'Falavam que eu comia isopor': com doença rara, ela evita carnes e feijão

Há 19 anos, o casal Ezileide Franco Maia Torres e Justino Cesário de Torres teve de adaptar os hábitos alimentares da família ao perfil da filha, Ruth. A menina tinha de ser praticamente vegetariana, mas não por escolha.

Logo após o nascimento, Ruth foi diagnosticada com uma doença rara genética chamada fenilcetonúria, identificada no teste do pezinho.

Quem tem a condição deve evitar alimentos ricos em proteína, porque o organismo tem dificuldade para processá-la. Isso significa ficar longe de carnes, peixes, ovos e alguns vegetais.

"Ficamos muito abatidos, abalados, porque falaram que era muito sério", diz Ezileide. Quando a proteína ingerida não é processada, há acúmulo de uma substância no sangue, o que leva a complicações cerebrais, por exemplo.

Ruth com os pais Ezileide e Justino
Ruth com os pais Ezileide e Justino Imagem: Arquivo pessoal

Depois de Ruth, o casal teve mais duas filhas com a mesma doença. "A primeira vez foi mais assustadora, porque nunca tinha ouvido falar", lembra Justino. "Mas nenhuma vez foi favorável."

As primeiras memórias de Ruth sobre viver com restrição alimentar vêm da escola. Ela não podia comer o mesmo que os colegas, então sempre levava um lanche de casa. "Eu levava torrada de arroz, e as meninas falavam que eu comia isopor", recorda a jovem.

Ela diz que, às vezes, sentia-se triste por não poder comer determinados alimentos, mas se acostumou com o tempo. Ao conhecer outros casos semelhantes e seguir com o tratamento, a família entendeu que era possível ter uma vida normal, apesar da limitação.

"Mas não é fácil ter metade da família com restrição", diz o pai. Ao todo, eles têm cinco filhos, somente os dois mais velhos não têm fenilcetonúria.

Continua após a publicidade

Adaptação

"Foi muito difícil para nós, especialmente para mim que fazia comida. Elas vinham e sentiam o cheiro, queriam provar e não podiam", diz a mãe. Em encontros de família para um churrasco, tinham de levar uma comida diferente para a filha.

Moradores do Assentamento Rio Bonito, zona rural do município de Cavalcante, em Goiás, eles conseguiram acompanhamento médico na Apae (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Anápolis.

Lá, foram orientados sobre a doença e o que Ruth podia ou não comer. A associação forneceu um livro de receitas para que conseguissem adaptar a alimentação. "Aprendi a fazer bolo sem ovo e leite. No começo, nem trigo podia, mas agora liberaram."

Hoje, Ezileide costuma preparar uma refeição específica para as filhas que têm fenilcetonúria e outra para ela, o marido e os outros filhos.

No geral, quem tem a condição pode comer alimentos com baixo teor de proteína:

Continua após a publicidade
  • Frutas (exceto figo seco);
  • Verduras e legumes;
  • Manteiga;
  • Margarina;
  • Tapioca;
  • Óleos vegetais;
  • Arroz;
  • Batata;
  • Mandioca.

O que se deve evitar:

  • Carnes (bovina, de frango e de peixe);
  • Ovo;
  • Feijão;
  • Nozes, castanhas, grãos;
  • Soja;
  • Laticínios;
  • Chocolate;
  • Bolos e pães;
  • Aspartame.

Tratamento amplia possibilidades

Além da dieta restritiva, a fenilcetonúria é tratada com uma fórmula rica em aminoácidos, vitaminas e minerais e um medicamento que ajuda a processar as proteínas ingeridas. Se a resposta ao remédio é boa, alguns alimentos podem ser inseridos na dieta.

Desde os 16 anos, Ruth já consome um pouco de carnes e ovo, em quantidade indicada por nutricionista. No dia a dia, mantém as regras da alimentação e sempre leva um lanche quando fica fora de casa por muitas horas.

Continua após a publicidade

Ela lembra de quando comeu carne assada pela primeira vez. "Bom demais, fiquei feliz demais."

Sobre a fenilcetonúria

Doença é rara. Estima-se que a prevalência global média seja de um caso para 10 mil recém-nascidos. No Brasil, varia de um em 15 mil a 25 mil.

Condição é hereditária. É causada por uma mutação genética em que pai e mãe carregam o gene que pode levar à doença. Quando os dois genes alterados vão para o feto, o bebê nasce com fenilcetonúria.

É um problema metabólico. A doença provoca a deficiência de uma enzima chamada fenilalanina hidroxilase, responsável por processar o aminoácido fenilalanina (presente em alimentos de origem animal e vegetal). Com o defeito da enzima, há acúmulo do aminoácido no sangue.

O organismo vai tentar metabolizar por outras vias, que dá alterações, como forte odor na urina e quadro neurológico. Ivana Van Der Linden Nader, endocrinologista pediatra do ambulatório de triagem neonatal de doenças raras da Apae de Anápolis

Continua após a publicidade

Dieta restrita. Segundo a médica, as pessoas consomem cerca de 2.500 miligramas do aminoácido fenilalanina por dia. Quem tem a doença deve ingerir de 250 mg a 350 mg. "Precisa de tratamento rigoroso com nutricionista", afirma.

Tratamento com fórmula e remédio. Pela ausência de alguns alimentos da dieta, a pessoa deve tomar todos os dias uma fórmula para atingir os níveis necessários de vitaminas e minerais. Além disso, um medicamento que simula a enzima deficiente ajuda a processar o que é ingerido de proteína.

Nova possibilidade. Em dezembro de 2023, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou uma terapia com enzima, indicada para pessoas com fenilcetonúria acima de 16 anos. Por enquanto, o medicamento não está disponível no SUS.

Se não tratada, a condição pode levar a:

  • Problemas comportamentais ou sociais;
  • Convulsões, tremores ou contrações nos braços e pernas;
  • Hiperatividade;
  • Alteração no crescimento;
  • Dermatite atópica;
  • Microcefalia.

O teste do pezinho, idealmente feito no terceiro dia de vida, é a forma de diagnosticar a doença.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.