'Dor há 21 anos': como a falta de dinheiro atrapalha tratar fibromialgia
A professora Leiliane Felício, 49, levou anos para descobrir ter fibromialgia, doença sem cura que causa dores pelo corpo todo. A assistente administrativa Fabiana Tomasi, 36, também.
A diferença entre as duas, porém, é que Leiliane tem dificuldades para custear o tratamento. Ela gasta cerca de R$ 600 por mês, valor da única medicação com a qual teve alívio dos sintomas em nove anos. O remédio não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde).
Fabiana, por sua vez, tem custos de até R$ 2.700 mensais. Os gastos incluem plano de saúde, medicação, consultas com nutricionista e atividades físicas especiais com eletroestimulação.
"Minha sorte é a minha família e o meu namorado me ajudarem. Eu já passo apertos tendo condições de custear o tratamento, não consigo imaginar quem não tem", diz a assistente administrativa. "O estresse gera dor, por isso preciso cuidar de tudo na saúde. Não é só tomar remédio."
Qualquer tipo de dor crônica, como a fibromialgia, exige tratamento multidisciplinar. Isso significa que as abordagens vão além da medicação. Cuidados integrais à saúde são essenciais para reduzir os sintomas. Por isso, os custos variam e podem ser altos.
"Fator social sempre é um fator de agravo da dor crônica. Está na base de qualquer pirâmide do processo de doença", explica o anestesiologista Wolnei Caumo, chefe serviço de dor e medicina paliativa no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
O tratamento tem abordagem psicossocial, porque não há mágica para aliviar cefaleia se a pessoa está em ambiente tóxico, num ambiente em que não tem dinheiro para comer. Wolnei Caumo, anestesiologista
'Desanimador saber os tratamentos para ficar bem, mas não conseguir pagar'
Leiliane começou a sentir dores aos 28 anos. Hoje, ela tem 49 e só há nove anos recebeu o diagnóstico correto. "Depois de anos correndo de um lado para o outro e muitos atestados no trabalho, cheguei a uma reumatologista. Tinha dor em 15 dos 18 pontos [que indicam fibromialgia]", conta.
Tenho dor há 21 anos. Não sei o que é viver um dia sem. Começou com uma dor no ombro, que foi migrando. Sinto desconforto no corpo todo, muita dor na lombar, no quadril, na cervical e crises de enxaqueca. Leiliane Felício
Após a descoberta, os sintomas foram melhor controlados até 2021, ano em que ela ficou sem plano de saúde após um aumento de R$ 500 na mensalidade. "No momento, não tive nem a ideia de questionar se o valor era legal." O período ainda coincidiu com a sua mudança de cidade —hoje ela mora em Lauro de Freitas (BA).
Leiliane ficou meses sem qualquer acompanhamento médico, já que não podia pagar. A sorte era já ter receitas para o remédio por alguns meses. "Fiquei perdida, porque não tinha noção dos trâmites na rede pública da nova cidade para manter o tratamento", lembra.
Os sintomas aumentaram sem a ajuda dos profissionais. "Antes, tudo o que o médico prescrevia eu conseguia fazer e me sentia bem melhor", diz. "Atividade física me fazia muito bem, me ajudava a relaxar, além de socializar. As aulas de dança me traziam a sensação de bem-estar."
Hoje, o tratamento é feito pelo SUS, mas, segundo ela, a frequência de consultas com reumatologistas não é ideal. "Tenho muita dificuldade de conseguir retorno, que deveria ser mensal, mas é a cada nove meses, às vezes", diz. Leiliane ainda conseguiu consultas gratuitas com psicólogos em um projeto beneficente da cidade, feitas a cada 15 dias. Neste ano, também começou a fazer pilates pela rede pública.
Chorei [por conseguir vaga no pilates], porque é muito difícil. Eu me emociono, porque não tenho condições de pagar. É desanimador saber os caminhos e tratamentos para ficar bem, mas não conseguir pagar. Tenho mil guias de indicações de médicos e não consigo fazer nada. Leiliane Felício
"O estresse de não ter dinheiro é complicado. Penso em fazer algo por conta própria, vender roupas, sapatos que não uso, mas a gente não tem muita força, ânimo", conta. "Tentei ser modelo e só investi. E era um sacrifício enorme ficar de salto nas seleções e desfiles, mas me esforçava confiando que conseguiria um retorno financeiro para me ajudar."
