Transplante de ossos: ele ganhou 'canela nova' após tumor benigno

O metalúrgico Marcus Vinicius Siqueira, 34, ficou quase um ano com dores fortes na perna esquerda até descobrir um tumor ósseo benigno, mas muito agressivo se não tratado.

Morador de São Roque do Canaã, no Espírito Santo, ele foi encaminhado para tratamento e cirurgia no Into (Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia), no Rio de Janeiro. O local é o único no estado que abriga um banco de tecidos musculoesqueléticos.

Lá, ele recebeu um transplante de osso, mais especificamente 20 cm de uma tíbia para substituir a porção que precisou ser retirada. Confira o relato.

"Em fevereiro de 2022, eu estava fazendo uma viagem longa, de dez horas, e de repente senti uma dor muito forte na lateral da perna. Achei que era mau jeito, porque tinha ficado muito tempo sentado.

Por muito tempo, fiquei achando que era um nervo embolado ou algo do tipo que não estava melhorando. Eu fazia massagens, que aliviavam no momento, mas ficava sempre doendo.

Em outubro daquele ano, sem melhora, decidi ir numa médica da região, que a princípio deve ter achado que eu só queria um atestado para ficar em casa bebendo, porque estava de ressaca. Não sei, nem bebo mais, e em 15 anos trabalhando, nunca peguei um atestado.

Mas ela não deu muita importância para o longo período que eu estava sentindo dor. Pediu uns exames, um doppler e um ultrassom. O médico que estava fazendo o ultrassom achou alguma coisa estranha, mas não se interessou também em procurar saber o que era. E continuei mancando.

'Três dias sem andar'

No mesmo mês, fui buscar meus filhos de moto no ponto da escola. Aqui é estrada de terra, antes tinha chovido, e quando fui subir, a moto escorregou.

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Pra gente não cair, botei o pé no chão e senti uma dor muito forte, muito forte mesmo. Fiquei três dias sem conseguir andar direito.

Na segunda-feira, voltei na médica, que finalmente pediu uma ressonância magnética. Mas o que precisava mesmo seria um raio-X da região, que estava muito inchada. E como estava com um inchaço maior, ela viu que era sério.

Fui consultar outro médico e, assim que ele bateu o olho, imaginou que fosse um tumor de células gigantes. Eu tinha que fazer alguns exames para ter certeza, mas pelo que contei, tudo indicava que era aquilo ali mesmo.

'Cirurgia mais complicada'

Em dezembro, já estava com alguns exames em mãos, que realmente indicavam ser um tumor, mas ainda precisava fazer a biópsia. Tinha ido para o Rio de Janeiro, onde fiquei na casa de familiares, porque lá era um pouco mais rápido.

Na primeira consulta que tive, fui mandado para o Hospital Geral de Nova Iguaçu. Lá, a médica achou que, a princípio, poderia ser feita uma cirurgia rápida. Mas depois que ela olhou os exames, e como já estava muito avançado, falou que seria uma cirurgia mais complicada.

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O único lugar que ela conhecia que poderia resolver isso era o Into. Ela pediu para aguardar até eu receber um encaminhamento.

Em janeiro de 2023, fui encaminhado para lá, onde me consultei com o doutor Walter, que olhou os exames e pediu novos. Fiz a biópsia e comecei o tratamento.

O tratamento consistia na aplicação de denosumabe: eram duas aplicações no braço e, no primeiro mês, foram seis aplicações. Depois, teria que fazer novos exames para saber se o tumor tinha calcificado para, então, fazer a cirurgia.

Os exames constataram que o tumor tinha parado de crescer, mas tinha um problema de falta de prótese para a cirurgia. Isso se arrastou por um ano. A equipe médica fez tudo o que podia, sempre avisando que a cirurgia poderia sair a qualquer momento.

Osso novo

Sabia que tinha que cortar o meu osso e colocar uma prótese, mas não que seria assim.

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Como grande parte da população, também não sabia que existia transplante de ossos e todo um trabalho minucioso para que esse osso chegue em plenas condições para uma cirurgia.

Agradeço aos familiares que fazem doações de tecidos ósseos e órgãos. Graças à ação dessas pessoas, posso hoje seguir minha vida cuidando dos meus.

Mas como essa prótese é muito difícil, demorou um tempo para eu ser chamado para a cirurgia. Eles iriam cortar um pedaço do osso que estava comprometido até uma distância segura e fazer o transplante.

O transplante consistiu em colocar 20 cm de uma nova tíbia (osso da canela) e prótese no joelho
O transplante consistiu em colocar 20 cm de uma nova tíbia (osso da canela) e prótese no joelho Imagem: Arquivo pessoal

No meu joelho, foi colocada também uma prótese (de metal). Ficou um trabalho muito bom, não senti dores desde que saí da cirurgia.

Os médicos me explicaram que tinha demorado porque precisava de um material próximo do meu tamanho, não era só transplantar um osso. Eu tenho 1,88 m e atualmente peso 120 kg, então não poderia ser o osso de uma pessoa pequena.

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A cirurgia foi no dia 8 de janeiro deste ano, saí do hospital oito dias depois. Tive que ficar com a perna imobilizada, esticada, por seis semanas para dar tempo do tendão cicatrizar e colar no osso, senão não conseguiria dobrar e esticar a perna de novo.

Depois desse período, comecei a fisioterapia, que faço até hoje, agora em casa. Ao longo desse ano, ainda farei exames periódicos."

O que é o tumor de células gigantes?

É um tipo de tumor ósseo benigno, que não tem capacidade de se espalhar pelo organismo, mas é agressivo se não for tratado, pois progride para a destruição do osso afetado.

O tratamento depende do estágio da lesão tumoral:

  • Estágio 1: tumor atinge apenas o osso
  • Estágio 2: causa abaulamento (forma uma curva) no osso
  • Estágio 3: rompe o osso e vai para as partes moles, como cartilagem e tendões
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Nos dois primeiros estágios, é possível fazer um tratamento conservador, raspando o tumor do osso. No estágio mais avançado, é preciso remover a parte afetada.

Marcus chegou no estágio 3 e foi preciso retirar um segmento da tíbia (osso da canela). Ele precisou de uma nova porção desse osso, de 20 cm, para o transplante, além da prótese no joelho.

"A vantagem do transplante é que é mais fácil reinserir partes moles do que numa prótese", diz o ortopedista Rodrigo Cardoso, responsável pela cirurgia de Marcus.

Banco de ossos

O banco de tecidos musculoesqueléticos do Into capta, processa e distribui ossos, tendões, cartilagens e meniscos.

As doações para transplante são usadas nas áreas de ortopedia e odontologia.

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Há uma equipe disponível 24 horas para qualquer acionamento, seja para captar ou entregar o material.

A atuação é predominantemente no Rio de Janeiro, onde está a instituição, mas, tendo logística, como apoio da FAB (Força Aérea Brasileira), é possível captar em outros estados.

Como instituto público, o banco disponibiliza os tecidos para todo o país, em hospitais públicos e privados.

A captação do tecido musculoesquelético não tem tanta urgência como a de outros órgãos, como coração, rim ou pulmão —cada um tem tempo limite para ser retirado e implantado no novo corpo.

Mas Rafael Prinz, chefe do banco de tecidos do Into, diz que não se pode retirar o tecido três dias após o falecimento da pessoa doadora. Além disso, o tempo ideal entre captar o tecido e ele chegar à instituição é de 12 horas.

Já no instituto, os tecidos são preparados antes do transplante, o que inclui uma limpeza minuciosa com substâncias químicas específicas. O objetivo é dar mais segurança a quem vai recebê-los.

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Os materiais são armazenados em ultracongeladores a -80ºC por até cinco anos. No caso de usar cartilagens frescas, a durabilidade é de duas semanas.

Sem risco de rejeição

Na limpeza, a medula óssea, conhecida como "tutano", é retirada de dentro do osso para que não haja reação imune contra o tecido transplantado. Assim, o segmento vai funcionar como uma estrutura de sustentação (arcabouço).

"No transplante ósseo, o tecido tem propriedade osteocondutora e osteoindutora para estimular que o tecido ósseo do receptor preencha os espaços daquele arcabouço", explica Prinz.

Como não há rejeição, quem recebe o transplante não precisa tomar medicamentos imunossupressores, como comumente ocorre com quem transplanta órgãos.

Os tecidos musculoesqueléticos podem ser usados em condições como:

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  • Revisão de prótese articular (quadril ou joelho)
  • Escoliose
  • Pé plano, se houver necessidade de cortar algum osso do pé
  • Perda de segmento ósseo devido a acidentes
  • Falha, atrofia ou fraqueza de ossos da maxila ou mandíbula

Corpo doador é preservado

A doação de ossos também é feita mediante autorização da família. Por isso é importante que pessoas doadoras manifestem em vida esse desejo.

Após a concessão, a equipe de captação normalmente coleta ossos dos membros inferiores e superiores (braços e pernas).

No mesmo momento, os tecidos musculoesqueléticos são substituídos por materiais sintéticos a fim de garantir a aparência do doador e preservação do corpo.

Dependendo de como o material for processado, cada doação pode beneficiar mais de 30 pessoas.

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"O transplante ósseo é para gerar qualidade de vida", diz Prinz. "E por que não doar, já que é um ato de amor e você pode ajudar várias pessoas?"

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