Em meio a brigas com plano de saúde, crianças com TEA ficam sem tratamento
Em meados de fevereiro, famílias de Campinas (SP) receberam um comunicado do plano de saúde que as deixou desnorteadas. Em cerca de 15 dias, teriam de seguir com o tratamento dos filhos com autismo em uma nova clínica. O aviso chegou por telegrama, e-mail ou telefonema.
VivaBem conversou com três mães que passaram pela situação. Segundo elas, tão ruim quanto a mudança repentina foi a condução sem diálogo e sem acolhimento. Pessoas com TEA (transtorno do espectro autista) costumam ser apegadas a rotinas e padrões, e qualquer mudança brusca pode gerar sofrimento.
Conforme os relatos, as clínicas indicadas pelo convênio médico ou estão longe de onde moram ou não têm os recursos necessários para atender as crianças. O remanejamento ainda oferecia menos horas de terapias e em horários inviáveis para a rotina das famílias.
Sem outras opções, o tratamento teve de ser interrompido. Sem o suporte necessário, os prejuízos começaram a aparecer.
Reflexos no dia a dia
Ele ficou muito agressivo, veio para cima de mim algumas vezes, agrediu algumas das minhas irmãs, coisa que nunca fez. Andreia dos Santos, 42, sobre o filho Rafael, 10, após a interrupção do tratamento
"Me desestabiliza quando ele tem esse comportamento", diz a mãe. Com autismo nível 3 de suporte, ele precisa de acompanhante 24 horas por dia e mais recursos para se desenvolver.
O tratamento especializado desde 2019 vinha surtindo efeito e dando apoio na escola. Agora, a preocupação impera. "Tirou a minha paz", diz Andreia.
Uma pesquisa do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) com a PUC-SP mostrou que a negativa de cobertura assistencial pelas operadoras de saúde para tratar pessoas com autismo lidera o número de processos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O estudo identificou 40.601 ações com negativas entre janeiro de 2019 e agosto de 2023. Dessas, 16.808 informavam a condição de saúde a ser tratada, com indicação do número da CID (Classificação Internacional de Doenças).
Os TGD (Transtornos Globais de Desenvolvimento), que inclui o autismo, liderou o número de processos, com 3.027 casos.
As famílias de Campinas aguardam parecer da Justiça para voltar com o tratamento dos filhos. "Meu filho é suporte 2, ele precisa muito dos tratamentos de ABA, que está reduzido e impactando muito no comportamento dele", diz Bruna Barbosa, 37, mãe de Thomaz, 8.
O menino estava há quatro anos na mesma clínica, que se dispôs a seguir com o tratamento de algumas crianças, incluindo ele, de forma gratuita, temporária e com carga horária reduzida.
Ele tem padrão rígido de comportamento. Quando quebra esse padrão, vem estresse, crises, agressividade e é difícil de controlar. Bruna Barbosa
Pedagoga com pós-graduação em análise do comportamento aplicada ao TEA, Bruna faz atividades complementares em casa com o filho para tentar minimizar o impacto negativo.
A enfermeira Marina Terra, 41, diz que a decisão unilateral do plano de saúde "desestruturou" todo o planejamento da família, cujo filho Vitor tem 7 anos. Sem tratamento, o menino fica mais agitado, com sono e apetite desregulados.
Na escola, professores já sinalizaram um desafio maior para lidar com ele, que é nível 1 de suporte. O próprio Vitor se opõe à nova clínica e diz querer voltar para onde estava. Marina percebe que todo o progresso que ele vinha conquistando nos últimos seis anos —como habilidades sociais e emocionais— está sendo perdido.
Briga é antiga
Em 2022, o plano de saúde da pedagoga Erika Moreira, 47, descredenciou a clínica onde o filho dela, Abayomi Daudi, 13, fazia tratamento. As opções disponibilizadas também não atendiam às necessidades do menino.
Meu filho é adolescente, e hoje, infelizmente, tudo que é oferecido nesta clínica de indicação é para primeira infância: sala com mesinhas e materiais infantilizados. Erika Moreira
A situação foi parar na Justiça, mas ainda sem resposta. Por enquanto, o tratamento é feito só com psicólogo.
Reclamações sobre autismo junto à ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar)
- 2020: 1.376
- 2021: 3.170
- 2022: 6.315
- 2023: 14.628
- 2024 (até março): 4.025
Bacharel em direito, Meire de Oliveira Lemos, 41, vê os direitos do filho Vítor, 6, sendo negligenciados há quase dois anos. Em junho de 2022, o plano de saúde avisou sobre o descredenciamento da clínica onde ele estava, perto de casa, e o encaminhou para outra, da rede própria, a 27 km de onde moram.
