'Quando descobri endometriose profunda, soube que não estava fingindo dor'
Laís Seguin
Colaboração para VivaBem
05/04/2024 04h05
Ana Beloni, 36, de Vitória, tinha endometriose profunda e após sofrer com fortes cólicas e inchaço abdominal desde os 14 anos, além de dores durante as relações sexuais e dificuldade para engravidar, realizou uma cirurgia para remover os focos da doença. Há pouco mais de um mês, ela precisou retirar duas partes do intestino grosso que estavam comprometidas. A VivaBem, ela conta sua história.
"Descobri que tinha endometriose profunda no mesmo dia em que fui diagnosticada, aos 33 anos. Fiz a minha primeira cirurgia para remover lesões no útero e no ovário há um ano e a segunda há um mês, para remover lesões no intestino. Antes disso, não tinha conhecimento sobre a doença.
A dor que sentia durante a menstruação, que começou aos 14 anos, era desvalorizada e me fazia pensar que estava sendo fraca ou dramática. Nenhum médico nunca tinha cogitado ou pedido qualquer exame que pudesse indicar endometriose.
Minha família sempre teve liberdade para falar sobre menstruação, mas a endometriose era desconhecida para mim, o que dificultava a associação dos sintomas com a doença. Normalizei minha dor, pois outras mulheres ao meu redor também a normalizaram. Após o meu diagnóstico, diversas mulheres da família foram atrás e descobriram ter endometriose.
E a minha relação com a dor era de 'estou sendo fraca'. Sobre não conseguir engravidar, eu pensava 'posso esperar mais um pouco' ou 'estou sendo dramática', 'estou sendo fresca', mesmo sabendo que meu corpo já não estava suportando a dor quando estava menstruada, ainda sim levava para um lado de suportar.
Tinha que aguentar porque todos os médicos falavam que eu não tinha nada. Então, se eu não tinha nada, tudo o que eu estava sentindo era mentira, era fingimento. Era isso que eu sentia. Inclusive, me recusava a ir para o pronto-socorro para tomar medicação porque sempre achava que não precisava, que conseguia esperar um pouco mais.
Sabia que eu sangrava muito, mas todas as mulheres ao meu redor sangravam muito. Sabia que eu sentia muita dor [cólica], muito desconforto em relação sexual, mas aí os próprios médicos falavam que o problema era das preliminares. Diziam que essa dor era porque eu 'não conseguia relaxar'.
Importante ressaltar que não tenho nenhum problema hormonal, nenhuma outra condição ginecológica e também não tenho vaginismo ou alguma disfunção sexual.
Até que teve um dia em que eu, usando coletor menstrual, decidi mandar uma foto para uma outra ginecologista que tinha passado a me consultar quando consegui ter um convênio por que fiquei realmente em dúvida. Naquele dia, saíram muitos coágulos [pedaços de sangue e tecido menstrual aglomerado].
Perguntei a ela: 'isso daqui é normal? Hoje está saindo um pouco mais de coágulo do que costuma sair. E é isso que tento explicar e não consigo'. Ela ficou chocada.
Ela me perguntou se ninguém nunca havia suspeitado que poderia ser endometriose. E aí ela foi muito específica e categórica: 'preciso que você faça o exame com essa médica porque ela é especialista em endometriose e ela vai conseguir fazer o mapeamento. Se você tiver alguma coisa relacionada à endometriose, ela vai falar que tem'.
Foi aí que o meu exame saiu com aquele laudo assustador de endometriose profunda, com focos na parte posterior do útero, ovários e no intestino grosso. E aí a gente correu para fazer a cirurgia e remover essas lesões no útero e ovários.
Minhas lesões no intestino foram removidas um ano depois porque simplesmente não foram removidas na primeira cirurgia. Prefiro não usar o termo 'negligência médica', até porque não sei o que aconteceu para não terem sido removidas, apenas estou relatando o que aconteceu comigo.
