'Sentia raiva, derrubei tudo da mesa': como é ter um surto psicótico?
Danielle Sanches
Colaboração para o VivaBem
01/04/2024 04h00
Na última edição da casa do BBB, a influencer Vanessa Lopes desistiu e saiu do programa com um quadro psicótico agudo. "É como se a minha mente rompesse com a realidade, como se eu já não entendesse o que é imaginação e o que é real", declarou, dias depois, ao Fantástico, da TV Globo.
O quadro psicótico agudo ou surto psicótico é justamente o que a ex-BBB falou: um episódio em que há uma ruptura da mente com a realidade. "A pessoa passa a ter dificuldade de separar a realidade do pensamento, pode ficar agitada, ter comportamentos bizarros e fazer coisas que não têm sentido", afirma o psiquiatra Eduardo Perin, especialista em terapia cognitivo-comportamental pelo Ambulatório de Ansiedade do HC-USP (Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo).
Os comportamentos estranhos são resultado de uma vivência desorganizada da realidade, o que pode gerar também delírios e alucinações, colocando a pessoa, em alguns casos, em situações de perigo e agressividade. "O surto pode ser mais ou menos intenso, grandioso ou não, mas é sempre um sintoma grave, indicando que a saúde mental daquela pessoa não está normal", explica Ariel Lipman, médico psiquiatra e diretor da SIG Residência Terapêutica, em São Paulo.
O surto psicótico pode ser algo pontual e breve devido a situações de estresse e ansiedade intensos, como pode ter acontecido com Vanessa Lopes; ou ser um sintoma de um transtorno psiquiátrico mais grave, como quadros de depressão profunda, esquizofrenia e transtorno bipolar.
No caso de Lúcia Castelo Branco, 55, a bipolaridade a fez ter alguns episódios de ruptura com a realidade. A a artista e escritora é moradora da SIG e convive com o diagnóstico de transtornos mentais desde a adolescência, sempre entrando e saindo de clínicas durante episódios agudos. "Fui tratada por muitos anos com depressão. Cheguei a ficar em uma instituição em que batiam a cabeça dos internos na parede", conta.
Por sempre ser vista como alguém com sentimentos à flor da pele, ela lembra, não era incomum ouvir que deveria ser atriz e se dedicar ao teatro. "E foi o que eu fiz. Eu apostei tudo na carreira artística", conta ela, que se formou em artes cênicas pela Unicamp, já esteve envolvida com cinema, teatro e televisão e hoje escreve livros de poesia.
O diagnóstico de bipolaridade veio apenas aos 52 anos, quando ela já havia vivenciado diversos episódios psicóticos —um claro sinal de que a doença havia se agravado. "Sabia que alguma coisa não estava bem, mas não conseguia entender o que era. Mais tarde, descobri sobre o transtorno bipolar e as consequências de não ser devidamente tratado, mas levou um tempo para eu aceitar", conta.
O primeiro surto psicótico de que Lúcia se lembra aconteceu por volta dos 29 anos. Ela havia feito uma cirurgia plástica no nariz e o resultado ficou "anormal", segundo ela descreve. "Meu nariz ficou torto, horrível, completamente fora do natural. E o médico fez pouco caso da minha reclamação", conta. Foi o início do episódio. "Sai de lá transtornada, com muita, muita raiva", diz.
Ao chegar em casa, Lúcia viu que sua mãe tinha preparado um lanche para ela na mesa de jantar. Alguma coisa não a agradou nos alimentos oferecidos e aí houve a ruptura. "Eu simplesmente levantei e puxei a toalha, derrubei tudo o que estava na mesa. Sentia raiva, mas não conseguia controlar meus impulsos", lembra ela, que tinha a percepção de estar perdendo o controle durante o surto —algumas pessoas, no entanto, vivenciam delírios que não as permite entender a situação.
O segundo episódio que ela se lembra ocorreu alguns meses depois, quando ela estava em um supermercado, se desentendeu com um funcionário e passou a ter impulsos violentos. "Novamente, senti aquela raiva enorme dentro de mim. Sem controle, joguei vasos, arremessei tudo o que encontrei pela frente", diz. Desta vez, Lúcia foi encaminhada para uma delegacia e passou a noite em uma cela. "Fiquei o tempo todo chamando pelos meus pais", conta.