São quatro horas desafiadoras de transporte público, ida e volta. O menino é autista nível 3 de suporte, tem comportamento agitado e grande hiperatividade devido ao TDAH (transtorno do déficit de atenção e hiperatividade). Também anda na ponta dos pés (marcha equina), o que prejudica a pisada.
Desde novembro de 2022, Meire tem uma decisão liminar favorável a ela para que o convênio forneça as horas de terapia indicadas pelo médico, mas nada foi cumprido até agora.
"A juíza pediu perícia médica para avaliar as condições do Vítor. Em novembro do ano passado, ele passou por perícia, e o processo está em fase de sentença", ela diz. Mãe solo, Meire parou de trabalhar em 2019, mora com os pais e recebe o benefício assistencial à pessoa com deficiência.
Em nota à reportagem, a ANS cita a Lei 9.656/1998, que permite o descredenciamento de prestadores, mas com regras diferentes para cada tipo de unidade de saúde. No caso de consultórios e clínicas, "só podem ser descredenciados se forem substituídos por outro equivalente."
Além disso, "a operadora deve comunicar aos beneficiários através do seu site e da Central de Atendimento, com 30 dias de antecedência", diferente do relatado pelas famílias de Campinas.
Teoricamente, o plano não pode deixar o paciente sem o devido tratamento. Cristina Rocha, advogada especialista em direitos da pessoa com deficiência e mãe de autista
Segundo a advogada, a conduta dos convênios médicos não resguarda o básico do atendimento, que é fazer uma troca gradativa para uma clínica tão boa quanto a atual e com profissionais especializados em TEA.
O histórico de decisões judiciais indicam que, na indisponibilidade de tratamento, o plano é obrigado a fornecê-lo mesmo fora da rede credenciada, pagando de forma integral direto à clínica ou por reembolso ao cliente.
A ANS disse que os planos de saúde são "obrigados a oferecer todos os procedimentos previstos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS para atendimento integral da cobertura prevista", conforme critérios definidos, e que não é não permitida, "sob qualquer alegação, a negativa indevida de cobertura assistencial".
Em junho de 2022, a ANS determinou a obrigatoriedade de cobertura para quaisquer técnicas ou métodos indicados pelo médico assistente para o tratamento de pacientes com Transtornos Globais de Desenvolvimento (TGD), entre os quais estão os com transtorno do espectro autista (TEA). ANS, em nota
Tratamento deve ser constante
O tratamento de cada criança com autismo é individualizado. As necessidades dela, a condição da família, o local onde mora e a escola que frequenta, por exemplo, são levados em consideração.
Quando se pensa em mudanças de tratamento ou interrupção de clínica, a família e os profissionais envolvidos devem sempre fazer isso da forma mais gradual e cuidadosa possível, levando em consideração características e outras condições que a criança tenha. Juliana Dantas, psiquiatra da infância e adolescência
A médica diz que a dificuldade de lidar com mudanças faz parte dos sintomas do autismo. Quebrar vínculo com profissionais a que ela está acostumada e trocar o ambiente pode levar a sofrimento emocional.
Maria Flor, 7, filha da ativista Andrea Medrado, 36, faz terapia desde os dez meses de idade. Quando o rol taxativo dos planos de saúde foi aprovado em agosto de 2022, as dificuldades com o convênio começaram.
Foi a primeira vez que ela ficou tanto tempo sem terapias. Por causa disso, Maria Flor começou a tomar medicação para ansiedade e evitar crises. Se as terapias não tivessem sido interrompidas, ela não precisaria de medicação. Andrea Medrado
Segundo ela, a clínica indicada pelo plano de saúde não tinha profissionais capacitados para o atendimento da menina, que tem síndrome de Pitt-Hopkins, que causa problemas no neurodesenvolvimento, fazendo com que a pessoa tenha problemas cognitivos e de fala, autismo nível 3 de suporte e não fala.
"Quando uma criança com TEA começa um tratamento específico para autismo, qualquer interrupção é prejudicial", diz Joana Portolese, coordenadora do Programa de Transtornos do Espectro Autista do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo).
Ela diz que há grande risco de a criança perder os ganhos obtidos, podendo estagnar, deixar de fazer o que aprendeu ou não evoluir. "É como se aquele cérebro deixasse de ser estimulado", afirma.
O impacto ocorre tanto quando a interrupção é completa como quando o tratamento tem carga horária menor do que a recomendada.
No autismo, precisamos que o estímulo seja constante, frequente e intenso. Joana Portolese, neuropsicóloga
Portolese explica que o tratamento foca em um conjunto de sintomas, não em um único prejuízo. Por exemplo: trabalhar comunicação social envolve linguagem, percepção social e aspectos motores.
