Gêmeas conjugadas foram separadas com 9 dias; pai chegou a cotar velório
Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
14/03/2024 04h05
Unidas pelo abdome, fígado e parte do intestino delgado, Cecília e Lilly fariam a cirurgia de separação aos seis meses de idade, mas algumas complicações anteciparam o procedimento e as meninas foram separadas com apenas nove dias de vida, no dia 30 de junho de 2023, no Hospital e Maternidade Santa Joana, em São Paulo. A seguir, a mãe das meninas, a programadora Adrelayne Silva, 25, compartilha sua história:
"Eu e meu marido, o Vinicius, sempre sonhamos em ter uma família grande. Aos 19 anos, tive a minha primeira gestação, mas sofri um aborto espontâneo. Aos 22, engravidei pela segunda vez e tive o Ithan. Aos 24, engravidei novamente. No primeiro ultrassom, o médico falou que era só um bebê, mas no segundo tivemos uma surpresa e descobrimos que eram dois.
Com quase 12 semanas, a médica notou que os fetos eram muito próximos e suspeitou que eles eram conjugados, ou seja, eram grudados por alguma parte do corpo. Algumas semanas depois, soubemos que teríamos duas meninas e que elas compartilhavam o mesmo abdome e fígado.
Fiz o meu pré-natal no Santa Joana e desde o início me senti acolhida e assistida por toda a equipe. A ideia era que as meninas fizessem a cirurgia de separação com seis meses de vida, porque já teriam tecido o suficiente e o peso adequado, mas as coisas não saíram como o planejado.
No dia 21 de junho de 2023, as gêmeas nasceram prematuras com 34 semanas e dois dias. A Cecília com 1,850 kg e 44 cm; e a Lilly com 1,875 kg e 45 cm. Após o nascimento foi constatado que as meninas tinham onfalocele, uma malformação na parede abdominal.
Também foi identificado que havia uma comunicação vascular que levava o fluxo sanguíneo da Lilly para a Cecília, por esse motivo, a Lilly não conseguia urinar, apresentou um quadro de insuficiência renal e não podia fazer diálise. Além disso, ela teve alguns episódios de taquicardia, em que os batimentos cardíacos chegaram a quase 300 por minuto.
A Cecília estava bem, mas toda vez que a irmã tomava uma medicação ela tinha reação e as duas ficaram debilitadas. Diante desse cenário, os médicos disseram que a cirurgia de separação precisaria ser realizada com urgência.
A situação era delicada, a possibilidade maior era a de salvar a Cecília, mas ainda que as duas sobrevivessem à separação, elas poderiam vir a óbito durante o pós-cirúrgico. Até onde se sabia, não existiam casos de sucesso no Brasil com tão pouco tempo de vida.
Eu e meu marido somos cristãos, sou do tipo mais calma, otimista e tinha fé de que Deus estava no controle de tudo. Já o Vinicius é mais pé no chão e aprendeu com o pai a se preparar para o pior cenário possível.
Ele cotou o valor dos caixões e escolheu o cemitério onde seria o velório e enterro caso o pior acontecesse. Ele também tinha fé, mas não queria perder tempo com a parte burocrática e queria poder se dedicar e cuidar de mim e do nosso filho mais velho, o Ithan.
No dia 30 de junho, com apenas nove dias de vida, as meninas fizeram a cirurgia de separação do abdome, do fígado e foi constatado que elas também dividiam o intestino delgado.
Durante a recuperação, a Cecília e a Lilly tiveram algumas complicações, ficaram intubadas e cada uma delas teve que fazer entre 3 e 4 procedimentos cirúrgicos corretivos. Em meio a esse processo, nenhuma das duas conseguiu mamar no peito e ambas se alimentavam por meio de nutrição parenteral.
Um tempo depois, a Lilly começou a mamar na mamadeira, ganhou peso e teve alta após quase cinco meses internada. A Cecília teve alta no dia 8 de março.
"Nossas filhas estão vivas e com saúde"
Lilly está bem e se desenvolvendo no tempo dela, mas devido à prematuridade e a tudo o que passou, ela tem alguns atrasos na parte motora: não gira, não senta e não iniciou a introdução alimentar. Como consequência da separação, elas não têm umbigo e têm cicatrizes na barriga. Ambas fazem sessões de fisioterapia e fonoaudiologia para estimular o desenvolvimento.
Depois que a Lilly foi pra casa, as meninas não se viram mais e percebemos que elas sentem falta uma da outra. A Lilly ficou triste e chorosa no dia que a Cecília fez uma das cirurgias, é como se ela soubesse que algo estava acontecendo. Já a Cecília tem uma bonequinha de pano com a roupa da irmã.
Foram meses de muitas provações com as gêmeas e o diagnóstico de autismo do Ithan, mas somos gratos porque Deus fez um milagre na nossa família.
Nossas filhas estão vivas, com saúde e estamos na expectativa para receber a Cecília em casa com muito amor, alegria e um belo churrasco.
