'Pobres Criaturas': é possível fazer transplante de cérebro como no filme?
Atenção, o texto a seguir contém spoilers do filme "Pobres Criaturas".
Victoria Blessington estava morta. O que não foi um problema para Godwin Baxter. O cientista retirou o cérebro do filho que ela carregava no ventre e o implantou nela. Foi assim que Victoria voltou à vida como Bella Baxter, uma espécie de bebê no corpo de uma adulta.
Essa história faz parte do roteiro do filme "Pobres Criaturas", que está nos cinemas e é o segundo longa-metragem com maior indicações no Oscar deste ano —11, no total, atrás somente de "Oppenheimer", que lidera com 13 indicações.
O transplante de cérebro —e de cabeças inteiras— é o mote do filme. Quando Victoria se torna Bella, todas as suas memórias são apagadas e ela passa a viver como uma criança, aprendendo e descobrindo o mundo.
Mas o quão possível é essa ficção na vida real?
Cirurgia cerebral e de neurônios
O transplante de órgãos é uma realidade na medicina há pelo menos 70 anos. Fígado, coração, rim, pâncreas e pulmão, tudo pode ser doado e recebido. O cérebro, no entanto, não.
Isso acontece por diversos motivos, começando pela complexidade da cirurgia.
O cérebro tem aproximadamente 86 bilhões de neurônios interconectados e inúmeros vasos sanguíneos. Para um transplante bem-sucedido, nenhuma dessas estruturas poderia ser danificada.
Além disso, o órgão, que faz parte do sistema nervoso central, está conectado com a medula espinhal através do tronco cerebral. Fazer um transplante do cérebro, então, envolveria replicar, também, essa conexão igualmente complexa com bilhões de neurônios que transmitem informações sensoriais e motoras entre o cérebro e o corpo.
De acordo com Feres Chaddad, professor de neurocirurgia da Unifesp e chefe da neurocirurgia da Beneficência Portuguesa de São Paulo, caso fosse possível restabelecer essa conexão entre a medula espinhal e o cérebro transplantado, pacientes tetraplégicos com lesões traumáticas nessa estrutura seriam os grandes beneficiados.
Além deles, pessoas com Alzheimer, Parkinson ou esclerose múltipla em estágios avançados e sem outras opções de tratamento seriam os indicados para o procedimento, o que, contudo, ainda não é possível.
A partir do momento que acontece uma secção, não é possível fazer essa reconexão. Você até consegue fazer uma reconexão da musculatura e dos ossos, mas não consegue uma recuperação neuronal para que os movimentos [do corpo] aconteçam. Vanessa Milanese, diretora da SBN (Sociedade Brasileira de Neurocirurgia)
Por outro lado, pesquisas sobre o transplante de neurônios, células responsáveis pela propagação do impulso nervoso, estão em andamento e com resultados promissores em animais, conforme aponta o professor de neurocirurgia da Unifesp.
"Esse procedimento envolve a injeção de células neurais de um doador no cérebro de um receptor para reparar danos ou restaurar funções neurológicas perdidas", explica Chaddad.
O transplante de neurônios se diferencia do transplante de cérebro por ser um procedimento menos invasivo e com menor risco de rejeição. Feres Chaddad, professor de neurocirurgia da Unifesp e chefe da neurocirurgia da BP
Isso em caso de transplantes de neurônios do sistema nervoso central, constituído pelo encéfalo e medula espinhal. Mas quando o assunto é o sistema nervoso periférico —formado pelos gânglios, nervos e terminações nervosas—, esse procedimento já é uma realidade.
"Quando ocorre um enxerto após um acidente que atinge os membros superiores, por exemplo, em que há uma lesão do nervo, muitas vezes a gente faz uma reconexão deste nervo e consegue uma recuperação parcial", diz Vanessa Milanese, diretora da SBN.
Doadores vivos e a transferência de memória
Um terreno pantanoso que envolve as pesquisas sobre transplante de cérebro é a viabilidade de se ter um doador.