Tratamento é garantido por leis
A Constituição Federal, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e o Estatuto da Pessoa com Deficiência garantem o direito de acesso à saúde por pessoas com autismo.
Antes de chegar ao Judiciário, um caminho é reclamar na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que é o órgão regulador dos planos de saúde.
Diante do descumprimento de leis e liminares, a advogada Cristina Rocha orienta comunicar o Poder Judiciário em todas as esferas cabíveis e quantas vezes for necessário.
"Precisa conversar, pedir audiência com o Judiciário e explicar, porque muitos juízes não sabem o que é autismo, não têm noção do prejuízo causado pela espera sem tratamento", diz.
Ela indica onde denunciar:
- Dentro do próprio processo judicial;
- Junto ao Ministério Público;
- Em promotorias especializadas em crianças e adolescentes (se for o caso);
- Nas delegacias especializadas em pessoas com deficiência.
A ANS orienta, primeiramente, procurar a operadora para resolver o problema. Caso não seja resolvido, registre a reclamação junto à agência pelos canais de atendimento:
- Disque ANS (0800 701 9656): atendimento telefônico gratuito, de 2ª a 6ª feira, das 8h às 20h, exceto feriados nacionais;
- Formulário eletrônico?Fale Conosco na Central de Atendimento ao Consumidor;
- Central de atendimento para deficientes auditivos: 0800 021 2105;
- Núcleos da ANS existentes em 12 cidades do país, de 2ª a 6ª feira, das 8h30 às 16h30, exceto feriados nacionais.
Rocha explica que decisões liminares têm caráter de urgência e devem ser cumpridas imediatamente. "Os planos de saúde são muito focados no financeiro. Mesmo em processos que o juiz aplica multa, eles acham mais barato cumprir a multa do que oferecer o tratamento."
Tratamento com horas reduzidas também é entendido como negativa, pois vai contra a definição médica para o cuidado da pessoa. "É crime", afirma.
Rocha diz que o tratamento é baseado na supremacia médica, e o plano não pode definir qual medicamento ou terapia vai oferecer para uma condição.
O STJ [Superior Tribunal de Justiça] entende que os planos de saúde podem escolher a condição a tratar, mas não o tratamento oferecido. Cristina Rocha, advogada
Há várias abordagens para tratar o TEA, e a ANS reforça que "a escolha do método mais adequado deve ser feita pela equipe de profissionais de saúde assistente com a família do paciente".
A deputada estadual Andréa Werner (PSB) disse à reportagem que cerca de 20% das denúncias recebidas por seu gabinete ao ano são relacionadas a problemas com planos de saúde. A parlamentar é autista e luta pela causa desde 2010, muito antes de ser eleita, quando seu filho também foi diagnosticado com TEA. Por isso, muitas pessoas a procuram em busca de ajuda na luta pelos direitos de pessoas autistas e com deficiência.
Segundo ela, as empresas não estão preocupadas com as multas, são necessárias ações mais extremas para conseguir o cumprimento de decisões judiciais.
Tem que pedir prisão dos diretores. Os advogados dos planos de saúde estão acostumados com esse tipo de processo, não adianta partir para multa. Andréa Werner, deputada estadual
O lado dos planos de saúde
A reportagem procurou instituições que representam os planos de saúde. Por nota, a Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde) disse entender "o enorme desafio das terapias ligadas aos transtornos globais do desenvolvimento (TGD), em especial aos transtornos dos espectros autistas (TEA)."
A instituição afirmou que a "ausência de diretrizes de utilização claras e objetivas gera insegurança que vai desde o diagnóstico até o tratamento adequado" e que "é importante que a ANS e as entidades de profissionais de saúde indiquem protocolos que possuam evidência científica, eficiência e eficácia colocando o paciente no centro do cuidado, trazendo diretrizes que auxiliem a todos na condução dos tratamentos."
Eles concluem o comunicado dizendo que, "em busca de entregar o melhor cuidado e ter um acompanhamento mais próximo, nos últimos anos as operadoras de planos de saúde estão investindo em parcerias e inaugurando clínicas próprias para atender este enorme contingente de pessoas."
A FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar) também respondeu os questionamentos da reportagem por nota. Nela, afirmam que observam com atenção o aumento das reclamações, que são um "importante balizador para a identificação de pontos de melhorias de serviço".
Dizem também que o crescimento de solicitações têm "levado a um esgotamento da rede de atendimento voltada para o tratamento do Transtorno de Espectro Autista (TEA). Ainda assim, as operadoras de planos de saúde lançam mão de todos os recursos possíveis para garantir o atendimento adequado dentro dos prazos previstos na regulação do setor."
E reforçam: "A substituição ou exclusão de prestadores são permitidas dentro das condições previstas em regulação".
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.