'Tetraplégico, fui praticar rúgbi porque cansei de acharem que ia quebrar'
Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
13/06/2024 04h05
Lucas Junqueira, 36, sofreu um acidente ao mergulhar em uma onda e bater a cabeça em um banco de areia que o deixou tetraplégico. Hoje atleta paralímpico, ele conta que se interessou pelo rúgbi pelo contato físico do esporte em um momento da reabilitação em que as pessoas olhavam para ele como se ele fosse "casca de ovo" e fosse quebrar.
A seguir, ele compartilha como ser um atleta de alto rendimento o ajuda no dia a dia, diz que nem todo cadeirante é igual e que há questões mais complexas em uma lesão medular do que o fato de não andar. Conheça a história dele:
"Em janeiro de 2009, fui participar de um evento a trabalho em Ponta Negra, que fica em Natal, no Rio Grande do Norte. Em um dos dias de folga, fui à praia, mergulhei em uma onda e bati a cabeça em um banco de areia.
Na hora senti um choque no pescoço. Fiquei boiando de barriga para baixo, tentava me virar, mas não conseguia me mexer, comecei a engolir muita água e a ter dificuldade para respirar. Achei que fosse morrer afogado.
Pouco tempo depois, uma onda bateu no meu corpo, me virou de barriga para cima e consegui respirar novamente. Algumas pessoas me viram e me levaram para a areia. Dois médicos prestaram os primeiros socorros, um imobilizou o meu pescoço e o outro ficou apertando a minha mão e perguntou se eu estava sentindo alguma coisa.
Disse que não, foi quando percebi que não estava movimentando nenhuma parte do corpo e que a situação era grave.
Chamaram o Samu e só lembro do dia seguinte quando acordei da cirurgia. O médico disse que quebrei o pescoço, fraturando a 5ª vértebra da coluna cervical, lesionei a medula espinhal e perdi os movimentos do pescoço para baixo. Na época tinha 21 anos.
Na cirurgia foi colocada uma placa de titânio no pescoço e quatro parafusos. Também tive um comprometimento pulmonar temporário, meu pulmão esquerdo ficou sem ar e entrou em colapso devido à quantidade de água e a dificuldade que tive para respirar quando estava no mar.
Perguntei ao médico quanto tempo ia demorar para voltar a andar e fazer as minhas coisas. Ele respondeu que dependia de mim. Fiquei tranquilo, mas conforme o tempo foi passando fui vendo que não era tão simples assim.
Ao fazer minha reabilitação no Centro de Neurociências e Reabilitação Sarah de Brasília, entendi o que era lesão medular e que a resposta ao tratamento dependia do organismo e não da minha vontade.
Meu tempo no Sarah foi um divisor de águas. Tinha duas opções: uma era aceitar a lesão, a cadeira de rodas e lutar pela minha independência. A outra era me lamentar e desistir.
O acidente foi ruim, mas coisas boas aconteceram. A primeira é que estava vivo, os profissionais do Sarah me ensinaram como viver com a deficiência, me apresentaram possibilidades de adaptação para seguir em frente e recebi o apoio da minha família.
"Retenção urinária é pior do que não poder andar"
As pessoas olham para os cadeirantes e acham que são todos iguais. Não são.
Costumo dizer que no kit tragédia da lesão medular o não andar é o menor dos problemas. Há outras questões mais complexas, como a retenção urinária, que é a perda da capacidade de esvaziar a bexiga naturalmente.
Não conseguia mais fazer xixi como antes, precisava introduzir um cateter (espécie de tubo) na uretra para esvaziar a bexiga, esse procedimento é conhecido como cateterismo intermitente limpo. No começo, fiquei resistente, com medo de sentir dor e disse que não queria, mas entendi a importância para a minha saúde e aceitei.
A retenção urinária e o uso do cateter de 4 em 4 horas diminuíam a minha liberdade. Uma vez um amigo me chamou para sair, mas tive que voltar antes para fazer o cateterismo. Meus pais faziam o procedimento em mim porque não tenho o movimento dos dedos, apenas a extensão dos punhos, mas a partir desse dia decidi que iria tentar fazer para ganhar mais independência, autonomia e privacidade.
No começo era um perrengue, nas primeiras vezes demorava cerca de 30 minutos, às vezes me sujava de xixi e deixava cair alguns acessórios, quando isso acontecia tinha que pegar um novo cateter e começar tudo de novo.
Quando saía ficava preocupado se o banheiro era limpo, se tinha lugar para colocar minha bolsa com todos os produtos. Durante quatro anos usei o cateter tradicional e tive infeções de urina de repetição.
Depois conheci o cateter hidrolífico, que é mais fácil e prático de manusear, demoro de 3 a 5 minutos para esvaziar a bexiga. Consigo fazer o procedimento até dentro do meu carro e o número de infecções de urina diminuiu bastante.
"Perdi os movimentos, mas só estava sentado em uma cadeira de rodas, não mudei quem eu era"
O esporte sempre esteve presente na minha vida, antes do acidente pratiquei bike, vôlei e algumas artes marciais. Durante a reabilitação, tive contato com natação, basquete, tênis de mesa, canoagem e até esgrima para cadeirantes.
Também assisti a um documentário sobre rúgbi com atletas tetraplégicos, vi o pessoal batendo cadeira e falei: é esse esporte de contato que quero praticar.