É tempo de viver um novo ciclo. Espero que a nossa história traga esperança para outras pessoas que estejam passando por alguma dificuldade. O segredo é confiar em Deus, nos médicos e viver um dia de cada vez."
Como foi a cirurgia de separação de Cecília e Lilly
Pedro Muñoz Fernandez, um dos médicos responsáveis pela cirurgia de separação de Lilly e Cecília, explica que as gêmeas eram unidas pelo abdome e tinham um defeito conhecido como onfalocele, quando a parede abdominal anterior é aberta, sem cobertura de pele, com os músculos afastados da linha média do corpo e as vísceras são protegidas por uma fina camada de tecido, chamada de peritônio.
"As gêmeas também tinham em comum o fígado com grandes junções vasculares no seu interior, entre o que seria o fígado de cada uma delas e parte do intestino delgado, correspondendo a aproximadamente 20% do seu comprimento", explica o especialista, que é chefe do setor de cirurgia neonatal do Hospital e Maternidade Santa Joana.
A separação das gêmeas ocorreu em caráter de urgência porque as junções vasculares existentes no fígado faziam com que o sangue fosse preferencialmente para a gêmea maior (Cecília), o que provocava uma diminuição do volume de sangue circulante na gêmea menor (Lilly).
O organismo reage a este volume circulante de sangue menor direcionando o sangue para os órgãos vitais como o coração e o cérebro.
"Em consequência disso, os rins da Lilly recebiam uma quantidade insuficiente de sangue, levando à uma insuficiência renal pré-renal e perda da função, a bebê parou de fazer xixi. A médio prazo, as alterações decorrentes do não funcionamento dos rins da Lilly poderiam comprometer a Cecília. O metabolismo produz resíduos que em parte são eliminados pelos rins. Se não forem eliminados, esses resíduos (que são tóxicos) se acumulam no organismo e podem levar à morte", explica.
Cirurgia de grande porte
Considerada de grande porte, a cirurgia envolvia riscos no plano anestésico e cirúrgico e contou com a participação de 20 profissionais, entre anestesistas, cirurgiões e equipe de enfermagem.
"O fechamento do abdome foi realizado com a utilização de tela sintética parcialmente recoberta com retalhos de pele de cada uma das gêmeas. A separação do fígado com o tratamento das comunicações venosas foi realizado com sucesso apesar do sangramento inerente ao ato operatório. O procedimento foi meticuloso visando prevenir danos e evitar lesões inadvertidas no fígado que permaneceu com cada uma delas. No caso do intestino, uma das gêmeas ficou com a parte em comum e para a outra foi feita a junção entre as áreas seccionadas", detalha o cirurgião Fernandez.
Após a separação, Cecília e Lilly foram encaminhadas para a UTI neonatal. Cada uma delas passou a contar com o seu próprio volume de sangue circulatório. A Lilly, que não urinava, apresentou função renal. Ambas têm uma curvatura na coluna devido à posição delas dentro do útero.
Como já era esperado, o contato do intestino com a tela utilizada para fechar o abdome levou à produção de ferimentos no intestino (fístulas intestinais). De acordo com o cirurgião, as fístulas se fecham espontaneamente mantendo as bebês em jejum e através da nutrição parenteral prolongada, um soro preparado que permite ao recém-nascido manter o metabolismo com ganho de peso e produção de seus elementos vitais.
A Lilly recebeu alta, enquanto a Cecília precisou ficar internada por mais tempo para receber cuidados especiais para o crescimento da pele e porque desenvolveu um quadro de aversão oral caracterizado por rejeitar alimentos e precisou fazer uma gastrostomia (a colocação de sonda gástrica exteriorizada na parede abdominal).
"A recuperação foi trabalhosa, mas dentro do esperado e bem-sucedida. A partir da alta hospitalar, a previsão é de termos crianças independentes, com o mínimo de sequelas e pais felizes, explica o médico.
Gêmeos conjugados ou siameses?
A expressão gêmeos siameses surgiu por causa de dois irmãos, unidos pelo esterno (osso situado na parte anterior do tórax), que viveram no século 19 nos Estados Unidos, mas que nasceram em Sião, atual Tailândia.
"Chang e Eng Bunker viveram escravizados na Europa e nos Estados Unidos, onde eram mostrados em eventos públicos e em espetáculos de circo como monstruosidades, tendo uma vida assemelhada a de animais. Por conta disso, a rejeição ao termo siameses busca apagar da memória essa triste página da história", pondera Fernandez.
Segundo o médico, o termo técnico utilizado são gêmeos conjugados, que podem nascer unidos pelo abdome, tórax, cabeça, quadril, entre outras partes.
Nesses casos, os gêmeos nascem unidos devido à uma falha nas divisões das camadas dos embriões.
Outra teoria propõe que após a separação completa em dois bebês gemelares, os fetos voltam a se unir em alguma parte do corpo.