Aos 34 anos, ela teve três cânceres de uma vez e descobriu síndrome rara
Priscila Carvalho
Colaboração para VivaBem
21/04/2024 04h05
A paulista Gisleide Sousa, 34, criadora de conteúdo, precisou passar por provações ao longo da vida. Dez anos atrás, ela recebeu o diagnóstico de um tumor no colo do útero que migrou para outras partes do corpo. Além disso, ela sentia fortes dores no estômago, sintomas que nenhum médico conseguia decifrar.
Foram anos até encontrar uma resposta para o problema e tentar achar um tratamento adequado. E isso só foi possível depois de ela descobrir que sofre de uma síndrome rara e difícil de tratar. Ela conta ainda que precisa estar forte e ser muito resiliente, pois descobriu um novo câncer, só que agora na mama, no começo do ano passado. Abaixo, Gisleide conta sua história:
"No fim de 2014 comecei a ter sintomas estranhos. Me sentia muito cansada e como estava trabalhando muito na época, assimilei esses sinais às atividades laborais. Engravidei e fui obrigada a procurar atendimento médico e, durante a consulta, a médica viu que estava com um tumor no colo do útero.
Ao fazer mais exames, descobri que estava com câncer nessa região. Durante esse processo, tive um aborto espontâneo. Logo após as primeiras sessões de quimioterapia, minha perna e meu pescoço começaram a ficar com manchas pretas. Resolveram fazer mais exames e uma biópsia, e o resultado da perna veio positivo para melanoma [tipo de câncer de pele] e o do pescoço veio para outro tipo de câncer, chamado carcinoma de Merkel [tipo de câncer de pele considerado raro que atinge principalmente pessoas brancas acima dos 70 anos].
Enquanto isso, sentia muitas dores no estômago e alguns médicos pensaram até em operar para tirar lesões do câncer do útero. Quando fiz a biópsia do esôfago e do estômago, também tive positivo para melanoma. Os médicos consideraram que o câncer da perna migrou e deu metástase no estômago e no esôfago.
Naquele momento, eu tinha três tipos de câncer diferentes.
Os médicos seguiram fazendo quimioterapia e imunoterapia, o que, em alguns casos, pode até aumentar o tumor, pois é padrão. Os especialistas já esperavam por isso. Depois do tratamento oncológico, consegui entrar em remissão.
Retirada do estômago
O tratamento durou cerca de um ano e meio mais ou menos. Continuei com sintomas no estômago, sentia muita dor, muita fadiga e fraqueza. Também tinha uma úlcera no pulmão que não cicatrizava.
Foi então que os médicos decidiram fazer a primeira cirurgia e retiraram 70% do meu estômago. Mas as dores continuavam e eram insuportáveis. Tinha muita diarreia e constipação ao mesmo tempo.
Em 2017, tive a pior crise de falência intestinal. Fiquei em coma, tive sepse e cheguei até ficar com falência múltipla dos órgãos. Os médicos foram até onde conseguiram.
Por um milagre, consegui me recuperar, mas continuava com muitas dores. Comecei a ter problemas de refluxo também, pouco tempo depois dessa retirada de estômago.
Nesse meio tempo, também tive minha filha, que nasceu em abril de 2019, e continuava com muito refluxo. Os médicos atribuíram o problema à gravidez, mas depois viram que a condição já estava causando uma lesão no esôfago.
Já estava desenvolvendo esôfago de Barrett [danos resultantes da exposição recorrente ao ácido estomacal], que podia, facilmente, evoluir para câncer. Cheguei até a fazer cirurgias para corrigir o refluxo, mas cada vez que mexia, piorava mais. Cheguei a um ponto de não conseguir me alimentar por via oral.
Tive que provar que as dores eram reais. As pessoas me chamavam de forte, mas ia lidando como podia.
O estômago que sobrou da retirada ficou disfuncional e por qualquer coisa eu sentia dor. Nem água conseguia ingerir. Além disso, tinha muita diarreia e não era algo comum. Ingeria líquido e ia no banheiro de 20 a 25 vezes.
Cheguei a fazer uma gastroplastia total, que era a retirada por inteiro. O objetivo era curar e tentar encontrar um tratamento correto. Em junho de 2021, retiraram meu estômago por completo e também fiquei aposentada por invalidez.
Depois dessa cirurgia, parei de sentir dor e, aos poucos, fui reintroduzindo os alimentos via sonda. Por uns três meses, consegui me alimentar via oral, mas depois o intestino desandou de novo.
Descoberta de síndrome rara
Em 2021, já tinha uma página em que compartilhava minha história e uso até hoje (@sobrevivendopelomundo).
Nessa época, entre idas e vindas no hospital, conheci uma enfermeira e contei todos os meus sintomas. Ela sofria com síndrome de Ehlers-Danlos e disse que alguns sintomas eram um pouco parecidos com o que eu mencionava.
Ela me encaminhou para a médica que a tratava e fiz diversos exames. Foi nessa época que descobri que também sofria com essa síndrome e veio até um alívio. Porque foi descoberto que as dores que tinha no estômago eram relacionadas à condição.
