha esposa sete vezes para nos despedir dela, disseram que ela poderia morrer a qualquer momento.
Minha filha sobreviveu, mas saiu do hospital muito debilitada, praticamente só abria os olhos. Até então todo o tratamento que ela vinha fazendo era para estimulá-la, mas foi necessário reconfigurá-lo para ela reaprender a viver.
Tivemos que começar tudo do zero. A realidade agora era outra, além de tratar a epilepsia e o autismo, precisaríamos tratar a paralisia cerebral. Um dos nossos maiores medos é que ela tivesse uma crise forte e piorasse de novo.
Foi quando eu e minha esposa começamos a procurar e ler sobre novas opções de tratamento e achamos o canabidiol (CBD). Fomos a vários médicos para conversar sobre a possibilidade de incluir o CBD, mas encontramos resistência, hostilidade e preconceito.
Ouvimos frases do tipo: 'Não vou dar maconha para criança', 'Canabidiol é besteira', 'Só trato meus pacientes com medicação séria', 'Vocês querem fazer o meu trabalho, Google não é médico'.
Em meio a essa busca ficamos sabendo que a neuropediatra Mariana Pereira atendia crianças com casos semelhantes aos da Joana e que o uso do canabidiol estava tendo bons resultados. Foi um alívio ter achado uma médica que pela primeira vez nos ouviu de verdade e nos deu abertura para conversar.
A doutora Mariana já trabalhava com medicações à base de canabidiol havia algum tempo e foi sincera em dizer que ele poderia trazer benefícios, mas também poderia não ter o efeito esperado. Nos primeiros meses, gastamos cerca de R$ 25 mil para comprar os remédios. Entramos com uma liminar na Justiça e a Prefeitura de Jundiaí (SP), onde moramos, passou a fornecer gratuitamente.
Joana tem oito anos, faz o uso do canabidiol há quatro e tem evoluído gradativamente. Ela ainda tem crises todos os dias, mas elas diminuíram significativamente. Antes ela tomava três anticonvulsivos, agora toma apenas um.
Ela melhorou a deglutição, já consegue segurar a mamadeira, sentar no chão sem apoio, ficar em pé no andador, dar alguns passinhos. A Joana tem uma vida normal dentro das limitações dela. De manhã ela vai para escola e à tarde faz as terapias. Ela gosta de passear, viajar, ficar no skate, comer pizza, pastel e é fã da Anitta.
Canabidiol não é uma solução 100%, mas é um caminho
Durante esse processo fomos para a Rússia duas vezes onde a Joana foi submetida a um tratamento com células-tronco para tratar a paralisia cerebral. Atualmente, estamos vendo um medicamento nos Estados Unidos voltado para a alteração genética que ela tem.
Estamos sempre em busca de possibilidades seguras e confiáveis para oferecer mais qualidade de vida para a nossa filha, mas é preciso ter cuidado porque existe picaretagem.
Muita gente critica, mas antes do canabidiol nós estávamos no escuro, sem direção e sem perspectiva. Ele não é uma solução 100%, mas é um caminho, que é o que toda mãe e pai de uma criança com uma doença grave procura.
A gente não pesquisa na internet para saber mais que o médico, a gente pesquisa para achar alternativas para ajudar nossos filhos. O médico vê a criança na consulta uma vez por mês, a gente vê as dificuldades no dia a dia. É por isso que nunca vou desistir de tentar o melhor para a minha filha."
Epilepsia x uso de CDB
Março é o mês de conscientização da epilepsia, batizado de Março Roxo. A pedido de VivaBem, Daniela Bezerra, neuropediatra, médica afiliada do Departamento de Neurociências e coordenadora do Ambulatório de Epilepsia Infantil, ambos da Faculdade de Medicina do ABC, e autora do livro "Guia Prático do Uso de Canabinoides em Epilepsia", tira 8 dúvidas sobre a doença.
1. O que é epilepsia?
Uma condição neurológica crônica que afeta o sistema nervoso central e tem como definição o surgimento de duas ou mais crises epilépticas que são resultado de atividade elétrica anormal no cérebro, levando a sintomas como perda de consciência, movimentos involuntários e sensações estranhas.
2. O que causa?
A epilepsia pode ser causada por uma combinação de fatores ou apenas um fator único que envolve doenças autoimunes, tumor cerebral, malformações cerebrais, alterações genéticas e metabólicas, entre outros.
Além disso, alguns casos podem resultar de alterações genéticas herdadas ou de mutações genéticas espontâneas durante o desenvolvimento fetal.
