Com rins falhando, ele começou a correr para suar e poder beber mais água
André Foligno, 40, descobriu uma doença renal crônica sem causa definida. Quatro anos e meio após um transplante de rim, o órgão foi rejeitado. A única opção era hemodiálise.
O tratamento demanda restrição hídrica, mas André encontrou na corrida uma forma de driblar essa barreira: suando mais, poderia ingerir mais água, mas quando começou a correr, "viciou".
Junto com o médico que o acompanha, o nefrologista Bruno Piubelli Biluca, ele participou de provas de corrida, incluindo uma maratona —até então, um feito inédito de uma pessoa em hemodiálise correndo 42,195 km. A história virou um documentário (trailer abaixo).
A VivaBem, paciente e médico contam essa história.
"Aos 27 anos, tive uma dor de cabeça muito forte. Fui ao médico, que identificou um pico de pressão, estava 19 por 12. Tomei remédio, melhorei e ele falou para procurar um cardiologista. Na época, o cardiologista não achou nada de diferente, falou que poderia ter sido uma casualidade.
Um ano depois, tive outro pico de pressão, dor de cabeça insuportável, passei mal e fui a outro cardiologista. Fiz exames de coração, de pressão e nada. Mas esse médico pediu exames relacionados à função renal e me encaminhou para o nefrologista, especialidade que eu desconhecia.
Quando retornei ao nefrologista, ele falou que eu tinha aproximadamente 20% dos rins funcionando. Ele pediu biópsia e outros exames, mas disse que, provavelmente, eu ia precisar fazer hemodiálise ou um transplante. André Foligno
Aquilo foi um baque grande para mim. Com 28 anos de idade, você acha que nada disso vai acontecer com você. Eu não tinha problema prévio de saúde, nada que indicasse algo sério assim.
Busquei outras opiniões médicas e se comprovou realmente uma doença renal crônica. Não tinha tido sintomas e o que quer que tivesse acontecido com meu rim já tinha ido embora. Nunca descobri.
Muitos pacientes chegam com falência da função do rim muito avançada, com muitas fibroses e, por vezes, não conseguimos fazer diagnóstico. O André chegou para a gente sem função renal e com certa disfunção do fígado, que depois ficou bom. A gente excluiu as principais doenças e, provavelmente, ele teve uma doença autoimune que acomete rim e fígado. Bruno Piubelli Biluca, nefrologista
Transplante de rim
Ao buscar outros médicos, encontrei o doutor Medina [José Osmar Medina, nefrologista e superintendente do Hospital do Rim], consegui ficar com ele por oito meses no tratamento conservador, fazendo controle alimentar para não forçar a função dos rins.
Quando o conservador não deu mais, a gente tinha de escolher entre hemodiálise ou transplante de doador vivo. Na época, me falaram que eu teria melhores chances e melhor qualidade de vida com o transplante.
Das pessoas que fizeram exame de compatibilidade, decidiu-se pelo meu tio materno para doar. Em 2014, eu transplantei no Hospital do Rim e fiquei quatro anos e meio transplantado.
Órgão rejeitado
Tive complicações desde o primeiro ano, uma rejeição que não descobrimos a causa e foi progredindo. A medicação também afetou um pouco meu fígado, que estava quase perdendo também, então optamos por tirar o remédio.
Quando entrei para a hemodiálise no começo de 2019, já estava numa situação bem complicada, bastante inchado e debilitado. Tinha perdido muita massa muscular, tanto que precisei ficar uns 20, 30 dias internado para retirar o órgão e me recuperar.
A rejeição do órgão tem várias explicações. Depende de como a pessoa aderiu às medicações imunossupressoras, da doença de base, que pode voltar no rim transplantado, e do rim recebido. Bruno Piubelli Biluca, nefrologista
Suar para beber água
Não tinha a menor intenção de participar de provas. Quando comecei a diálise, os médicos indicaram que eu retomasse alguma atividade física para ganhar massa muscular e ter mais qualidade de vida. Comecei a fazer pilates num estúdio onde a dona, a Cris, é corredora de rua.
A gente percebeu que eu suava muito e perdia bastante líquido. Para quem tem doença renal crônica e está em hemodiálise, isso é muito importante. Como quase não urino mais, todo líquido que bebo é retido no corpo, mesmo o da comida, então precisa ter restrição hídrica.
Tinha saído de uma época de transplante em que bebia três litros de água por dia, então meu corpo estava acostumado a beber muita água, comecei a sentir muita falta disso.
