'Segunda casa': pacientes formam nova família durante tratamento de câncer
Em outubro do ano passado, Diogo Henrique, 10, foi diagnosticado com leucemia. De Mogi das Cruzes (SP), ele foi aos primeiros atendimentos médicos na cidade, mas o tratamento seria no Hospital Santa Marcelina, hospital na zona leste da capital paulista a cerca de 30 km de casa.
Por um tempo, ele precisou ficar em cadeira de rodas e depois andar com muletas. Também, sentia-se mal após algumas sessões de quimioterapia. Ir e voltar de transporte público nessas condições era inviável.
"Já aconteceu de ele ter febre e o médico recomendar ficar por perto, caso precise voltar para o hospital", conta a mãe Vilma da Rocha, 48. Com o apoio da Tucca (Associação para Crianças e Adolescentes com Câncer), eles conseguiram uma vaga na Casa Ronald McDonald Itaquera, a menos de 400 metros do hospital.
Com 23 suítes, o local hospeda de forma gratuita pacientes com um acompanhante que são encaminhados da oncologia pediátrica do Santa Marcelina Saúde. São elegíveis pessoas de 0 a menores de 18 anos. O serviço básico inclui hospedagem, alimentação e transporte 24 horas. Se a pessoa é de outro estado, é recebida pela equipe no aeroporto ou rodoviária e levada ao espaço.
A gente é pobre. Se fosse pra pagar, Deus que me perdoe, mas é o fim de 'nós tudo', ele ia morrer, porque eu não teria condições, jamais. Vilma da Rocha
Ela conta que precisou da ajuda da família para pagar um exame de R$ 612 para o filho na época da investigação da doença.
'Segunda casa'
A permanência na casa depende do tempo de tratamento: varia de alguns dias a mais de um ano. Entre os acompanhantes das crianças e adolescentes, as mulheres são maioria, geralmente mães que, por vezes, deixam outros filhos na casa de origem.
O local vira a segunda casa delas e, enquanto lidam com a saudade e o tratamento, formam uma grande rede de apoio. "A gente divide bastante experiência", comenta Tânia Ruzafa Alves, 35, que acompanha a filha Yasmin, 14, no tratamento de um sarcoma.
"Quando cheguei aqui, não sabia que ela não podia comer carne de porco, aí as outras mães já foram me lembrando. Uma dá dica pra outra e às vezes a gente cria um vínculo de amizade que é bem bonito mesmo", diz.
Vilma confirma. "Tem dia que a gente está tão cansado, tão desanimado, acha que não vai conseguir, aí uma passa força pra outra", explica. "É uma família que a gente cria aqui, é a segunda casa da gente."
Também uma instituição de apoio, a Casa Hope fica na zona centro-sul de São Paulo e acolhe crianças e adolescentes com câncer, com transplante de rim e fígado, além de pessoas transplantadas de medula óssea de todas as idades.
Em quase 30 anos, já recebeu mais de 13 mil pacientes de todo o país, que são atendidos em hospitais de referência da capital pelo SUS. Com 192 vagas, é inevitável que uma comunidade se forme ali.
As crianças fazem amizade muito fácil, é muito bonitinho ver elas crescendo juntas. Gabriela Rick, psicóloga na Casa Hope
Cuidado além do câncer
"Aqui tem mãe de todos os jeitos. Tem mãe de quando eu cheguei aqui, em 2013, que a gente conversa até hoje", diz Luciene Braz Barbosa Pereira, 53, que veio de Porteirinha (MG) com a filha Andressa Ludimila, 16.
Aquele foi o ano em que ela e a filha entraram na Casa Hope pela primeira vez, quando a menina precisou fazer um transplante de fígado. "Eu pus as roupas na mala e vim achando que ia pra uma consulta e voltava. Fiquei 11 meses", conta.
"A casa me deu todo o suporte, porque a gente não vem preparada. Nunca tinha visto esse frio, aí a casa me deu roupa também."
Naquele período, Andressa tinha 6 anos, aprendeu a ler e escrever com o apoio das pedagogas que atendem na casa. No ano passado, retornou à Casa Hope enquanto trata um linfoma.
No segundo ano do ensino médio, ela manteve os estudos à distância. "A professora entrava em contato, mandava as provas dela, ela fazia e mandava de volta. Passou o ano assim, fazendo as atividades, e passou de ano", diz a mãe.
Rick diz que manter a educação oferece outro olhar sobre o momento. "É muito importante para eles continuarem enfrentando o tratamento com a perspectiva de vida", diz a psicóloga.
E como recebem pessoas de diferentes partes do Brasil, uma forma de acolhimento é oferecer elementos que lembram a terra natal. "A gente recebe muita gente do Nordeste, então sempre tem uma farofa, uma farinha, algo da comida típica deles", diz Belmira de Novaes, assistente na área técnica da Casa Hope.
Adriana Buccolo, presidente voluntária da Casa Ronald de Itaquera, costuma dizer que o câncer é o menor dos problemas ali. Afinal, na periferia de São Paulo, os pacientes estão amparados pelo atendimento da Tucca e do Santa Marcelina, centros de referência em câncer infantojuvenil. "Aqui, o desafio são as pessoas", diz.
O problema social, a vulnerabilidade financeira, emocional e de alimentação dessas famílias é o que pega. Adriana Buccolo, presidente da Casa Ronald de Itaquera
Ana Clara Assunção, assistente social da Casa Ronald Itaquera, conta que algumas famílias chegam sem documentos e sem saber a que direitos têm.