3. Quais os sintomas?
Podem variar dependendo da área do cérebro onde a atividade anormal se inicia. Por exemplo, as crises que se originam no lobo temporal podem causar sensações epigástricas, náuseas, mal-estar na garganta, movimentos automáticos dos braços e alterações na consciência.
Outras regiões do cérebro podem desencadear diferentes sintomas, como convulsões generalizadas, movimentos involuntários, sensações estranhas, alterações na percepção sensorial, entre outros.
O reconhecimento dos sintomas ajuda o médico a identificar o tipo de crise e a orientar a população em geral sobre como reconhecê-las e agir adequadamente em casos de emergência.
4. Quais são os tipos de epilepsia?
Desde 2017, a Liga Internacional contra a epilepsia classifica os tipos de epilepsia com base no local de origem da crise. Isso inclui:
- crises de início focal, onde a atividade anormal começa em uma área específica do cérebro;
- crises de início generalizado, que afetam ambos os hemisférios cerebrais;
- crises de início combinado, que envolvem tanto um componente focal quanto generalizado;
- e o tipo indeterminado, quando não é possível determinar claramente a origem da crise
5. Como é feito o diagnóstico?
Normalmente, o diagnóstico de epilepsia é estabelecido após a ocorrência de duas ou mais crises epilépticas. Ele é feito de forma clínica baseado nos sintomas relatados pela pessoa que teve a crise ou por testemunhas. Após a confirmação inicial, são realizados exames complementares, como eletroencefalogramas, vídeo eletroencefalograma, tomografias e ressonâncias magnéticas do crânio.
6. Quais os tratamentos disponíveis atualmente?
O tratamento é feito com medicamentos específicos para cada tipo de epilepsia. Cerca de 70% das pessoas respondem bem ao tratamento com um ou duas medicações, o que é chamado de epilepsia fármaco-responsiva.
Nos casos de pacientes que não respondem adequadamente às medicações, uma outra opção é a possibilidade de fazer uma cirurgia para remover possíveis causas subjacentes, como tumores ou malformações. Para indivíduos que não são elegíveis para cirurgia, há alternativas como terapia cetogênica, neuromodulação e o uso do canabidiol.
A abordagem individualizada é fundamental para garantir o controle adequado das crises e melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas.
7. Como o canabidiol é usado no tratamento da epilepsia?
O canabidiol tem demonstrado eficácia na redução da severidade das crises epiléticas, incluindo a frequência, duração, intensidade dos movimentos e o período pós-ictal (período imediatamente após a crise que pode gerar sonolência e mal-estar).
Alguns estudos mostraram resultados positivos especialmente em síndromes epilépticas específicas, como a síndrome de Lennox-Gastaut, esclerose tuberosa, síndrome de Dravet e alteração genética do tipo SCN1A.
É importante ressaltar que o uso do canabidiol não garante uma resposta completa para todos os pacientes e há limitações a serem consideradas. Cada caso é único e deve ser cuidadosamente avaliado em relação aos benefícios esperados e os possíveis efeitos colaterais.
O livro "Guia Prático do Uso do Canabidiol na Epilepsia" fornece informações sobre o uso do canabidiol, seus protocolos e limitações, auxiliando os profissionais de saúde na tomada de decisões no tratamento da epilepsia.
8. Epilepsia tem cura?
A maioria das pessoas com epilepsia responde bem ao tratamento farmacológico e tem uma vida normal, sem grandes impactos em suas atividades diárias. No entanto, para indivíduos que têm epilepsia de difícil controle pode ser necessário um acompanhamento médico especializado para encontrar o tratamento mais adequado.
A cura é possível em alguns casos específicos, como em crianças com epilepsia de desenvolvimento e epilepsia autolimitada, em que o cérebro ainda está em fase de crescimento e maturação.
Além disso, há pacientes que ficam livres de crises por longos períodos, o que requer uma reavaliação para determinar se a epilepsia foi resolvida de forma definitiva ou se ainda há risco de recorrência.
O caso da Joana
De acordo com Mariana Pereira, médica que prescreveu o uso do canabidiol para Joana, a menina teve uma excelente resposta ao uso do canabidiol, com melhora cognitiva aos estímulos e no controle das crises epilépticas.
"Pesquisas clínicas descobriram que nós produzimos endocanabinoides e temos receptores canabinoides no nosso sistema nervoso. O uso de canabinoide exógeno ativa esses receptores determinando ação anticrises epilépticas e gerando ação positiva sobre o humor", explica a especialista em neurologia pediátrica e em cefaliatria pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Ainda segundo Pereira, ao longo do tratamento foram feitos alguns ajustes relacionados ao peso ou a mudança das outras medicações associadas e Joana não apresentou nenhum efeito colateral significativo.
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