'Minha filha de 8 pediu skincare e spa': a alarmante trend 'Sephora kids'
A psicóloga Luciana*, de 42 anos, não se assustou quando a filha Nina, de 8, foi ao shopping com o pai e voltou com uma maquiagem, mas um detalhe chamou a atenção.
"Ela trouxe uma maquiagem de uma marca de adulto, que eu uso. Até então, sabia que ela gostava, mas era uma coisa muito lúdica, como quando ia para uma apresentação de ginástica ou dança na escola", contou a VivaBem.
O que aconteceu na casa de Luciana está longe de ser um caso isolado: nos últimos meses, as chamadas "Sephora kids" ganharam força nas redes socias. A "trend" faz referência a uma das principais marcas de cosméticos do mundo.
São crianças, entre 8 e 12 anos, que fazem vídeos mostrando compras de maquiagens e cosméticos.
Muitas já dizem usar retinol, um anti-idade indicado para peles maduras com foco no rejuvenescimento.
Mas Nina não tem acesso a redes sociais e só vê vídeos no YouTube sob a supervisão dos pais.
Falam que a culpa é dos pais, de deixar as crianças usar o TikTok. Não é o que acontece na minha casa. Isso já ultrapassou as redes sociais.
Luciana
Influência das amigas
Luciana notou que a filha estava por dentro das "trends" do momento por meio das amigas —algumas, na mesma faixa etária, têm canais de tutorial nas redes.
Ela e as amigas estavam falando muito sobre maquiagem, rotina de skincare. A gente passava em uma farmácia e ela pedia um produto, eu dizia que não era para a idade dela. Mas, no aniversário dela, em junho, ela queria uma festa no spa.
Na comemoração, Nina queria fazer skincare, as unhas e máscaras no rosto junto com as amigas. Com muita conversa, a mãe conseguiu convencê-la a fazer uma festa do pijama por ser mais compatível com a idade dela.
'Uma coisa maluca'
Relatos de outras mães nas redes sociais mostram a dimensão do problema. Em um post no X (antigo Twitter), elas falaram do assombro ao perceberem que crianças (muito novas) estavam obcecadas por produtos de maquiagem e experiências de beleza.
"Todas as amigas da minha filha e minha filha obcecadas por skincare, uma coisa maluca, sem sentido", comentou uma. "Minha filha tem 4 anos e foi a um aniversário de uma amiga de 6, em um spa", disse outra.
Uma conhecida postou a festa de 6 ou 7 anos da filha, cujo tema era spa. Um monte de menininhas que, em vez de estarem brincando, estavam deitadas no chão do salão de festa com máscara de creme no rosto.
Relato no X
'As bonecas são elas'
O fenômeno não é exclusividade do Brasil —pelo contrário, tem ainda mais força nos Estados Unidos. À AFP, o dermatologista americano Danilo Del Campo disse que "cada vez mais crianças usam cosméticos para adultos".
"Muitos dos pais que vão à consulta nem sabem que existe um risco e confiam mais nos influenciadores de beleza do que no próprio médico", falou Del Campo.
Michaël Stora, psicanalista especialista em práticas digitais, também demonstrou preocupação —e não apenas pelo impacto na pele das garotas.
"Essas meninas não brincam com bonecas como seria de esperar em sua idade: as bonecas são elas", disse à AFP.
Diferença de gênero
Nas negociações com a filha, a estratégia de Luciana é o diálogo. "A gente conversa muito e eu a faço pensar sobre o que está acontecendo, sobre a forma como as amigas lidam com essas modinhas. É uma questão que me preocupa como mãe."
Luciana acredita que a indústria da beleza bombardeia as mulheres —cada vez mais cedo.
E os adultos estão validando esse comportamento, o que é gravíssimo para a construção de identidade delas. Ela vai entender que precisa ter 'pele boa' para ser chamada de bonita.
Luciana
A psicóloga é mãe de outros dois meninos e vê uma assimetria entre os gêneros.
"Não existe publicidade voltada para conquistar meninos pré-adolescentes, por exemplo. Existe o shampoo de super-herói, para 5 ou 6 anos de idade, e depois vai para o adulto."