Quando a gente fala que tirei duas partes do intestino, parece que é uma coisa muito grande. Mas não, o médico tirou uma parte e aí ele localizou uma outra lesão um pouco mais para cima. Não precisei usar nenhuma bolsa [de colostomia] nem nada disso. Como é uma cirurgia eletiva, fiz o preparo intestinal uma semana antes. A cirurgia foi robótica.
'Essa doença é muito solitária'
A jornada com endometriose é solitária, pois as dores variam de mulher para mulher, afetando diferentes partes do corpo. Por anos, acreditei que a dor menstrual era normal e ajustei minha vida a ela, sem perceber o impacto negativo na minha saúde.
Quando não tinha condições de trabalhar, de fazer qualquer coisa, eu simplesmente faltava. E aí achava que era uma pessoa fresca, privilegiada por não ir trabalhar e não ser penalizada por isso. Quando na verdade, parecia que eu ia explodir de tanta dor que sentia.
Fiquei mais de um ano tentando fazer tratamento com gastroenterologista para entender por que a minha barriga inchava, porque sentia tanta dor. Sentia uma pontada às vezes que ficava desorientada, caía no meio da rua ou perdia as forças onde estivesse. Ficava muito mal. E, na verdade, era 'só' endometriose no intestino.
Tinha esse inchaço, a minha barriga parecia que eu estava grávida de seis meses. Às vezes, começava o dia até ok, mas depois do almoço já ficava insuportável, a roupa não fechava, uma sensação de gases o tempo todo e aí eu fui para a nutróloga.
A gente já tinha tirado glúten, lactose, carne vermelha, mesmo assim continuava com a barriga ficando inchada. Aí a minha médica pediu uma nova ressonância magnética pélvica e um ultrassom com preparo intestinal. Então detectou-se que, na verdade, a lesão que eu tinha de endometriose no intestino [que não foi removida na primeira cirurgia] estava obstruindo o trânsito intestinal. Isso foi antes da minha segunda cirurgia.
A distensão abdominal acontece por conta da inflamação, fica tudo inflamado ali dentro. O corpo não absorve vitamina, tudo é atrapalhado, o cabelo começa a cair e tudo para de funcionar legal.
Essa era uma das partes que eu mais detestava, odiava me ver pelada, odiava. Ficava me olhando, ver meu corpo, nada dava certo, ficava muito, muito inchada, muito péssima, um desconforto intestinal gigantesco o tempo todo. A minha estética ficou muito abalada.
'Virou um paradoxo na minha vida'
Após anos de tentativas frustradas para engravidar, a descoberta da endometriose foi um alívio, pois finalmente entendi a causa da minha dor e infertilidade e pude procurar tratamentos adequados.
Sempre nutri a vontade de ser mãe, desde os 21 anos. Os médicos achavam que eu era uma pessoa que não engravidava porque não relaxava, porque tinha excesso de trabalho. Diziam que eu era muito nova e podia esperar mais um pouco.
Quando fiz 30 anos, todos os médicos começaram a falar: 'Mas por que você começou a investigar agora? Por que você não engravida? A gente só pode esperar um, dois anos. Nossa, agora você já está velha'. Virou um paradoxo na minha vida. Até os 29 eu era muito nova, fiz 30 e era muito velha.
Fertilização em vitro tá aí, processo de adoção também, eu e meu marido, com quem estou há sete anos, já somos habilitados. Não é o não poder carregar na barriga que me afligia, era o não saber por quê.
E quando soube da existência da endometriose, foi libertador, porque soube que não tava fingindo dor, soube que não era fresca, soube que eu não tava sendo frágil, e que inclusive estava sendo forte demais. Daqui a uns seis meses pretendo voltar a tentar engravidar.
'Cuidado multidisciplinar é fundamental'
Após uma outra cirurgia robótica para remover as lesões de endometriose no intestino, minha vida começou a ser normal. A recuperação foi tranquila e estou com um alívio na menstruação que nunca tinha experimentado.