Perda cognitiva
Lúcia só viu seu quadro de saúde se estabilizar após o diagnóstico de transtorno bipolar e o tratamento com medicamentos para estabilizar o humor e antipsicóticos —que aconteceu há apenas três anos. Essa demora no diagnóstico correto (o que não é incomum, dado que muitos transtornos mentais têm sintomas semelhantes) e a consequente falta de acompanhamento contínuo —normalmente, essas pessoas buscam ajuda apenas durante as crises— aumentam o risco para desenvolver problemas cognitivos.
"Vivenciar esses episódios com frequência tem um efeito neurotóxico, ou seja, provoca uma perda cognitiva progressiva", afirma Lipman. Há ainda um risco aumentado para desenvolver demência na velhice entre esses pacientes.
Por outro lado, uma vez que o tratamento se inicia, é possível ter qualidade de vida e até viver com autonomia. No caso de Lúcia, morar em uma residência terapêutica permite que ela seja assistida e acompanhada o tempo todo enquanto escreve seus livros de poesia e suas peças de teatro, entre outras produções artísticas com as quais se envolve diariamente. Ela também costuma receber com frequência a visita da família (tem um afeto especial pelos sobrinhos) e é autorizada a sair e até viajar sozinha.
"Estar na residência nos permite acompanhar sua rotina mais de perto e garantir que, ao primeiro sinal de desorganização, mesmo sem que ela perceba, possamos intervir e evitar que ela tenha uma crise", explica a terapeuta ocupacional Solange Tedesco, diretora da SIG.
Como exemplo, Tedesco conta um episódio em que Lúcia vivia uma semana intensa e pediu para o staff da clínica a despertar mais cedo —o que não foi feito. "Ela estava sobrecarregada e precisava descansar. Nesse contexto, dormir era importante para evitar um estresse que poderia gerar uma nova crise", afirma.
Rotulada como "louca" em diversos momentos da vida, Lúcia conta que sempre se sentia machucada quando ouvia isso. Hoje, no entanto, parece ter encontrado um pouco de paz. "O mundo é muito complicado, mas amo minha vida. Mesmo assim, lido com várias dificuldades causadas pelo meu transtorno", diz.
Quais os sintomas do surto psicótico?
O surto psicótico geralmente é desencadeado por alguma situação de estresse extremo ou ainda como sintoma grave de algum transtorno mental. No entanto, é importante dizer que o surto não surge "do nada". "Muitas vezes, já existem prejuízos no juízo de realidade e comportamento", afirma Tedesco. Mudanças de humor, na atenção, preocupações excessivas e até ideias persistentes, por exemplo, são indicativos de que a pessoa já apresenta algum nível de desorganização.
No surto em si, os sintomas mais comuns são:
Fala desorganizada ou incoerente;
Alterações de humor;
Mudanças no ciclo do sono (dificuldade para dormir ou excesso de sono);
Confusão mental;
Dificuldade de conectar ideias e se fazer entender.
Nesse contexto, podem surgir ainda dois outros componentes importantes dos surtos psicóticos: os delírios e as alucinações.
Delírios são crenças inquebráveis, mas que não são reais, como a ideação de um complô ou de uma missão, por exemplo.
Alucinações são alterações na percepção e nos sentidos e ocorre quando se se ouve vozes ou se vê algo que não existe.
Como ajudar alguém com surto psicótico?
Depende. Se a pessoa está agitada e agressiva, ela precisa ser levada a um pronto-socorro psiquiátrico para ser socorrida. "Se ela não estiver agressiva, pode ser levada a um psiquiatra de confiança para que seja avaliada e inicie seu tratamento", afirma Eduardo Perin.
Nos dois casos, no entanto, o diagnóstico da causa do surto e seu acompanhamento devem ser feitos para que a pessoa seja tratada adequadamente e seu estado não evolua para condições mais graves.
Por fim, é importante manter uma postura acolhedora e compreensiva, reconhecendo que a pessoa está doente e que precisa de ajuda para sair daquela situação. "Os surtos psicóticos costumam ser mais simbólicos, chamam a atenção, mas não são difíceis de serem controlados", afirma Lipman. "A parte mais difícil do tratamento é a fase da estabilidade, em que o paciente continua tendo dificuldades e precisa de suporte para ter mais qualidade de vida", afirma.