'Me achavam antipático': ele descobriu autismo aos 41 e quer deixar legado
Com dificuldades de conversar olho no olho, ter uma relação próxima e até almoçar com colegas de trabalho, Walter Costa, 42, era visto como um profissional (e um chefe) antipático e inflexível.
Ao se identificar com a história de uma senhora diagnosticada tardiamente com autismo, o coordenador de responsabilidade corporativa questionou seu psiquiatra se havia a possibilidade de ele ter o transtorno.
A confirmação veio aos 41 anos e, passado o choque inicial e o medo do preconceito, Walter não se limitou a viver dentro de uma caixinha e passou a trabalhar em causas para dar voz ao autismo no mundo corporativo. A seguir, ele conta sua história:
"Minha mãe conta que no primeiro ano de vida eu só chorava, não interagia, não brincava, não sorria. Ela me levou em vários médicos na tentativa de descobrir o motivo pelo qual eu chorava tanto, chegou a me dar medicação e até fez simpatia para me acalmar.
Sempre fui diferente das outras crianças e vivia no meu próprio mundo. Meus irmãos eram pessoas extrovertidas e brincalhonas que sempre tiveram muitos amigos. Já eu sempre tive dificuldades de socialização, era aquele adolescente recluso que preferia ficar sozinho em casa estudando a sair ou viajar com a família. As pessoas achavam estranho, mas para mim era um refúgio, me dava a sensação de conforto.
Eu até fazia amizade com alguém se nós tivéssemos um interesse em comum, mas não conseguia manter essa relação por muito tempo se o assunto mudasse. Por exemplo, tinha um hiperfoco, sou fã da cantora Sandy. Ouvia as mesmas músicas todos os dias, era capaz de conversar por horas sobre álbuns, shows, mas se a pessoa quisesse falar sobre outra coisa, perdia o interesse e a amizade não evoluía.
Aos 18 anos, comecei a ficar cada vez mais isolado e minha mãe me levou ao psiquiatra. O médico me diagnosticou com depressão e síndrome do pânico. Ele me receitou medicação e comecei a fazer terapia. Alguns comportamentos considerados estranhos (que eram do autismo, mas eu desconhecia) ficaram mais evidentes quando comecei a trabalhar.
'Raramente almoçava com colegas'
Aos 28, ocupei minha primeira cadeira de líder e meu chefe dizia que eu tinha de olhar nos olhos dos meus colaboradores ao dar uma orientação para transmitir credibilidade.
Mas era difícil manter o contato visual por muito tempo, me causava desconforto. Porém, isso não invalidava a profundidade do que eu estava falando. Para disfarçar, ao conversar com um colega, passei a olhar para algumas partes do rosto da pessoa, para o pescoço ou para a testa.
Outro ponto era a falta de filtro, falava as coisas de forma muito direta, sem contextualizar ou até elogiar o trabalho do funcionário antes da crítica. Durante o feedback, já apontava o que ela tinha feito de errado e as possíveis consequências.
Eu me importava com as pessoas, tentava ser empático, mas não sabia como transmitir a mensagem de forma sutil. Era visto como um profissional inflexível, perfeccionista, antipático e antissocial
Quando participava de workshops e recebia um grande fluxo de informações, precisava fazer uma pausa senão sofria um apagão. Uma estratégia era almoçar em 15 minutos e usar os outros 45 para descansar no meu carro. Raramente almoçava com meus colegas ou participava de happy hour.
Tenho seletividade alimentar, como a mesma comida todos os dias desde criança, e tenho hipersensibilidade a algumas texturas, cheiros e sons. Além disso, as luzes, o barulho, o toque das pessoas, tudo me incomoda e sinto a necessidade de ir embora e ficar em silêncio.
Nunca me encaixei em um padrão, eu me sentia diferente e sempre levava essas questões aos profissionais de saúde que me acompanhavam, mas eles não me entendiam. Eles propunham técnicas e sugestões que não funcionavam e eu interrompia o tratamento. Dos 18 aos 41 anos passei com seis psiquiatras e pelo menos dez psicólogos.
Do choque à transformação
Um dia estava esperando uma consulta no dentista e comecei a ler uma matéria no celular sobre uma mulher que havia sido diagnosticada com autismo aos 60 anos. Eu me identifiquei com várias coisas que ela tinha vivido, parecia que ela estava falando de mim.
Já tinha ouvido sobre autismo, mas minha referência sobre o espectro era de casos graves e diagnosticados na infância. Não imaginava que um adulto que estuda, trabalha, é casado e tem filhos poderia ter a condição.
Perguntei ao meu psiquiatra se havia alguma possibilidade de eu ter autismo ou se era coisa da minha cabeça. Ele disse que havia a suspeita, mas que ele não queria me colocar esse rótulo. Após quatro meses de avaliações, fui diagnosticado aos 41 anos com transtorno de espectro autista, em outubro de 2022.
Em um primeiro momento foi um choque, tive um período de luto, cheguei a me questionar quem eu era e se tudo o que tinha vivido tinha sido uma fraude. Depois veio o desejo de transformar esse sentimento negativo em algo bom e ajudar outras pessoas que poderiam estar na mesma situação que eu.
Minha esposa ficou preocupada que o diagnóstico pudesse me prejudicar na empresa, ela temia que eu fosse julgado ou sofresse preconceito, mas fui acolhido, recebi o apoio de todos e foram implantadas algumas iniciativas para ampliar a discussão sobre o tema.