Teve um momento do tratamento que as pessoas olhavam para mim fragilidade como se eu fosse casca de ovo do tipo "cuidado senão pode quebrar", "quer um suquinho?", "tá com friozinho?". Senti uma infantilização em volta de mim.
Perdi os movimentos, mas só estava sentado em uma cadeira de rodas, não mudei quem eu era.
Em 2009, comecei a praticar natação, tênis de mesa e rúgbi. Cheguei a cursar psicologia e atuar na área, mas sou apaixonado por rúgbi, me tornei atleta profissional e tive várias conquistas junto com a seleção brasileira de rugby em cadeira de rodas.
Participamos dos Jogos Paralímpicos do Rio-2016. Fomos bronze no Campeonato das Américas realizado na Colômbia em 2022, ganhando uma vaga inédita para o Campeonato Mundial na Dinamarca. Em 2023, conquistamos a medalha de bronze nos Jogos Parapan-Americanos de Santiago. No ano passado também fomos campeões no Campeonato Sul-Americano e fui eleito o melhor atleta do continente.
O rúgbi me proporciona vários benefícios, um deles é a força e a resistência para fazer as atividades diárias como realizar sozinho a transferência da cadeira de rodas para a cama ou carro, por exemplo. O outro benefício é a inteligência emocional para lidar com obstáculos.
Não sou 100% independente, tenho consciência das minhas limitações. Em muitos casos, os desafios que enfrento não são um reflexo da minha capacidade, mas, sim, da falta de infraestrutura adequada e de acessibilidade
Em 2017, a Paçoca, uma cadela de serviço treinada para auxiliar pessoas com lesões cervicais graves, como tetraplegia, entrou na minha vida.
Ela me auxilia nas tarefas do dia a dia, como pegar alguma roupa na gaveta, pegar algo quando cai no chão e me entregar, me ajuda a tirar a meia, acende e apaga a luz. A Paçoca tem um papel importante na minha rotina, mas também temos um vínculo afetivo e de confiança.
Hoje, a deficiência é um detalhe na minha vida, todas as pessoas têm adversidades, a minha é na parte física. Sou feliz, estou vivendo a minha melhor fase e quero continuar me aperfeiçoando dentro e fora de quadra."
O que é retenção urinária e quais os riscos da condição?
Pacientes que lesionaram a medula espinhal podem apresentar uma retenção urinária transitória, que é perda da capacidade de esvaziar naturalmente a bexiga, ou seja, a pessoa não consegue urinar. Esta fase inicial é chamada de choque medular e pode durar dias ou semanas.
Após essa fase, a presença da retenção urinária dependerá do nível em que a medula foi lesionada. Geralmente, as lesões na parte final da medula espinhal estão associadas a quadros de retenção urinária crônica e então é necessário utilizar um dispositivo (uma sonda ou cateter) para retirar a urina acumulada na bexiga.
O cateterismo vesical intermitente é a forma mais recomendada para esvaziar a bexiga no caso de pacientes com retenção urinária parcial ou total, como pessoas que lesionaram a medula espinhal ou tem doenças neurológicas, como a esclerose múltipla.
Durante a técnica, a pessoa deve higienizar as mãos e a região genital, passar o cateter pela uretra (canal da urina) para esvaziar a bexiga. Feito isso, ela deve retirar a sonda, descartá-la e repetir o procedimento de 4 a 6 vezes por dia.
Existem diferentes tipos de cateteres, o mais conhecido é o cateter convencional, que é feito em plástico (PVC). Ele necessita de preparo prévio, como ser lubrificado antes do uso.
O cateter convencional traz alguns riscos para pessoas que o usam com frequência devido à chance de causar lesões na uretra pelo fato de não deslizar adequadamente pelo canal da urina mesmo com o uso de lubrificante. A médio e longo prazos, estes pequenos traumas podem levar à formação de cicatrizes, a um estreitamento da uretra (estenose) e contribuir para a ocorrência de infecções urinárias.
O outro tipo é o cateter hidrofílico, feito em poliuretano, já vem com revestimento hidrofílico (tem afinidade com água, desliza mais facilmente), com lubrificante, o que facilita o manuseio na hora de passar o cateter pelo canal urinário. Ele já vem pronto para uso.
O cateter hidrofílico reduz o risco de contaminações, de infecções urinárias por repetição, de trauma na uretra e consequentemente de sangramentos (hematúria) em relação ao cateter convencional.
A retenção urinária pode gerar complicações e, em alguns casos, ser perigosa. Se a pessoa com retenção urinária não realizar o cateterismo vesical corretamente, ela poderá ter o comprometimento ou mesmo a falência da função renal. Isso porque a urina é produzida pelos rins e, por meio dos ureteres, vai até a bexiga para ser eliminada.
Se a drenagem da urina não for realizada adequadamente, a bexiga vai distender (ficar muito cheia) e pode haver um refluxo urinário, ou seja, a urina retornará aos rins por meio dos ureteres, provocando o mau funcionamento dos rins e, em casos mais graves, resultando em insuficiência renal.
Fonte: José Carlos Truzzi, chefe do Departamento de Urologia Feminina, Assoalho Pélvico e Urodinâmica da Confederação Americana de Urologia, diretor da disciplina de infecções da SBU (Sociedade Brasileira de Urologia), mestre e doutor em urologia pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp.