Um sarapatel, um bolo: comida pode reavivar memórias de quem tem Alzheimer?
Uma vez por ano Antonia Ernestina da Silva ia visitar o irmão em Brasília. Já conhecia os pontos turísticos da cidade, mas ao rever as fotos da viagem não se lembrou de alguns passeios que tinha feito. "Ando esquecida", dizia.
Em casa, os esquecimentos continuaram acontecendo: esqueceu do dia da feira, de adiantar o jantar para a filha como fazia todos os dias, de pagar as contas e de tomar os remédios controlados —que apontaram várias alterações nos exames de sangue.
Ao notar essas mudanças, Cristina da Silva de Oliveira, 51, levou a mãe ao clínico geral, que suspeitou de Alzheimer e a encaminhou para o neurologista. Após cinco meses de exames e testes, o diagnóstico foi confirmado em 2017, aos 76 anos.
"Fiquei triste. Quando esqueço alguma coisa fico tentando lembrar. Não lembrar das coisas é muito ruim", comenta dona Antonia, hoje aos 83 anos.
Histórias repetidas e vela acesa
Com uma vida ativa e independente, Maria Lúcia Gama de Oliveira morava sozinha em Campinas, no interior de São Paulo, mas começou a ficar 'atrapalhada': pendurava as roupas do avesso, contava histórias repetidas e uma vez deixou a vela acesa embaixo da TV de plasma, que acabou derretendo uma das pontas do aparelho.
"Trouxemos ela para São Paulo para iniciar a investigação e fechar o diagnóstico, que aconteceu em 2014, quando ela tinha 72 anos. Minha mãe nunca soube que tem Alzheimer. Ela sempre teve medo de ter a doença que nem uma das irmãs dela, eu e meus irmãos achamos melhor não contar, preferimos levar a vida 'normalmente'. No começo, colocávamos adesivos nas embalagens das medicações para tampar o nome e falávamos que era remédio para o coração por conta do marca-passo", conta uma das filhas, a microempreendedora Luciana Gama Petriccione, 49.
O que o Alzheimer causa?
Alzheimer é uma doença cerebral que acomete grupos de neurônios que fazem a mediação das funções cognitivas, cujas causas não são totalmente esclarecidas.
Uma das hipóteses mais aceitas pela medicina é de que duas proteínas, quando alteradas, depositam-se no cérebro e levam à morte neuronal.
"O principal sintoma é a perda de memória, ou seja, dificuldade em armazenar e evocar novas informações. Quanto mais próximo ao presente, maior a dificuldade. Na evolução da doença, há comprometimento na capacidade de tomada de decisões, habilidades visuais-espaciais (se perdem em locais, por exemplo), apresentam problemas de linguagem e de comportamento", explica Marcio L. F. Balthazar, professor livre-docente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Uma vez instalado o processo neurodegenerativo não é possível evitar a doença, mas diminuir a velocidade de progressão com o uso de medicamentos, um estilo de vida saudável e estimular as lembranças do passado através da biografia (estimular a pessoa a contar experiências do passado), de fotos, vídeos, filmes, música e até de comida.
O poder da comida e da música para reativar memórias
Este ano dona Antonia e dona Maria Lúcia participaram de uma campanha da Nestlé chamada "Receitas Inesquecíveis". Na ação, uma chef de cozinha reproduziu a receita favorita de quatro pessoas com Alzheimer para ajudar a reconectar as emoções e resgatar lembranças do passado.
"Pesquisas científicas têm mostrado que a comida é capaz de fazer as pessoas voltarem no tempo, incluindo aquelas em estágio inicial de Alzheimer. Nosso experimento foi eficaz com todos os participantes. Comida tem o poder de conexão e ajuda a potencializar as tradições familiares", diz Daniela Marques, head de hubs digitais corporativos e CRM na Nestlé Brasil.
Ao comer o sarapatel recriado pela chef, dona Antonia lembrou dos pais e da avó materna. "Ficamos surpresos com a associação que ela fez do prato com a avó materna, que inclusive foi quem ensinou a receita para a mãe dela. A comida tem uma importância afetiva para minha mãe. Ela conta que teve uma infância pobre e sofrida, mas que quando a mãe dela fazia sarapatel, era um dos únicos momentos bons em que a família se reunia à mesa para comer e conversar", diz Cristina, filha de Antonia.
A filha Luciana ficou emocionada quando dona Maria Lúcia lembrou da mãe ao comer o bolo bola, mas diz que a música ainda é a forma que mais toca a memória dela. "Elis Regina sempre foi o amor dela. Ao ouvir as músicas, ela fica feliz, sorri, canta junto, dança e vira os olhos como quem busca lembranças. Aos poucos, as letras estão sumindo da cabeça dela, mas a melodia ainda está presente na memória dela", conta.
Como isso é possível?
De acordo com o neurologista Balthazar, qualquer memória com conteúdo emocional relevante e positivo é codificada e armazenada de forma mais eficiente pelo cérebro e pode persistir pela vida toda, mesmo na doença.
"No caso específico da comida, os sabores tendem a se associar com o contexto vivido no passado, o contato próximo com pais e irmãos, momentos de festa e alegria. No entanto, a evocação de lembranças deve ser feita com cautela devido ao alto valor emocional (positivos e negativos) dos acontecimentos que muitas vezes podem vir acompanhados de sentimentos como tristeza ou angústia", explica o médico.
Com a doença indo para o estágio avançado, dona Lúcia já perguntou algumas vezes o que ela é dos filhos. "Não é fácil, mas como ela ainda me reconhece de alguma forma, tento não me apegar nisso senão fica mais sofrido, prefiro encarar um passo por vez. Quero que minha mãe tenha qualidade de vida e não fique em um estado vegetativo como minha tia ficou", reforça Luciana.
Como filha, Cristina diz que seu maior medo é a mãe não reconhecê-la: "Só de pensar nisso meu coração dói, peço a Deus todos os dias que isso nunca aconteça". De todas as lembranças boas, dona Antonia diz que não gostaria de esquecer nunca da família, principalmente dos filhos: "Minha vida não faz sentido sem eles".
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