'O autismo e a corrida me fizeram descobrir minha força física e mental'

A publicitária Rebeca Sales, 34, mais conhecida como Beca, sempre se considerou uma introvertida. Ela não é de conversar amenidades no elevador, abraços a deixam constrangida e olhar nos olhos das pessoas nem sempre é fácil. Um perfil tímido, diriam.

Ter crescido no interior de São Paulo e morar sozinha há 17 anos contribuiu para essa autopercepção de mais reservada. Mas para ela, esse processo mascarou comportamentos sociais que, na verdade, estavam ligados ao autismo.

Foi quando precisou voltar ao convívio social após dois anos em isolamento por causa da pandemia que Beca notou algo diferente. O que antes eram incômodos começou a causar sofrimento.

"Percebi que trabalhar com barulho me incomodava, que as interações me deixavam ansiosa. Tinha desacostumado e, na ressocialização, as coisas me incomodavam demais", conta.

Ela começou a conversar com o terapeuta sobre as novas percepções, já suspeitando que pudesse ser autismo. Na época, os dois estavam assistindo à série Atypical, cujo protagonista está no espectro autista.

"Tinha atributos [do personagem] que eu identificava em mim que eram menos visíveis para outras pessoas e perceptíveis para mim", comenta.

Por exemplo: Beca sempre vai aos mesmos restaurantes e visita os mesmos locais, pois já sabe como eles funcionam e é ter informações prévias que a deixa segura no ambiente. Do contrário, sente-se ansiosa.

Ela e o terapeuta foram maturando o tema nas sessões até a publicitária decidir consultar uma neuropsicóloga especializada em TEA (transtorno do espectro autista).

Diagnóstico, tabu e aceitação

"Foi um processo moroso", define Beca. Entre começar a falar sobre autismo e de fato ter coragem para ir atrás do diagnóstico, foram cerca de oito meses. Na investigação, há cerca de dois anos, ela fez um teste psicológico adaptado do teste para crianças.

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Além disso, existia certo tabu na cabeça dela quanto ao resultado. Se fosse autismo mesmo, será que conseguiria viver tudo que havia planejado? O que mudaria?

"Foi um processo muito demorado para eu digerir a informação e, principalmente, começar a falar sobre isso. Me abri muito tempo depois para minha rede de apoio, foi um processo de educação para as pessoas, o que aquilo representava para mim e quem sou", diz.

Beca conta que sempre quis ser extrovertida, mas agora entende que pode ser menos introvertida.

O diagnóstico foi uma experiência transformadora, porque foi libertadora. Não no sentido de usar como desculpa para qualquer coisa, mas no sentido de aprender a acolher minhas limitações. Beca Sales

Há seis meses, ela mudou para um trabalho 100% remoto, que poupa sua bateria social, a deixa menos ansiosa, com menos crises e permite investir tempo e energia onde se sente bem.

Corrida como refúgio

No mesmo período em que suspeitava do autismo, Beca encontrou na corrida uma forma de aliviar a ansiedade e lidar com as crises de meltdown e shutdown.

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  • Meltdown: geralmente, acontecem em situações que provocam um aumento muito grande de ansiedade, e a pessoa externaliza o sentimento, podendo ter acessos de raiva, choro e/ou ataques de pânico agressivos.
  • Shutdown: diante de uma situação muito estressante e de sobrecarga, a pessoa se fecha, e pode apresentar comportamentos como mutismo seletivo, olhar vazio e paralisação. É uma crise "interna".

"Eu estava passando por isso sem saber, um nível de ansiedade acima do normal", lembra.

Como fazia um tempo que Beca achava a corrida interessante, se propôs a fazer a atividade como forma de descompressão. Em três meses de prática, já sabia tudo sobre esse universo: tipos de tênis, distâncias, tempos dos amadores, quem eram as pessoas.

A corrida permite à Rebeca o conforto de que precisa sendo uma pessoa no espectro autista
A corrida permite à Rebeca o conforto de que precisa sendo uma pessoa no espectro autista Imagem: Diogo Brum

"Virei especialista no assunto sem saber que tinha virado meu hiperfoco. Me fez muito bem, não só no sentido físico, mas mental", diz.

O autismo e a corrida me fizeram descobrir minha força física e mental, me conectar direto comigo, entender e acolher todas as partes de quem eu sou.

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Quando o autismo foi confirmado, Beca teve dificuldade de encontrar referências que comunicassem que o espectro não seria impeditivo para fazer algo. Então, percebeu que ela mesma poderia ser essa voz, usando o esporte como meio para alcançar mais pessoas.

Representatividade na corrida

No ano passado, Beca tornou seu perfil no Instagram público pela primeira vez para se inscrever na Asics FrontRunner, uma comunidade de mais de 600 corredores de 33 países que vivem e incentivam exercícios físicos como forma de manter corpo e mente sãos.

"Fiz dois posts discretos. Lembro que escrevi na inscrição que era autista nível 1 de suporte e que, se passasse, eu falaria sobre o assunto", conta.

