Ozempic para fim estético: há relação com transtorno de imagem e alimentar?
Indicado para tratar diabetes tipo 2 e obesidade, o Ozempic ganhou escala entre pessoas sem essas doenças. No começo, era alvo de quem queria perder cerca de 10 kg, mas hoje ronda um universo puramente estético, para perdas pontuais de dois a três quilos.
O uso é restrito à condição de pagar quase R$ 1.000 no medicamento, mas facilitado por dispensar receita médica para compra e ter conteúdo livre na internet sobre como aplicar.
Quem deseja perder uns quilos após as férias ou entrar naquela roupa para a próxima festa tem uma alternativa à disposição. Tal comportamento traz reflexões sociais.
A pessoa que não tem doença se submete ao uso de medicamento para seguir um padrão estético social que está sendo imposto. Lorena Lima Amato, endocrinologista
Junto vem uma preocupação com a saúde mental. "Isso teria que ter avaliação psicológica, de possível transtorno dismórfico corporal", sugere Amato.
Não é exagero —e explicamos mais abaixo— nem uma afronta aos cuidados estéticos. A busca pela beleza vem desde os banhos de leite hidratantes de Cleópatra, passando pela rotina fitness e dieta da princesa Sissi, da Áustria (que não se permitia pesar mais do que 50 kg, com 1,72 m de altura), chegando aos tratamentos rejuvenescedores de hoje.
"É uma busca universal, mas todo transtorno mental é uma exacerbação de características humanas normais", lembra o psiquiatra Eduardo Aratangy, supervisor no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.
É saudável buscar por saúde, beleza e estética, mas é nos extremos que reside a patologia. Eduardo Aratangy, psiquiatra
Onde mora o perigo
Por si, o medicamento não causa transtornos alimentares e/ou de imagem, mas pode ser um gatilho dentro de um cenário já propenso.
Esses transtornos dependem de uma combinação de fatores, explica o psiquiatra:
- Tendência individual: pessoas mais perfeccionistas, de baixa autoestima, com necessidade de reconhecimento e controle.
- Fatores agravantes: traumas psicológicos, bullying, pressão dos pais, influência de redes sociais.
- Fatores desencadeantes: abuso sexual, separação dos pais, a natural mudança corporal na adolescência.
Nesse contexto, a medicação pode desencadear transtornos por mecanismo psicológico, em que se acredita que apenas com o remédio é capaz de emagrecer.
Mas vale lembrar que o Ozempic não atua na queima de gordura. Seu mecanismo de ação é, basicamente, pela diminuição do apetite e retardo no esvaziamento gástrico, o que faz a pessoa comer menos.
Em um caso hipotético, pense em alguém que ganhou muito peso, tem baixa autoestima, sente rejeição, quer mudar a aparência e recorre ao remédio. A pessoa une exercício físico e melhora a alimentação, atingindo resultados que são muito elogiados.
"Isso pode criar na mente predisposta um reforço positivo que não se desfaz, na lógica de quanto mais magra melhor", diz Aratangy. Sem percepção de limite, a pessoa segue na busca pela magreza, e o risco é chegar à distorção de imagem.
Como identificar o transtorno
Geralmente, quem desenvolve transtorno alimentar ou de imagem não percebe, mas amigos e familiares podem ajudar a identificar diante de alguns sinais:
- Restrição de interesses: a pessoa gostava de música, de praticar um esporte, tinha vida social ativa e, de repente, passa a se importar mais com comida e com o corpo.
- Prejuízo em atividades sociais: há perda de função no trabalho e nos ambientes que costumava frequentar.
- Consequências clínicas: perda de cabelo, osteoporose, fratura por excesso de exercício, deixar de menstruar.
Para quem já tem um transtorno, o medicamento vira mais um artifício perigoso, alerta Ana Flávia Torquato, endocrinologista e nutróloga que atua na linha de cuidados de obesidade no HUWC-UFC (Hospital Universitário Walter Cantídio da Universidade Federal do Ceará), da rede Ebserh.
"A pessoa usa de maneira totalmente despropositada, para um emagrecimento que não é indicado, para atingir metas estéticas que não são saudáveis", diz. Além disso, ela fala na possibilidade de o uso mascarar transtornos alimentares, em que a pessoa faz uso intermitente do medicamento.
"Hoje, o desejo de magreza está dentro de um perfil de desnutrição, IMC abaixo do ideal, que as redes sociais e a mídia, de forma geral, têm padronizado", reforça Joseline Alves, nutricionista do HUWC-UFC, especialista em transtornos alimentares e obesidade.
Saúde em risco
Todo e qualquer medicamento tem benefícios e riscos. É a partir da avaliação de cada paciente que profissionais da saúde recomendam ou contraindicam um remédio.