O irmão mais velho de Nina vai ao dermatologista por causa da pele oleosa e usa um sabonete específico e filtro solar. "E a Nina já usa filtro solar normalmente, porque tem a pele muito clarinha. Mas é uma preocupação minha de saúde."
Ela veio falar que queria fazer uma rotina de skincare coreano [que nomeia 10 etapas para a 'pele perfeita']. Essa não deveria ser uma preocupação para ela tão cedo.
Luciana
Prejuízo emocional
Luciana acredita que o prejuízo de toda essa pressão vai muito além da pele. "É um impacto muito grande para a formação dessas meninas muito novas. Os filtros, que são completamente disseminados [nas redes sociais]... a menina passa a ter como padrão e criar expectativa irreal de rosto sem poros, algo que não existe."
Nina e a mãe têm um acordo: ela pode se maquiar uma vez na semana com blush, batom, delineado e iluminador. "Um dia ela falou que ficava muito feliz quando falavam da maquiagem dela, que era muito linda. Fiquei pensando como isso impacta a autoestima dela."
Tenho tentado conversar sobre a importância de amar ser quem ela é, independentemente de aparência. Focar em outros atributos que não a beleza. E também tenho focado os elogios que faço a ela não em questões ligadas a beleza e aparência, mas em atitudes.
Luciana
Riscos são físicos e mentais
Cultura de adultização das crianças. Segundo o pediatra Daniel Becker, todo esse movimento incentiva que a infância seja abreviada. "A adultização é um processo em que a infância vai sendo amputada por uma série de movimentos da sociedade."
O consumismo é, de longe, o pior. A associação do afeto das crianças com a publicidade, com marcas de roupa, maquiagem, skincare... coisas que deveriam ser preocupações de adultos.
Daniel Becker, pediatra
Meninas são as principais vítimas. "Elas têm uma tendência maior a se autojulgarem, a se deixar comparar com os outros, a se deixar afetar por todos os padrões da mídia. Por uma questão cultural, sexista da nossa sociedade, elas são empurradas para esse mundo muito cedo."
Redes sociais são um gatilho, e as de vídeo curto são mais viciantes. Segundo Daniel Becker, os riscos da exposição a redes sociais são múltiplos. "As crianças ficam praticamente incapacitadas de fazer outra coisa, não conseguem sair de dentro dessas plataformas."
Você tem ali um enorme risco de crianças, especialmente pré-adolescentes, começarem a receber conteúdos relacionados a comparações extremas, com pessoas usando filtro. Coisas que vão afetar a autoestima dela, direcionar o olhar dela para si mesma, para um olhar crítico e não satisfeito, o que é sempre muito perverso para as crianças.
Daniel Becker, pediatra
Saúde mental afetada. "Com isso, elas vão sendo também direcionadas para eventos de dietas radicais, de exercícios, e começam a desenvolver transtornos alimentares graves. Você vai minando a autoconfiança dela, a autoestima, e a deixando ansiosa e deprimida."
Para pais e mães que já percebem o foco de meninas em cosméticos, Becker orienta uma "remoção gradual", com redução de danos, e bastante diálogo. "Tem de realmente limitar e principalmente conversar, orientar, dizer que o foco dela é outro, que ela não é uma mulher adulta e não tem de se preocupar com essas coisas." O especialista, no entanto, diz que essas medidas podem se tornar infrutíferas se o acesso às redes sociais não for limitado.
Adiar o acesso ao celular. Para Becker, os pais devem evitar dar celular cedo para os filhos —o ideal é começar no ensino médio, por volta dos 16 anos. Segundo ele, as vias cerebrais que geram o vício são afetadas pela repetição excessiva de uma atividade.
Com o celular muito mais cedo, isso pode ser mais intenso e com consequências piores.
Daniel Becker, pediatra
As plataformas têm regras para acesso de crianças, com limites de idade. O TikTok e o Instagram, por exemplo, estão disponíveis para pessoas com 13 anos ou mais.
*O nome completo foi omitido para preservar a identidade.