Mas depois entendeu que não precisaria desse aval para começar a debater o tema. "Decidi produzir um vídeo para falar sobre o assunto pela primeira vez nas redes sociais."

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"Vi na corrida a possibilidade de mostrar para as pessoas que ela é um espaço para todo mundo", diz Beca. "É maravilhosa e acolhedora, mas tem muito para caminhar em termos de representatividade."

Ela não entrou para a comunidade no ano passado, mas se inscreveu novamente esse ano, com mais embasamento de conteúdo, e entrou para o time global de corredores. "Tem sido uma grata surpresa tudo o que está acontecendo."

Autismo e exercícios físicos

A neuropsicóloga Bárbara Calmeto, diretora do Autonomia Instituto, fala da importância dos exercícios físicos para pessoas com autismo. "Ajuda no tônus muscular, no equilíbrio, na execução de movimentos, na concentração e na acomodação sensorial", diz.

Na parte social, ela menciona benefícios para uma vida mais independente, com mais autonomia, mais motivação no dia a dia e controle dos comportamentos.

Os estudos que analisaram os efeitos da atividade física em pessoas com autismo têm poucos participantes e focam mais na parte motora/física. Mais pesquisas são necessárias.

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Uma revisão sistemática mostrou que, em jovens adultos (19 a 30 anos), os exercícios promovem melhorias mais significativas na aptidão física, na parte motora, na função psicológica e melhorias de pequeno a grande porte na qualidade de vida.

Outra revisão da literatura, com 140 crianças e adultos no espectro, também identificou melhorias. Em um dos estudos coletados, feito com três homens e três mulheres, a prática de corrida diminuiu significativamente os comportamentos mal adaptativos e estereotipados.

Em outra avaliação com três crianças, a corrida contribuiu mais para a redução da estereotipia do que os exercícios com bola.

No vídeo abaixo, Beca explica como a corrida pode ajudar pessoas com autismo:

3 perguntas e respostas sobre diagnóstico de TEA

Confira questões respondidas pela neuropsicóloga Bárbara Calmeto:

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O diagnóstico de TEA é clínico. Quais aspectos são analisados para confirmar o transtorno?

O diagnóstico é feito por um profissional especializado. Se for adulto, neurologista ou psiquiatra; se for criança, neuropediatra ou psiquiatra infantil. Em todo caso, precisa ter conhecimento em autismo.

Quando se avalia uma criança, a gente olha os marcos de desenvolvimento, que têm um padrão esperado de tempo para acontecer. A gente olha para o desenvolvimento social, de linguagem, de comunicação social, desenvolvimento cognitivo, de comportamentos adaptativos (autogestão, independência, autocuidados) e desenvolvimento motor.

Quando avalia um adolescente ou adulto, esse olhar tem que ser voltado para a primeira infância, porque esses sinais dos critérios diagnósticos que estão descritos nos manuais, tanto no DSM-5 como na CID-11, precisam estar presentes na primeira infância (até os três anos de idade).

Mesmo que o diagnóstico seja feito na fase adulta, é importante ter informantes da convivência de quando ela era criança, como mãe, pai, avó, madrinha, prima mais velha, alguém que possa dar algumas informações dessa fase.

O que os testes psicológicos investigam e como contribuem para o diagnóstico?

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A gente usa várias escalas, mas principalmente escalas que avaliam as funções executivas, ou seja, o funcionamento cerebral de velocidade de processamento de informações, compreensão verbal, memórias, tipos de atenção e desempenho escolar para os adolescentes. Tem muitos testes psicológicos que a gente usa em uma avaliação neuropsicológica, é uma junção de vários.

Normalmente, na fase adulta a gente faz mais testes, porque o adulto tende a já saber as respostas esperadas. Então, para que tenha uma informação mais fidedigna, a gente faz teste contra teste, ou seja, a gente pega dois ou três testes que avaliam a mesma coisa e faz com esse adulto para ter a prova e contraprova.

Quem fecha o diagnóstico não é o psicólogo, é o médico neurologista ou psiquiatra. Mas a contribuição da avaliação, seja de marcos de desenvolvimento infantil, seja uma avaliação neuropsicológica, é muito importante. Esse profissional vai sugerir um diagnóstico baseado em observações concretas, quantitativas e qualitativas. Então, na avaliação clínica, o médico vai fechar, ou não, o diagnóstico, usando os critérios dos manuais DSM-5, da CID-10 e CID-11.

Há diferença entre o teste para crianças e para adultos?

Sim. Os testes aplicados nas crianças são muito mais lúdicos, e a gente tem um repertório de testes para crianças que ainda não falam. A gente tem testes específicos da parte de psicologia, da parte motora, da parte de fonoaudiologia e testes neuropsicológicos.

Quanto mais a criança se desenvolve, os testes vão ficando mais complexos, porque a gente espera um desenvolvimento mais complexo. Em adolescentes e adultos, a gente avalia muito a função executiva, habilidades sociais, a parte de teoria da mente e de tomada de perspectiva.

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*Com informações do portal do Drauzio Varella.

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