Em caso de transplantes de coração e pâncreas, por exemplo, o doador precisa estar morto. Caso fosse viável um transplante cerebral, a doação precisaria ser feita com o doador ainda vivo, uma vez que o órgão precisa estar funcional para que seja transplantado.
"Como, então, garantir o consentimento livre e esclarecido do doador, considerando a complexa questão da morte cerebral?", questiona o professor de neurocirurgia Feres Chaddad.
As questões éticas, contudo, não param por aí. Em "Pobres Criaturas", Bella Baxter, quando recebe outro cérebro, adquire novas memórias e características.
No caso dela, o fato de o "doador" ser um recém-nascido faz com que ela tenha um cérebro ainda em desenvolvimento, em processo de construção de suas próprias emoções e aprendizados.
Mas e se Bella recebesse o cérebro de um doador já adulto, teria ela adquirido uma nova personalidade e inteligência?
"A gente está falando de uma ficção, mas se acontecesse o transplante cerebral, a pessoa que recebesse o cérebro transplantado acabaria levando as memórias do cérebro que recebeu, mas isso é tudo muito fantasioso", comenta Vanessa Milanese, diretora da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia.
Tudo está no campo da hipótese, uma vez que o transplante cerebral em seres humanos vivos ainda não aconteceu.
Pode-se, então, especular que as lembranças e experiências passadas permaneceriam com o cérebro transplantado, mas é impossível prever com certeza, visto que a memória e a consciência ainda são fenômenos complexos e mal compreendidos. Fernando Gomes, médico neurocirurgião, neurocientista e professor livre docente da USP
Os locais exatos de armazenamento das memórias no cérebro ainda são um mistério para a ciência. Alguns mecanismos, contudo, são passíveis de serem explicados.
O hipocampo é uma pequena estrutura curva que gerencia as memórias. Mas o armazenamento das nossas lembranças se espalha por diferentes áreas do cérebro, incluindo o córtex e regiões mais profundas, dependendo do tipo de lembrança.
De animais para humanos
Outro ponto levantado do filme é o uso de órgãos e partes de animais em humanos, feito que, diferentemente do transplante cerebral, já tem um avanço considerável na pesquisa médica.
O transplante de órgãos de animais para seres humanos é chamado xenotransplante.
Em janeiro de 2022, o norte-americano David Bennett, que tinha 57 anos, tornou-se a primeira pessoa no mundo a receber um transplante de coração de porco modificado, feito por médicos da Universidade de Medicina de Maryland, nos EUA.
Bennett morreu dois meses após o procedimento, o que não fez com que a equipe responsável pela cirurgia perdesse o otimismo.
Um ano antes, uma equipe da Universidade de Nova York (EUA) também fez um procedimento envolvendo animais e seres humanos. Na ocasião, um rim suíno foi transplantado. Até então, apenas válvulas cardíacas de porco eram usadas.
Os cientistas esperam que dentro de uma década mais órgãos de animais, como pulmão e fígado, possam ser usados em humanos.
Mas assim como o transplante cerebral —e tudo o que envolve pesquisas científicas—, também há questões éticas que precisam ser levadas em consideração quando o assunto é o xenotransplante.
Um artigo publicado por um trio de pesquisadoras da Unesp —Maria Amália de Figueiredo Pereira Alvarenga, Patricia Borba Marchetto e Gabriela Pirajá Cecilio Bunhola— faz referência não só a essas questões éticas como também aos desafios jurídicos que o xenotransplante pode apresentar.
Elas apontam, por exemplo, a necessidade de meios que garantam a "proteção da dignidade animal, evitando as intervenções meramente experimentais, e priorizando as terapêuticas".
Elas propõem, também, que o transplante não leve à morte destes animais e que, para que isso ocorra, só deveria ser permitida a doação de "órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade". Vetando, assim, a doação de órgãos vitais como coração.
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