'Chinelo grudou no xixi': açúcar na urina levanta suspeita de diabetes
Já ouviu que intuição de mãe não falha? Foi esse sentido aguçado que moveu Jaqueline Correia a consultar médicos para entender o que estava acontecendo com o filho Levi, na época com 2 anos de idade.
A falta de energia do menino e um episódio inusitado levantou a suspeita de que algo estava errado. "Coisa da sua cabeça" e "frescura de mãe" foram frases que ela ouviu até, enfim, descobrir que a criança tem diabetes tipo 1 (DM1).
Hoje, como presidente do Instituto Diabetes Brasil, Jaqueline atua para aprovar projetos de lei que contribuam para o tratamento da doença. Entre eles está o PL 2687/2022, que visa classificar a condição como deficiência para todos os efeitos legais. A VivaBem, ela conta essa história.
"O Levi tem uma prima praticamente da mesma idade e eles sempre brincavam juntos. Com 2 anos e nove meses, percebi que ele não estava brincando com a mesma energia, mas só eu percebia. Todo mundo falava que ele estava bem.
Também via que ele sempre fazia muito xixi. Um dia, ele estava brincando sozinho em casa, e a fralda dele vazou no chão. Quando fui limpar, meu chinelo grudou no xixi, então a urina já estava com bastante açúcar.
Em Brasília, sempre trabalhei com produção de eventos culturais, mas uma vez uma colega pediu ajuda num evento de pediatria no qual um médico falou que a intuição de uma mãe é muito forte. Aquilo ficou latejando na minha cabeça.
Senti que deveria levar ele ao hospital. Levei em dois e não deu nada. No terceiro, uma enfermeira disse que poderia ser frescura de mãe chata, porque a criança estava linda e bela. Não consegui contestá-la na hora, chorei.
Fomos para outro hospital, onde fui muito sincera com o médico. Ele me escutou, fez todos os exames possíveis e quando saiu o resultado da glicemia dele, estava em 1.034.
Isso foi em 2015. Percorri três hospitais particulares e o diagnóstico veio em hospital público, que foi muito acolhedor. No dia, chorei a madrugada inteira, muito preocupada, porque nunca tinha visto glicemia tão alta. Chorei muito, não conseguia comer no outro dia.
Tinha zero conhecimento sobre diabetes tipo 1, e no começo a gente se sente culpada. Um enfermeiro me explicou tudo, a diferença entre os tipos de diabetes, e essa informação me confortou enquanto mãe, me tirou a culpa que estava sentindo.
O que me confortava também era saber que estávamos em período de tecnologias, de alimentos saudáveis. Levi sempre gostou muito de pão de queijo, eu gostava de cozinhar, então sabia que ele podia comer um pão de queijo mais saudável.
Adaptação ao tratamento
Na época, apesar de ser muito pequeno, ele teve uma posição muito forte contra as administrações de insulina, ficava muito revoltado. E é algo muito ruim, porque não tem segunda opção, como comprimido. Precisa furar o dedo, aplicar insulina com seringa ou caneta.
Acho que ele pensava: 'como a família que tanto amo me aplica uma injeção que dói?'. Ele parou de falar com todo mundo da família.
Levi sempre gostou muito de instrumentos de percussão, então, quando ele internou, como não podia levar instrumento para o hospital, ele tocava num aplicativo. Era o escape dele na hora de administrar insulina.
Mas o controle glicêmico dele não estava muito bom, e ele ficava muito nervoso, e eu também, na hora da administração, porque ele não aceitava. Aí pensamos na bomba de insulina.
O primeiro sensor de glicemia estava chegando no Brasil e quando ele estava com 4 anos, já providenciamos a primeira bomba. Foi maravilhoso, ele aceitou praticamente 100% o diabetes e até hoje usa bomba. Mas se tem que aplicar injeção, é contra.
Conscientizar para cuidar
Promovia eventos culturais, que eram mais à noite, mas precisei abrir mão da minha profissão. De noite é o ápice que uma mãe precisa cuidar do seu filho, por causa da glicemia.
Mas essa questão profissional me deixou sentida porque era algo que gostava muito. E tinha o sentimento de como mostrar para o meu filho essa condição que ele vai ter pelo resto da vida.
Então, criamos um grupo de mães-pâncreas (mães que têm filhos com diabetes) e sempre via que as palestras eram muito monótonas, robóticas. Pensei que poderia ajudar a incluir as crianças em palestras mais didáticas.
Ajudei a promover encontros com famílias em parques, em universidades que tivessem campeonato de videogame em que adolescentes pudessem participar. A gente não fazia convite individual, era para a família.