Um dia, falei para a Cris que queria correr para ver se suava bastante. Ela foi comigo dar uma volta no quarteirão, correndo. Obviamente foi bastante cansativo, mas ali percebi que suava mais e poderia ser uma alternativa para beber mais água.
Comecei a treinar e a pegar gosto. E a corrida, depois que você consegue correr consecutivamente —seja 3 km, 20 minutos ou meia hora—, ela te vicia, porque a sensação no pós-corrida é muito boa.
Acabei viciando mesmo e acabei indo além de só beber líquido. Comecei a correr mais e mais e o lance das provas só aconteceu por sugestão do Bruno, que era meu médico na época.
Incentivo médico
Paciente com certa funcionalidade ou insuficiência renal equilibrada, bem acompanhada, pode começar a fazer uma atividade física. André é um paciente jovem, muito regrado, então ele foi usando as medicações, fazendo atividade física de forma gradual a ponto de se sentir muito bem e treinar após a sessão. Bruno Piubelli Biluca, nefrologista
Ele foi aumentando a intensidade dos treinos e eu, como sempre gostei de correr, propus um desafio juntos. Fizemos provas de 15 km, 21 km, até que quando estava bem, estável, falei: por que não fazer 42 km?
Ficamos um ano nos programando, com todo acompanhamento que ele precisava: psicólogo, cardiologista, endócrino, nefrologista e médico especialista no esporte. Bruno Piubelli Biluca, nefrologista
O bichinho da corrida
Em 2022, a gente fez a primeira meia maratona e, mais uma vez, o bichinho da corrida me picou e marcamos outras meias, com tempos menores. Em 2023, corremos a maratona SP City, no final de julho.
Até então, não tinha registro de doentes renais em tratamento de hemodiálise que faziam atividades físicas tão intensas ou especificamente maratona. Depois que corri, descobri um paciente de Fortaleza que correu maratona fazendo hemodiálise.
Mas não tinha na literatura como definir a melhor forma de treinar, se hidratar e suplementar. Então foi na tentativa e erro. Me adaptei melhor treinando logo após as sessões de diálise, que faço de segunda a sábado, das 6h às 8h.
Cuidados necessários
A parte mais preocupante, que tem de estar mais estabilizada, é a cardíaca. Ele tem uma fístula, da junção da artéria com a veia para fazer diálise, então fica uma veia grossa. Essa fístula sempre sobrecarrega o coração.
A outra preocupação era a quantidade de líquido que ia poder tomar durante a prova. Ao longo do ano de preparação, a gente acompanhava quanto ele pesava antes da sessão, depois da sessão e após o treino.
Por várias sessões, a gente colhia sangue para saber com que tipo de líquido ele podia se hidratar. No fim, chegamos numa quantidade de líquido e isotônico diluído com água que ele podia tomar. Bruno Piubelli Biluca, nefrologista
Novos caminhos
Foi extremamente positivo, porque a corrida te faz ter disciplina, algo que não tinha tido no esporte. Apesar de a vida inteira eu ter gostado de praticar esportes, nunca tive a disciplina da consistência que precisa ter para praticar uma atividade de verdade.
A corrida me trouxe isso: a disciplina de comer bem, dormir bem, treinar sempre. Saio para treinar na chuva, no sol, no vento, não interessa o tempo.
De lá para cá, não participei de provas porque desenvolvi uma fascite que está difícil de curar. Continuo treinando, mais leve, fazendo bastante fortalecimento e diminuí um pouco a intensidade da corrida.
Mas tenho planos de correr outra maratona no ano que vem, então vou iniciar um novo ciclo devagarinho, inclusive de provas, que ajudam muito na preparação da maratona.
Ainda não é nada certo, mas estou tentando pleitear uma vaga para a maratona de Boston como convidado. Para essa maratona, precisa ter um índice que não tenho: eu teria que ter corrido uma maratona em 3h13min., e eu corri em quatro horas —algo que eu nem almejo um dia fazer.
Mas é um sonho correr Boston. Vou treinar e, se conseguir, corro Boston. Se não, corro outra.
Outro objetivo além de correr Boston é correr uma maratona já transplantado. Estou na fila há cinco anos aguardando um novo transplante.
Estou apto há algum tempo. Como é fila de doador falecido, depende de compatibilidade [e aprovação da família do doador]. Mas estou pronto e a corrida ajuda muito nisso também, te deixa pronto fisicamente para passar por uma cirurgia tão grande.
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