Atualmente sou coordenador de responsabilidade corporativa na Apsen, mas me tornei mais ativo em outras atividades paralelas.
Minha primeira ação foi gravar um depoimento contando a minha experiência, que foi divulgado nos canais internos e externos da empresa. Minha segunda ação foi me tornar voluntário de um programa de interno chamado "Deixe seu Legado".
Nele, dou mentoria para dois funcionários que têm autismo. É uma troca, aprendo com eles para que mais talentos como nós ocupem espaços e a gente transforme o mercado de trabalho e a sociedade.
'Quero dar voz ao autismo no mundo corporativo'
Se eu tivesse recebido o diagnóstico aos 18 anos, quando fui ao psiquiatra pela primeira vez, talvez eu tivesse me limitado a viver dentro de uma caixinha. Profissionalmente falando talvez não teria sido competitivo, não teria me jogado no mundo, não teria buscado vagas de liderança e não teria a carreira bem-sucedida que tenho hoje. Claro que tive prejuízos pelo diagnóstico tardio, mas acredito que naquela época não teria o acompanhamento que tenho atualmente.
Independentemente de como as coisas aconteceram, não desisti de achar uma resposta para algo que não se encaixava em mim. E quando encontrei essa resposta transformei em algo maior do que eu mesmo, dar voz ao autismo no mundo corporativo."
DIAGNÓSTICO DE AUTISMO EM ADULTOS
Fabrícia Signorelli, psiquiatra colaboradora do Programa de Atenção a Primeira Infância e do Ambulatório de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) no adulto da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), explica que, apesar de cada vez mais comum, o diagnóstico de autismo na vida adulta ainda pode ser desafiador.
Isso porque muitos indivíduos aprendem a mascarar os sintomas para se adequar às expectativas sociais ou desenvolvem estratégias de enfrentamento ao longo da vida, dificultando sua identificação ou fazendo com que pareçam leves.
Outra questão que dificulta a avaliação clínica é a presença de comorbidades psiquiátricas, como sintomas de ansiedade e depressão que se sobrepõem aos sintomas do autismo.
DESAFIOS NO AMBIENTE DE TRABALHO
A psiquiatra explica que profissionais com autismo podem ter dificuldade em identificar, em se expressar, em comunicar seus sentimentos, em entender as relações sociais no ambiente de trabalho e podem responder de forma não adequada a diferentes situações que a rotina exige. Tudo isso pode afetar o bem-estar da pessoa e gerar problemas de relacionamento, isolamento social e mal-entendidos.
Pessoas com TEA tentam disfarçar seus comportamentos ou minimizar suas dificuldades para que não sejam notados pelos colegas, esse mecanismo é chamado de camuflagem social. Estudos mostram que essa tentativa de parecer socialmente mais adequado (manter contato visual, imitar outras pessoas, se mostrar interessado em uma conversa) causam um desgaste diário e é um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos como depressão e ansiedade.
Outro desafio é se fixar em assuntos específicos, ter dificuldade em se engajar em atividades variadas, ter pouca flexibilidade para alternância ou mudar de tarefas que são delegadas. Os aspectos sensoriais do ambiente como barulho, odores e luminosidade também podem gerar sobrecarga e sofrimento.
O AMBIENTE CORPORATIVO IDEAL
Signorelli afirma que é preciso conhecer as características individuais do adulto com TEA para adequar o local de trabalho, definir sua função e atender suas necessidades de forma a garantir um ambiente que proporcione seu bem-estar.
Isso pode variar desde trabalhar em uma sala isolada, em um ambiente mais silencioso, não participar de reuniões com muitas pessoas, ter menos interação, não trocar de tarefas ou turnos, precisar de mais tempo para executar atividades, receber menos demandas diárias ou ter prazos mais longos para entregar um trabalho.
É preciso oferecer oportunidades de trabalho compatíveis com os perfis de pessoas com autismo. Para isso deve-se considerar que alguns padrões de comportamentos podem ser vistos como características especiais. Essas habilidades podem e devem ser utilizadas no mercado de trabalho.
COMO COLEGAS DE TRABALHO PODEM AJUDAR
Devem agir naturalmente, ter empatia, tentar compreender as demandas práticas e emocionais, demonstrar preocupação, estar atentos às necessidades e dispostos a ajudar —esse é um fator determinante para a inclusão de pessoas com autismo.
Devem evitar o capacitismo, que é uma forma de discriminação, em que se julga que as indivíduos com TEA não são capazes ou são inferiores. Devem evitar também o preconceito que irá impactar no autoconceito, autoestima e na forma como essas pessoas são vistas socialmente.
O PAPEL DAS EMPRESAS
Uma das principais ações da empresa é adequar o ambiente e preparar a equipe para receber o novo profissional. Para isso, a companhia precisa fornecer informações sobre o que é o transtorno do espectro autista, explicar sobre as dificuldades de comunicação, de interação social, os padrões restritos e repetitivos de comportamento. Não é incomum que muitas pessoas ainda entendam o transtorno como os casos mais graves, de pessoas que não falam e que ficam isoladas.
É fundamental dar informação, orientação e conhecimento para evitar mal-entendidos, derrubar estigmas e incentivar o respeito.
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