Com isso, consegui conscientizar o Levi e outras pessoas que têm diabetes. Me fortaleci como mãe também, porque acho que só uma mãe-pâncreas entende a outra.
E como tenho de lidar com diversas famílias, pego uma boa experiência de cada uma para conduzir na minha casa com Levi. Percebo que quando as mães são superprotetoras, geralmente o filho com diabetes não consegue lidar muito com as questões da doença.
Como mãe, conscientizo que é uma condição autoimune, que até o momento não tem cura, que como família vamos fazer o possível para ele ter acesso ao melhor tratamento devido, mas que ele precisa também fazer a parte dele.
Daqui a pouco ele está na adolescência e vai precisar lidar com a condição. Começamos a ensinar a fazer teste de ponta de dedo e como informar na bomba de insulina a quantidade de carboidrato que está consumindo.
Hoje, a única coisa que faço é a troca dos insumos da bomba. Ele faz teste de ponta dedo, contagem de carboidrato, calibra a bomba. Na escola, tem monitora que acompanha, mas ele faz tudo.
Luta por direitos
Em Brasília, participei de associações de diabetes como voluntária e gostei muito, mas sempre senti que poderia atuar mais como sociedade, com políticas públicas.
Acredito que a educação em diabetes é muito importante, mas não acredito na educação sem acesso a tratamento adequado.
Teve uma situação em Brasília de uma jovem, a Milena, que perdeu acesso ao tratamento porque o protocolo é muito rigoroso. Se a pessoa não atinge as metas que a secretaria de saúde estipula, ela é excluída do protocolo e fica sem insumos.
O quadro dela se agravou, a família sempre precisava de doação, mas chegou ao ápice de não aguentar mais viver de doação. Em fevereiro de 2021, nasceu o Instituto Diabetes Brasil, quando recebemos o registro. Em agosto, a Milena faleceu por hipoglicemia grave.
Começamos a nos unir com outras associações e movimentos do autismo, que é mais atuante em políticas públicas, para entender como funciona elaborações de projetos de lei, tramitação e aprovação. Conseguimos aprovar o rol exemplificativo em 2022 e vimos que política pública é muito importante."
Entenda o diabetes tipo 1
De 10% a 15% das pessoas com diabetes no Brasil têm o tipo 1, uma estimativa de 580 mil indivíduos. Trata-se de uma doença autoimune em que anticorpos —células de defesa do organismo— atacam e destroem as células do pâncreas que produzem insulina.
É diferente do diabetes tipo 2, mais associado à obesidade e hábitos de vida não saudáveis, com possibilidade de prevenção. Neste caso, a pessoa produz o hormônio insulina, mas a quantidade não dá conta da alta demanda do corpo.
O diabetes tipo 1 é mais comum em pessoas de 8 a 15 anos de idade, mas a incidência tem crescido na faixa etária abaixo dos 5 e acima dos 60 anos. Quanto menor a criança, mais rápida a destruição das células produtoras de insulina.
A insulina é responsável por transportar a glicose do sague para as células do corpo, a fim de que elas funcionem bem. Sem esse hormônio, a glicemia (taxa de glicose) se eleva, e o corpo começa a agir para eliminar esse excesso.
Uma das vias é pela urina, por isso a pessoa tende a urinar muito e sentir muita sede, o que a faz beber muita água.
Atenção aos sintomas
Boca seca, urina em excesso, fraqueza e emagrecimento são sinas típicos do diabetes tipo 1, mas quanto menor a criança, mais atípicos são os sintomas e mais difícil de identificá-los.
Fique atento ao seguinte:
- Aumento na frequência das trocas de fraldas devido ao excesso de urina;
- Assaduras persistentes na região de contato com a fralda, que não melhoram mesmo com boa higienização;
- Sapinho oral;
- Dor de barriga;
- Náusea;
- Vômito;
- Perda de peso ou dificuldade para ganhar peso.
O tratamento é feito com reposição de insulina, tanto de forma contínua ou com múltiplas doses quanto no momento anterior às refeições.
Se não tratado corretamente, o diabetes tipo 1 causa comprometimentos renais, cardíacos e oculares. Em casos extremos, pode levar ao coma e à morte.
Mas como geralmente a pessoa com DM1 vive com a doença desde a infância, a educação sobre a enfermidade está mais bem estabelecida e menos complicações são observadas.
Fonte: Monica Gabbay, endocrinologista pediátrica, coordenadora do Ambulatório de Bomba de Insulina da Unifesp, fundadora e diretora educacional do G7 Med.
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