Com só um pulmão funcionando e transplantado, ela corre e é fisiculturista
Em abril de 2003, aos 30 anos, a gaúcha e professora de educação física Liège Gautério, hoje com 51, acordou com uma dor nas costas. "Achei que fosse muscular e fui para a academia, como de costume. Treinei e percebi que a dor não passava. Voltei pra casa e deixei um bilhete na mesa da cozinha avisando que iria para a emergência do hospital. Chegando lá, identificaram uma pneumotórax e a necessidade de drenar", conta.
A partir daí, começaram as investigações para saber por que apareceram bolhas na tomografia. O diagnóstico final foi o de fibrose pulmonar, uma doença progressiva, que faz com que a pessoa fique sem fôlego aos mínimos esforços.
Piora do quadro e espera pelo transplante
Liège se recuperou, mas após alguns anos seu quadro piorou. Em 2011, ela começou a usar oxigênio suplementar e entrou na fila do transplante pulmonar. "Aguardei por cinco meses, período em que piorei mais ainda", conta.
Lara Cristina Gautério, 45, irmã de Liège, a acompanhou por quase todo o tempo e presenciou momentos difíceis. "Não foi fácil ver a mana, que sempre foi super ativa, com a saúde debilitada, tendo que ficar restrita ao quarto por causa do oxigênio. Mas nunca me passou pela cabeça que ela não fosse sair dessa", diz Lara. "Hoje, percebo que ela esteve perto disso —mais alguns meses de espera e ela não aguentaria. Apesar disso, a mana sempre passou essa confiança", continua.
Uma das maiores dificuldades foi a espera pelo transplante e todas as incertezas que existem nesse período, principalmente a imprevisibilidade de um órgão compatível estar disponível, associada à escassez de doadores e a uma possível progressão da doença e complicações que poderiam impedir a cirurgia, assim como todas as limitações que a doença respiratória grave traz. Douglas Zaione Nascimento, pneumologista, coordenador da equipe clínica de transplante pulmonar da Santa Casa de Porto Alegre, que acompanha e fez o transplante de Liège
Setembro escrito na agenda e saúde atlética
Enquanto esperava, Liège, que estava na reta final do curso de educação física, passou a escrever "setembro" todos os dias na agenda. O motivo é que desejava fazer a cirurgia neste mês, no ano de 2011.
"Eu sempre quis transplantar em setembro, escrevi esse mês em uma agenda e acabei acertando. O motivo principal é que em dezembro e janeiro queria poder ir à praia e já estar bem", conta a gaúcha.
Com os dois pulmões comprometidos, Liège recebeu um transplante unilateral do lado esquerdo, o que lhe garantia um só pulmão "novo" três meses após se formar na universidade.
A operação foi um sucesso e ela precisou de apenas 18 dias de recuperação no hospital. O desejo de curtir a praia nas férias foi realizado e sua forma física e o hábito constante de se exercitar a ajudaram nessa jornada.
Essa vida prévia de exercícios foi fundamental no sucesso da minha recuperação. Mas virei atleta de competição somente após o transplante e vi no esporte uma importante ferramenta para divulgar a doação de órgãos. Liège Gautério
Sencer Camargo, cirurgião torácico do grupo de transplante pulmonar da Santa Casa de Porto Alegre, que participou da cirurgia de Liège, afirma que a atividade física foi de fato fundamental. "Esse único pulmão que ela recebeu supre as necessidades dela e ela pode viver normalmente, como alguém que tem os dois. Isso acontece justamente porque ela se cuida muito e faz muitas atividades físicas", diz.
"Recomendamos que todos os pacientes, quando são listados para transplante, façam uma reabilitação, ganhando massa muscular e perdendo peso. Claro, não é fácil, são pessoas doentes e que têm dificuldade de oxigenação e nem todos são Liège, que é uma mulher jovem ativa", diz Camargo.
Medalha de ouro com um único pulmão
Liège deu ainda mais espaço para o esporte em sua vida e treinou por seis meses para os Jogos Mundiais dos Transplantados, que na época, em 2015, foi sediado em Mar del Plata, na Argentina.
Na preparação, mais uma surpresa: ela descobriu um câncer de mama. Liège, entretanto, decidiu não operar naquele momento. "Como operá-lo iria me impossibilitar de viajar, eu e minha mastologista decidimos realizar a cirurgia após a prova."
No dia da competição, aos 42 anos, ela disparou nos 100 metros rasos e o resultado lhe rendeu o ouro no pescoço.
Fui a primeira brasileira a participar de um mundial para transplantados e consegui a primeira medalha de ouro feminina do Brasil. Por ser histórica, doei para o museu da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, que é do hospital onde fiz o transplante. Liège Gautério
Ao chegar ao Brasil e um mês após ganhar a medalha de ouro, ela fez uma mastectomia radical da mama esquerda e realizou cinco anos de tratamento com medicamento oral.
Após a vitória, Liège participou de mais três mundiais, uma competição latino-americana e dois jogos brasileiros, tudo para transplantados. Ela também fez três competições de atletismo, abertas aos atletas no geral.
"Em 2017, me marcou minha primeira competição de atletismo master, pois competi com pessoas não transplantadas e mesmo com um único pulmão em funcionamento, consegui pódio", conta.
Fisiculturismo e projeto para inspirar transplantados
Em 2019, Liège rompeu o ligamento do joelho e realizou cirurgias em 2023. Entre as recomendações da recuperação, estava não correr por pelo menos seis meses, momento em que ela se aventurou em outro esporte.
Estava com 50 anos e, além de querer ser a primeira transplantada brasileira fisiculturista, quis quebrar alguns tabus relacionados ao etarismo. Era a única com essa idade, as outras competidoras tinham 35 anos. Liège Gautério
Foram quatro meses de treino, seis vezes por semana e uma dieta regrada para conseguir o resultado esperado. "Minha categoria foi a bikini na Copa dos Campeões da IFBB-RS [Federação Internacional de Fisiculturismo & Fitness]. A maior dificuldade foi a de desenvolver a massa muscular. Ainda que minha categoria não exigisse muito volume, como pessoa transplantada faço uso de inúmeros imunossupressores e alguns dificultam o ganho de massa magra", diz Liège. Ela ficou em segundo lugar, mas ganhou um reconhecimento por ser a primeira transplantada a participar da competição.
A atleta também criou o projeto "Se mexe TX", iniciado em 2020, que estimula pessoas transplantadas ou na fila do transplante de órgãos a se exercitarem. "Como profissional de educação física, fico à disposição para orientar os treinos ou atender online. Já para crianças, tem um profissional especializado que as atende presencialmente", diz.
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