Atriz passa por cirurgia de transição de voz: 'Forçava para ficar leve'
Gabriele Maciel
Colaboração para o VivaBem
13/06/2024 04h00
Desde a infância, a vida da artista Yara Sereya, hoje com 36 anos, foi marcada por críticas em relação à sua voz, que era rotulada como fraca e "molenga". Na adolescência, para evitar conflitos com os familiares, Yara passou a performar, tentando fazer sua voz ser mais grave e masculina. Aos 16 anos, quando escolheu trilhar o caminho profissional da arte, a maneira como sua voz era percebida pelo público impactou não só sua confiança como também sua realização profissional.
Mas desde abril deste ano, a voz de Yara finalmente reflete sua identidade e personalidade graças à glotoplastia, ou cirurgia de transição vocal. Ao VivaBem, ela contou como foi o caminho trilhado até o momento de ser escolhida para ser a primeira mulher trans a realizar a transição vocal pelo SUS em Salvador (BA):
"Eu sempre fui muito delicada e isso começou a ser um problema, principalmente na adolescência. Minha família me criticava, dizendo coisas como: 'Por que você fala assim? Para de falar desse jeito com essa voz fina e fraca'.
Depois que sofri uma violência dentro de casa, com o meu padrasto, comecei a tentar performar uma masculinidade. Tentava engrossar mais a voz e ajeitava meu corpo. Foi então que eu saí de casa e fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, para trabalhar como artista de teatro.
Mesmo sendo formada, tive dificuldades em atuar fazendo personagens masculinos. Uma vez um diretor queria que eu interpretasse uma cena de revolução com muita raiva e gritos. Disse a ele que não tinha aquele sentimento de raiva, e ele insistiu: 'Mas você é ator, coloque raiva nisso'. Eu tentei, mas depois, em casa, fiquei pensando: 'Por que eu não consigo expressar essa raiva?' Naquele dia eu percebi que eu só conseguia me destacar fazendo personagens femininos ou sem gênero definido.
Além de atuar, eu componho e canto. Cheguei a gravar umas músicas e recebi elogios pelas letras, mas a recepção da minha interpretação não foi muito boa. Não era uma questão de afinação, mas de audibilidade. Isso me boicotou bastante e me fez parar de investir na carreira musical. Por causa da minha voz também sofri muitas violências sociais. Cansei de atender telefonemas e ser tratada no masculino.
Tive várias situações complicadas, como quando tentava falar com a operadora de telefone sobre a retificação dos meus documentos e a minha voz foi interpretada como masculina. Isso me causava muitos incômodos.
Comecei a fazer fonoterapia para deixar a minha voz mais adequada ao meu gênero. Antes, era comum eu ficar rouca, já que acabava forçando a voz para ela soasse mais leve.
Quando surgiu a oportunidade de realizar a cirurgia de transição vocal, tive receio até de perder lugar na fila de espera. Conversei com a coordenação do ambulatório e entendi que se tratava de uma oportunidade incrível e o quanto isso seria importante para mim, tanto na minha construção social quanto na continuidade da minha carreira profissional.
A cirurgia foi tranquila, acordei com a sensação de que tinha ido a um show, gritado a noite inteira. Era por isso que não podia falar, porque mesmo engolir doía. Mas a parte mais difícil foi ficar sem me comunicar com os meus dez gatos por 15 dias. Sou tagarela e minha relação com eles é muito próxima, principalmente por meio da voz, então chamei a minha mãe para ficar aqui em casa uns dias e passei todas as informações para ela. Expliquei o nome de cada um, as birras, onde costumam sumir e onde encontrá-los.
Aos poucos, a voz foi voltando, mas ainda sinto uma leve rouquidão. Estou fazendo sessões de fonoaudiologia e apesar de ainda estar me recuperando e da minha voz ainda não estar 100%, já percebo um resultado incrível. Minhas amigas dizem que minha voz está muito feminina.
Pretendo voltar aos palcos para atuar, cantar e dançar. Acredito que estou em um processo de casulo, preparando-me para emergir na minha melhor versão."
Como a cirurgia é realizada
A glotoplastia, ou cirurgia de transição vocal, é uma das estratégias para a feminização da voz. O procedimento é considerado minimamente invasivo e é feito por dentro da boca com aparelhos específicos.
"Nós acessamos as cordas vocais e as tornamos mais curtas, o que faz com que elas vibrem com maior frequência, produzindo assim uma voz mais aguda", explica a otorrinolaringologista Érica Campos, especialista em cirurgia da voz e responsável pela cirurgia realizada em Yara, em abril deste ano, no Hupes-UFBA (Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia).
A cirurgia não gera cicatrizes visíveis, o que, segundo Campos, é crucial para a segurança das mulheres trans no Brasil.
Apesar de a operação ser simples e de alta ocorrer no mesmo dia, o pós-operatório exige que as pacientes façam 15 dias de silêncio absoluto para que a cicatrização seja segura. Por outro lado, não há restrições alimentares ou físicas. Após esse período, a paciente passa por algumas sessões de fonoaudiologia para melhorar a nasalidade da voz.
Voz é marcador de identidade de gênero
Segundo as especialistas consultadas, a voz é um marcador forte de identidade de gênero e é principalmente durante a adolescência que ela se modifica, sob a ação dos hormônios sexuais.
Mulheres trans que passam pela puberdade sob influência dos hormônios masculinos sofrem alterações na laringe, com crescimento do tecido cartilaginoso e muscular. Isso aumenta o tamanho e espessura da laringe, resultando em uma voz mais grave e características vocais masculinizadas.
Por isso, segundo Campos, meninas que passam pela transição sexual tardiamente ficam expostas à testosterona por mais tempo, o que pode retardar os resultados vocais da cirurgia. "É como mexer nas cordas de um violão, você pode trocá-las, mas a caixa de ressonância (a laringe) pode ser mais robusta devido à exposição prolongada à testosterona e isso não dá para trocar", diz.
A endocrinologista Luciana Barros Oliveira, coordenadora do Laboratório Transexualizador do Hupes-UFBA, destaca que enquanto para homens trans a terapia com testosterona frequentemente promove o crescimento da laringe, eliminando muitas vezes a necessidade de cirurgia, para mulheres trans ela é crucial. "A cirurgia oferece a oportunidade de uma voz mais alinhada com a identidade de gênero e a mudança de voz pode melhorar a qualidade de vida e reduzir a violências sofridas por essas mulheres", diz Oliveira.