Os especialistas ouvidos pela reportagem analisam o impacto do uso desorientado do Ozempic apenas para fins estéticos:
Risco x benefício. Torquato diz que, para tratar obesidade, o benefício é muito grande em relação ao risco dos efeitos colaterais. "Ele reduz risco de diabetes, melhora apneia do sono, doença hepática, pressão alta e colesterol." Para quem não precisa tratar nenhuma doença, a relação é inversa: maior risco, menor benefício.
Efeitos colaterais acentuados. Os efeitos previstos na bula do remédio, como náusea, vômito e dor de cabeça, são os mesmos para qualquer pessoa. Mas dentro de um tratamento para obesidade ou diabetes orientado por profissional, eles são amenizados, porque há uma condução coerente. Sem orientação, eles tendem a prevalecer.
Uso inadequado. Endocrinologistas relatam ser comum receber pacientes que já começaram a tomar o remédio na dose máxima e sem mudança de hábitos. "O tratamento tem de vir junto da melhora alimentar e exercício, ele não é só um amuleto", diz Torquato.
Reganho de peso. Embora o medicamento funcione para grandes ou pequenas perdas de peso, a manutenção na balança é mais desafiadora. Se não houver mudança de hábitos, a tendência é a pessoa voltar ao patamar anterior quando interromper o uso. Segundo Amato, mudanças no estilo de vida são mais efetivas para quem deseja perder poucos quilos.
Déficit nutricional. Alves lembra que pessoas magras, geralmente, já têm restrição alimentar e, por vezes, se impõem dietas extremas, com exclusão de alimentos. "Quando vem a medicação, que pode dar vômito, diarreia, há risco de hipoglicemia, de deficiência nutricional mais grave e pode desencadear reações piores, como anemia", alerta.
No entanto, há casos em que o uso, mesmo que só por estética, é acompanhado por profissional da medicina. Tem sido cada vez mais comum as pessoas chegarem ao consultório pedindo a prescrição, sem antes saber se é indicado para elas.
É delicado, porque, para o paciente, qualidade de vida e emagrecimento estão muito associados. É difícil não prescrever para algumas pessoas. Ana Flávia Torquato, endocrinologista
Em tese, é mais seguro estar orientado para evitar os riscos mencionados. Porém, é imprescindível avaliar caso a caso e sempre dizer ao paciente que ele não tem indicação, explicar que a medicação inibe o apetite e que ele pode voltar ao peso anterior se não fizer modificação necessária de alimentação e exercício físico.
"O raciocínio deveria ser de conscientização da pessoa, mas é muito mais desgastante do que prescrever o que ela quer", critica Amato. "As pessoas preferem gastar R$ 1.000 numa injeção na barriga do que mudar o estilo de vida", observa Aratangy.
Banalização em torno da obesidade
Desde que os estudos sobre o Ozempic foram divulgados, a classe médica vibra com os resultados promissores e atingidos na prática. Para diabetes e obesidade, ele tem uma eficácia superior a outras medicações e é tido como revolucionário.
Mas o uso descabido gera um preconceito em torno do tratamento, e pessoas que teriam indicação de usá-lo podem ficar receosas. Cria-se também uma desesperança perante uma doença, como a obesidade, que traz diferentes prejuízos à vida.
"É preciso olhar para a pressão estética que a gente vive e separar da saúde. O discurso de estar saudável tem por trás o desejo de estar mais magro", analisa a nutricionista.
A sociedade fala que é fácil emagrecer, mas não é. Precisa de ajuda na parte alimentar, atividade física e acompanhamento psicológico. Joseline Alves, nutricionista
Alves fala de um cenário que pressiona a população. De um lado, a obesidade crescente, que atinge 1 bilhão de pessoas no mundo, o ambiente obesogênico e o acesso facilitado a alimentos ultraprocessados. Do outro, uma grande pressão estética.
"Se vive uma incongruência: temos mais acesso à alimentação e ao mesmo tempo tem que ser magro. Quando a pessoa não atinge esse nível, recorre a medicações, dieta da moda, ao super treino ou ao mais novo suplemento", afirma.
A nutricionista, que atua no Cetrata (Centro de Tratamento de Transtornos Alimentares) do HUWC, chama atenção para as populações mais vulneráveis, em que o comportamento individual não pode ser visto isoladamente. "São pessoas que têm menos acesso a alimentos saudáveis, vivem em insegurança alimentar."
Para ela, o comportamento alimentar individual é uma resposta ao ambiente, principalmente econômico, porque no contraste há uma parcela que tem a opção de comer alimentos mais saudáveis e acesso à academia, por exemplo. "Quem sofre é o mais vulnerável."
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