Agora, pós-cirurgia, preciso manter os alimentos inflamatórios longe da minha rotina. Glúten, lactose, tentar consumir o menos possível. Mas está tudo bem. Não precisei ficar na UTI. Foi uma recuperação tranquila.
Sou outra pessoa. Não senti nenhuma crise de cólica, tive minha primeira menstruação pós-cirúrgica e fiquei encantada porque vi a textura de um sangue de menstruação de verdade pela primeira vez."
O que é endometriose profunda
A endometriose é a saída do tecido menstrual da camada interna do útero para fora do útero durante a menstruação, podendo se implantar em vários locais, como ovários, intestino e bexiga, devido à ação da gravidade, o que ocasiona lesões e inflamações.
Estima-se que afete cerca de 10% das mulheres em todo o mundo, totalizando aproximadamente 200 milhões de mulheres globalmente e oito milhões no Brasil. É uma condição clínica em que as causas ainda são investigadas pela medicina.
A endometriose pode ser identificada por sintomas como:
- cólicas menstruais intensas
- dor durante a relação sexual
- inchaço abdominal
- infertilidade
- dor ao urinar ou evacuar
- dor pélvica crônica por mais de seis meses
A endometriose profunda é caracterizada por lesões com mais de cinco milímetros de profundidade.
Para evitar o diagnóstico tardio da endometriose profunda, é fundamental um exame físico detalhado, como o exame de toque, realizado por um médico conhecedor da condição. Após suspeita, podem ser solicitados exames como ultrassom com preparo intestinal ou ressonância magnética com preparo intestinal, realizados por profissionais capacitados.
"O diagnóstico muitas vezes leva entre sete e oito anos para ser alcançado, indicando a necessidade de conscientização da população, programas governamentais de educação sobre a doença, capacitação médica e atenção especial às mulheres jovens com sintomas de dor e cólica, que não devem ser considerados normais. É crucial que essas mulheres não aceitem o desconforto como parte natural da vida feminina e busquem múltiplas opiniões médicas para um diagnóstico adequado e tratamento eficaz", diz o médico ginecologista Marcos Tcherniakovsky, diretor de comunicação da Sociedade Brasileira de Endometriose.
Além disso, segundo o especialista, histórico familiar de endometriose e relatos de dor na adolescência são indicadores importantes. Mesmo pacientes assintomáticos podem ter endometriose, especialmente se houver histórico familiar.
O tratamento da endometriose inclui acompanhamento clínico com uso de anti-inflamatórios e analgésicos para controlar os sintomas e possível uso de anticoncepcionais para regular, diminuir ou eliminar o ciclo menstrual. De acordo com Marcos, casos como o de Ana Beloni, em que há intervenção cirúrgica, não são tão comuns.
A endometriose profunda pode afetar outros órgãos do corpo, como o intestino, devido à inflamação causada pelo tecido endometrial fora do útero. Isso pode levar à formação de aderências e comprometimento funcional do intestino.
Outros órgãos também podem ser afetados, como bexiga e apêndice, por exemplo.
As indicações para cirurgia incluem falha do tratamento clínico, progressão da doença mesmo com medicação, infertilidade e comprometimento significativo de outros órgãos. O objetivo da cirurgia é aliviar os sintomas, melhorar a qualidade de vida e, em casos de infertilidade, aumentar as chances de concepção.
As cirurgias visam remover lesões de forma minimamente invasiva, utilizando técnicas como videolaparoscopia convencional ou assistida por robótica.
"Além disso, um estudo preliminar realizado em Edimburgo, na Escócia, liderado por um especialista em endometriose, investigou um tratamento não hormonal e não cirúrgico para a condição. O estudo começou em 2023 e apresentou resultados promissores ao retirar amostras de pacientes com endometriose durante uma laparoscopia diagnóstica, principalmente aquelas com lesões no tecido peritônio. Embora seja uma abordagem ainda em fase inicial, esse estudo traz esperança para futuros tratamentos da endometriose", acrescenta o especialista.