'Consultório virou minha casa': médico fica ilhado para atender pacientes

Com vias terrestres bloqueadas, o acesso a algumas regiões do Rio Grande do Sul se dá pelos ares. Foi assim, de helicóptero, que o médico José Lascano chegou à clínica pela qual é responsável em Porto Alegre, no domingo (5).

De lá, só saiu na tarde de sexta-feira (10), também por via aérea. "Meu consultório virou minha casa", disse em conversa com o VivaBem.

O centro de saúde tem capacidade máxima para cem pacientes que fazem diálise. Na última semana, o espaço precisou atender mais 30 pessoas que vieram de outras regiões afetadas, onde não foi possível seguir com o tratamento.

São pessoas que dependem do procedimento pelo menos três vezes por semana para sobreviver. Cada sessão dura, em média, quatro horas. "São pessoas debilitadas, fragilizadas, com muitas limitações físicas e financeiras, que no meio desse caos terminam sofrendo ainda mais", comenta Lascano.

Dos pacientes que já eram atendidos antes da tragédia, 20 perderam tudo e estão em abrigos temporários. Raquel Lemos Rodrigues, 29, é uma delas. Na madrugada de sábado (4), ela acordou assustada com uma movimentação na rua de casa, no bairro Progresso, em Eldorado do Sul.

Raquel conseguiu sair de casa antes da enchente e pôde seguir com hemodiálise
Raquel conseguiu sair de casa antes da enchente e pôde seguir com hemodiálise Imagem: Arquivo pessoal

"Começou a gritaria para a gente sair de casa, porque a água estava chegando. Tinha gente em frente das casas, chorando, desesperadas", conta.

Ela tinha uma sessão de hemodiálise naquele dia e pediu carona ao vizinho, para levá-la com os filhos até Guaíba, onde faz tratamento. "Saímos 4h e chegamos na clínica 17h30", diz. "Se eu não saísse naquele horário, não sei se iria conseguir chegar, porque depois trancaram tudo, todas as vias."

Em toda minha vida que eu moro lá, nunca tinha chegado enchente. Tinha chegado pela volta, as pessoas iam se abrigar no meu bairro, mas agora pegou toda a região de Eldorado do Sul. Raquel Lemos Rodrigues

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Raquel está em um abrigo próximo à clínica, mas Lascano conta que há pacientes que chegam ao local por rotas alternativas, devido aos bloqueios das vias. "Alguns que demoravam 40 minutos, hoje demoram três horas. São seis horas de ida e volta."

O cenário compromete a qualidade de vida. "Isso fragiliza mais os pacientes. A gente oferece o básico: tratamento, comida, porque tem chegado doação de alimentos. Mas o fato de ficar tanto tempo (em trânsito e na clínica) fragiliza mais."

Trabalho multiplicado, equipe reduzida

Dos 13 técnicos de enfermagem da clínica de Lascano, três estão ausentes do trabalho, porque também perderam tudo na enchente. Esses profissionais são responsáveis pela montagem do sistema de diálise para os pacientes e os acompanham mais de perto.

Para dar conta da demanda extra, a equipe criou um turno extra de atendimento, à noite, mesmo com quadro de colaboradores menor.

"O restante dos colegas está tendo de fazer turnos redobrados. Tem alguns técnicos que não eram da nossa associação que tem prestado auxílio para gente de forma voluntária", diz o médico.

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Estamos trabalhando com turno extra, com equipe cansada, mas engajada. José Lascano, nefrologista

Ele diz que muitos pacientes perderam remédios de uso contínuo e não conseguem tomar as medicações. Além disso, outro medo é não poder manter o volume de insumos necessários para atendê-los.

Com apoio de empresas e da ABCDT (Associação Brasileira de Centros de Diálise e Transplantes), foi possível deixar um estoque para uma semana. Essa preocupação se junta ao custo extra para atender mais pacientes. "Esperamos que o repasse estadual seja mais acelerado."

Diante da tragédia, Lascano mantém a esperança. "Resiliência é a palavra que vem nesse momento. Com todo mundo ajudando, aportando o melhor de si, a gente tem certeza que vai contornar a situação e sair dessa."

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