'Lembro de sentir dor forte desde os 12 anos e ninguém dar importância'
Fabiana lembra de sentir dor desde criança. Crises maiores começaram na adolescência, mas médicos minimizavam os sintomas. "Falavam que era dor do crescimento. Sofro de dor na região lombar desde mocinha e tenho enxaqueca desde que me conheço por gente. Lembro de sentir dor forte desde os 12 anos e ninguém dar importância."
Foram anos sem sucesso para entender o porquê de tanta dor. Os médicos diziam que os sintomas eram psicológicos. "Falaram que eu tinha depressão e por isso sentia dor, porque os exames não indicavam nenhuma lesão. Chegaram a questionar se eu estava ficando louca."
O diagnóstico de fibromialgia veio só no ano passado, mais de 20 anos após o início das dores mais fortes. O período foi traumático. Fabiana foi internada por estar muito debilitada. A dor a impedia de viver: não tinha forças para trabalhar, levantar da cama e até comer. Ela passou dois meses no hospital e foi demitida do emprego.
Até descobrir a fibromialgia, passava praticamente todos os dias com dor. Em alguns, nem saía da cama. Fiquei muito debilitada. Tinha dor de cabeça, dor muscular, vomitava. Quase não comia, porque a dor tira o apetite. Definhei e perdi 34 kg. Fabiana Tomasi
O tratamento com os remédios da doença lhe devolveram a qualidade de vida. Além da fibromialgia, Fabiana trata problemas renais, cardíacos e investiga a suspeita de lúpus.
A dor ainda existe. Mas o tratamento completo a ajuda a lidar melhor. "Hoje, posso falar que tenho 50% de melhora com todo o tratamento que eu faço, tenho diferença até na fisionomia. Eu parecia um cadáver andando de tanta dor", diz. Os cuidados incluem remédios, consultas com reumatologista, cardiologista, nefrologista, acompanhamento com nutróloga e nutricionista e as atividades físicas com eletroestimulação. Fabiana também faz terapia pela rede pública.
Sem trabalhar, o tratamento é pago com a ajuda da família e do namorado. Essa é uma aflição, conta. "Eles não vão conseguir me manter a vida inteira e eu nem quero", afirma. Mas a dificuldade em conseguir emprego é grande quando revela tratar uma condição crônica. "Acho que empresas deveriam dar mais chances para nós, isso seria muito importante."
Sempre trabalhei muito, de segunda a segunda. Então tem sido uma dificuldade pensar no amanhã, como vai ser me manter com todos os custos que eu tenho. Fabiana Tomasi
Por que dói?
A dor tem papel protetor nos humanos (e em muitas outras espécies). Mas esse aspecto se perde quando se tornam frequentes e crônicas, explica o anestesiologista Hazem Adel Ashmawi, supervisor da equipe de controle de dor do Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Dor aguda nos ajuda a sobreviver. Mas em dores muito prolongadas, geralmente, o papel protetor deixa de existir e ficam só os aspectos desagradáveis. Hazem Adel Ashmawi, anestesiologista e especialista no tratamento de dor
Causas da fibromialgia são desconhecidas. Evidências científicas apontam relação com desequilíbrios hormonais e de substâncias químicas do cérebro, além de mudanças em como o SNC (Sistema Nervoso Central) percebe a dor.
Qualquer tipo de dor crônica, como a fibromialgia, tem explicações multifatoriais. Fatores de risco conhecidos são: aspectos genéticos, psicossociais, transtornos psiquiátricos (como depressão, ansiedade e de personalidade), trabalhos repetitivos que podem causar danos aos tecidos do corpo e doenças que evoluem para dor crônica (herpes-zóster, por exemplo). Mulheres e idosos costumam concentrar mais casos.
Diagnósticos são feitos pelos médicos, de forma clínica (sem exames). Dor crônica é definida como o desconforto que persiste por ao menos três meses.
Dor crônica já é considerada um problema de saúde pública. Estudos indicam que 40% da população convivem com algum tipo no Brasil. Isso não quer dizer que são pessoas impossibilitadas pela dor —o percentual de limitações graves e generalizadas é de 10%.
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