A síndrome se manifesta de formas diferentes nas pessoas. A gente tem características comuns, mas os sintomas podem ser diferentes. Eu mesma tenho fadiga, intolerância a ficar muito tempo em pé e preciso de oxigênio.
Em alguns dias, estou mais cansada e em outros não tanto. Tem dias que consigo ter uma vida normal, sair, limpar a casa, mas não é sempre.
Não consigo absorver 100% da alimentação e preciso de suplementação. Atualmente, tomo cerca de 16 comprimidos diferentes e a síndrome não tem cura, mas tem tratamento. E é bem individualizado. Tento sempre compartilhar minha história nas redes sociais para as pessoas ajudarem e saberem da minha história, que não é fácil.
Somando a minha renda e a do meu marido, tudo dá aproximadamente R$ 5.000, e gastamos de R$ 7.000 a R$ 9.000 com medicação. Priorizo os mais importantes e, em alguns meses, não consigo comprar todos.
Tenho o apoio da minha família e vou fazendo o melhor que eu posso. O que eu consigo. Faço terapia até hoje, toda semana, e se não fosse Deus e a terapia, não conseguiria suportar psicologicamente. Tento não me cobrar tanto também.
Novo câncer
No ano passado, em janeiro, fazendo o autoexame, senti um nódulo nas mamas. Fazia exames todos os anos e tinha consultas regulares.
O médico pediu uma biópsia e veio o diagnóstico de câncer de mama. Segui com o tratamento e agora estou na décima sessão de imunoterapia. Fiz a cirurgia e tirei o quadrante da mama.
Tive muita intoxicação até a quarta sessão. Sofria muito com os sintomas, muito enjoo, cansaço, mas estou terminando o tratamento."
Câncer no colo do útero
A principal causa de câncer de colo de útero é a infecção pelo vírus do HPV (papilomavírus humano). A maior forma de transmissão desse vírus é por meio do ato sexual. Atualmente, já existe vacina para o HPV, tanto na rede pública quanto na rede privada.
Os principais sintomas desse tipo de tumor aparecem quando a doença está um pouco mais evoluída. Geralmente, ocorre um sangramento anormal, que foge do período menstrual.
Também pode gerar verrugas nas partes genitais. Em uma fase mais avançada, as pacientes podem apresentar algum grau de comprometimento dos rins e problema no intestino, já que o útero está próximo a estes órgãos.
Gisleide conta que estava há aproximadamente dois anos sem fazer exames ginecológicos e só descobriu o problema por causa da gravidez.
Retirada do estômago. Segundo especialistas ouvidos por VivaBem, é possível um paciente viver normalmente sem esse órgão. Contudo, há questões a serem verificadas, como a absorção de vitamina B12, já que alguns indivíduos podem ter alterações intestinais também e a falta desse órgão implica na absorção de certos nutrientes e também na digestão.
O que é a síndrome de Ehlers-Danlos?
É uma síndrome genética hereditária que ocorre devido a mutações de genes envolvidos na produção e na síntese do colágeno em nosso corpo. Há mais de dez tipos distintos e cada um apresenta problemas específicos.
Por causa disso, esta síndrome faz parte de um grupo de distúrbios que afetam os tecidos conjuntivos que sustentam a pele, os ossos, os vasos sanguíneos e muitos outros órgãos e tecidos.
Uma das características das pessoas com a síndrome é a grande flexibilidade, além do normal. Isso significa que a pele pode se esticar além do natural, e que o corpo é muito flexível. Se a pessoa tem a forma mais comum da síndrome, conhecida como hipermobilidade articular, há um risco aproximado de 50% de transmitir o gene com a mutação para um de seus filhos.
Apesar da elasticidade além do normal, as pessoas com síndrome de Ehlers-Danlos apresentam fragilidade dos tecidos, e isso significa que os órgãos do corpo e outras estruturas são mais vulneráveis a danos. A fragilidade tecidual pode se apresentar como hematomas e má cicatrização de feridas em muitos tipos de síndrome.
Alguns tipos da síndrome também podem causar fragilidade severa da pele, vasos sanguíneos, órgãos abdominais, olhos, gengivas e ossos. Além disso, crianças com síndrome de Ehlers-Danlos costumam ter pouco equilíbrio, podem sofrer quedas facilmente, além de deixarem objetos caírem de suas mãos com facilidade.
Estudos já demonstram que os sintomas mais comuns relatados por pacientes são dor abdominal, náusea e constipação. Um dos problemas diretamente relacionados a isso são os movimentos peristálticos, que são responsáveis pelas contrações do trato gastrointestinal para a passagem dos alimentos.
Entretanto, não há nada estabelecido que indique se há maior predisposição de câncer em pessoas com a síndrome de Ehler-Danlos.
Ainda não existe tratamento para curar a síndrome ou para corrigir as anomalias no tecido conjuntivo, porém, as lesões podem ser tratadas.
Fontes: Roberto Hirochi Herai, doutor em Genética e biologia molecular e pós-doutor em genética de microorganismos; Maria Cristina Figueroa Magalhães, oncologista e professora da Escola de Medicina e Ciências da Vida da PUC-PR; e Andréa Gadêlha Guimarães, vice-líder do Centro de Referência em Tumores Ginecológicos do A.C.Camargo Cancer Center (SP).