"A gente conversa, eu identifico as necessidades delas e faço a garantia dos benefícios sociais", explica. É preciso emitir RG e CPF para tornar essa pessoa cidadã, um trabalho que ultrapassa o âmbito da doença.
Na Casa Ronald do Rio de Janeiro, a primeira da América Latina, há um projeto que doa alimentos para as famílias e outro que faz intervenções de melhorias na casa de origem.
"Vimos que tinha casas sem saneamento, sem vaso sanitário adequado, com umidade e uma criança com imunidade baixa", observa Sônia Neves, presidente da unidade. As reformas são feitas enquanto os pacientes estão em tratamento, longe de casa.
Rotina
As duas casas que a reportagem visitou têm regras de convivência, como as leis que regem o convívio em sociedade. Cada família é responsável pela limpeza do quarto que ocupa, equipado com camas, guarda-roupa, televisão, banheiro e berço quando necessário.
Enquanto o período da manhã geralmente é reservado às consultas e tratamentos médicos, os demais horários são ocupados com a programação de cada local.
Há eventos em datas comemorativas, dinâmicas em grupo e cursos de gastronomia, artesanato, manicure e informática, realizados por meio de empresas parceiras e voluntários.
"A gente trabalha muito com o sentido pró-vida. Além do adoecer e do tratamento hospitalar, que eles pensem e foquem em viver, em continuar com a vida", diz Rick sobre a oferta de cursos. "A gente tenta renovar a esperança deles todos os dias."
O serviço de alimentação é personalizado para atender às necessidades nutricionais de cada criança, conforme o tratamento médico. São até seis refeições por dia, às vezes mais do que o dobro do que as famílias têm em casa.
Para atender as demandas emocionais, profissionais de psicologia estão sempre à disposição, seja para falar das questões ligadas à doença ou outras preocupações da vida.
Manutenção é desafio
O Brasil tem sete unidades da Casa Ronald McDonald, um programa do Instituto Ronald McDonald. Levar o nome de uma grande companhia tem seus prós e contras. Por um lado, dá credibilidade à iniciativa, que segue padrões internacionais. Por outro, afasta possíveis doadores, que acreditam que o trabalho é totalmente bancado pela empresa.
Carlos Neves, gerente de desenvolvimento institucional da Casa Ronald RJ, explica que o McDia Feliz garante 45% do custeio da unidade, que precisa de R$ 345 mil por mês para ser mantida. Além disso, a verba arrecadada na ação é distribuída para todas as unidades e outras instituições não ligadas à rede.
"O nome não ajuda muito para entrar em editais públicos", ele exemplifica. O caminho é fazer campanhas de doação, promover bazar em parceria com grifes, convocar voluntários e convencer grandes empresas a doarem alimentos e itens de higiene. Na unidade do Rio, pessoas físicas representam de 10% a 15% do custeio.
Muitos começam a doar pela emoção, mas o desafio é reter os doadores. "A verba do McDia Feliz não faz ampliar nem manter todos os projetos. Precisamos do apoio da comunidade e das empresas para manter o padrão", diz Sônia Neves, presidente da Casa Ronald RJ.
Fora o McDia Feliz, cada unidade precisa desenvolver meios para se manter. "A gente tem que tirar leite de pedra", diz Buccolo, da casa de Itaquera. A unidade recebe doação de alimentos de pequenos comércios da região e está sempre em busca de voluntários e doações financeiras.
Na Casa Hope não é diferente. No início do projeto, há quase 30 anos, o médico Fernando Rizzolo viu uma grande corrente de doadores se formar em torno do propósito, que começou com uma casa na Vila Mariana com capacidade para 34 pessoas, entre pacientes e acompanhantes.
Hoje, para dar conta dos 8.000 metros quadrados e um custo mensal de R$ 600 mil a R$ 1,2 milhão, o esforço é maior. Ele, que é CEO da casa, diz que as verbas direcionadas ao espaço pelos governos estadual e municipal não suprem toda a demanda.
No ano passado, chegou a faltar carne para as refeições. "Nós entramos em pânico", diz. Cláudia Bonfiglioli, fundadora da casa, foi em busca de parceiros e conseguiu resolver o problema. "Foi um alívio. Chegaram toneladas de carne e as crianças e os transplantados puderam ter uma alimentação digna", lembra Rizzolo.
Para ele, a queda nas doações nunca foi tão crítica como agora. O desafio também é reter quem começou a colaborar lá atrás. No programa Adote Um Leito, é possível custear um quarto por R$ 3.000, o que para a casa é "muita coisa" e faz falta. "Mesmo assim, essas pessoas, com o tempo, deixaram de adotar", diz.
Ele conta que, em um dos momentos de crise na Vila Mariana, já sugeriram fechar o espaço. "Eu morro de fome, mas não vou fechar", disse. Apesar das dificuldades, quem se dispõe a gerir esses espaços mantém a esperança.
"Sempre aparece uma luz e conseguimos resolver o problema. Tem de ter fé e acreditar", diz Sônia Neves, que iniciou o projeto da Casa Ronald no Brasil após ser atendida por uma unidade nos EUA, quando um dos filhos teve câncer. "Sou grata por dar oportunidade ao tratamento das crianças."
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