Após retirar ânus, reto e intestino, ele decidiu fazer transição de gênero
Em 2015, Michel Romão, 24, passou a conviver com sintomas sem explicação para um adolescente saudável de 15 anos: diarreia, sangue nas fezes e perda rápida de peso. Preocupado, ele e os pais procuraram ajuda médica em Americana (SP), cidade em que nasceu e mora.
O médico disse que o estudante tinha retocolite, passou um tratamento, mas a situação só piorava. Foram mais de dois anos até chegarem ao diagnóstico correto: doença de Crohn.
Junto com 11 cirurgias, feitas ao longo de dois anos, Michel teve certeza de que não se identificava como mulher cisgênero e decidiu fazer a transição de gênero após um longo processo de cura, que o obrigou a retirar o intestino, o reto e o ânus. A VivaBem, ele conta sua história:
"Nunca tinha ouvido falar da doença de Crohn até ser diagnosticado com ela, quando tinha 18 anos. Inicialmente, os médicos me diagnosticaram com retocolite. Foi um longo processo de descoberta, tanto para mim quanto para os médicos que me acompanharam no processo de cura.
Comecei a sofrer com perda de apetite, peso, sangue nas fezes e diarreia que não passava. Minha família não sabia o que fazer e meus pais ficaram desesperados. A coisa só começou a melhorar quando me falaram do que eu sofria e que não podia mais comer alimentos com glúten e lactose, além de frituras e gordurosos. Também passei a não comer doces e tomar refrigerantes.
Entre 2019 e 2021, passei por 11 cirurgias, como reparação de hérnia e fístula, e a colocação de uma bolsa de ostomia, que só é indicada no caso de fístula no cólon, reto e ânus e sangramento nas fezes. Ela precisou ser retirada e recolocada, pois a primeira tentativa não deu certo.
Na penúltima cirurgia, mesmo com a bolsa, continuava a ter muita secreção a ponto de precisar usar fraldas. Foi quando o médico optou pela proctocolectomia total, que é a retirada do ânus, do reto e de todo o intestino.
De todos os procedimentos médicos, o pior deles foi quando precisei retirar a bolsa de ostomia para recolocá-la por conta do surgimento de uma hérnia. Na sala de cirurgia, pensei: 'desta eu não volto'.
Tive hemorragia durante o procedimento e tive que ficar mais de uma semana no hospital, entre a UTI e o quarto.
Descobertas e coincidências
Durante o momento mais crítico que passei na vida, tive certeza de que não me identificava com o gênero atribuído a mim quando vim ao mundo. Ainda adolescente, me identificava como uma pessoa transexual, mas devido às condições de saúde na época, não podia nem cogitar em passar por uma transição de gênero.
Lembro que, após uma das últimas cirurgias que enfrentei, minha mãe me perguntou, ainda no hospital, quais eram meus sonhos. Eu respondi para ela que só queria ser feliz sem me importar com o resto.
Na época da 11ª cirurgia, que foi a colocação da bolsa de ostomia, passei a pesquisar sobre transexualidade, fiz sessões de terapia e me identifiquei. Com 21 anos, decidi passar pela transição de gênero e contei com o apoio da minha família. Meus pais e meus dois irmãos estiveram ao meu lado e me acolheram o tempo todo.
Em Campinas, cidade onde fiz a maior parte do tratamento, perguntei ao médico que me acompanhava se o fato de eu ter a doença de Crohn seria um problema para fazer a transição de gênero. O médico que me acompanhava, o doutor Michel Gardere, pesquisou e me disse que não haveria problema em iniciar o tratamento hormonal. Isso me deu mais segurança durante o processo de transição, que durou de 2021 a 2024, e foi feito pela rede privada de saúde.
Quando me redesignei, veio a pergunta: como será meu nome daqui em diante? Busquei nomes próximos a Thalita no masculino, como Theo, mas não gostei. Como sou ligado a significados, me identifiquei com Michel, que no idioma hebraico simboliza aquele que é semelhante a Deus. E foi uma feliz coincidência me tratar com um médico que tinha esse nome e havia me ajudado tanto.
Amor à medicina
Atualmente, estou com 24 anos e levo uma vida normal. Sou um homem trans hétero, já namorei mulheres, mas hoje em dia estou solteiro.
Não tenho inflamações, mas elas podem voltar, seja no intestino delgado ou na área operada. A cada seis meses, refaço os exames, como o de sangue, e passo pelo doutor Michel para checar se está tudo bem com a bolsa.
Preciso tomar alguns cuidados com a higiene e ter acompanhamento constante. Também cuido da dieta, tomo bastante água e evito o consumo de fibras e alimentos gordurosos ou fritos, para não causar diarreia.
A doença de Crohn está em remissão e me habituei ao uso da bolsa, após um longo e doloroso processo de adaptação. Vou ao cinema, faço academia, saio com meus amigos. Coisas que parecem simples para muita gente, mas que eram algo distante para mim.
Cuido da minha alimentação e da saúde física e mental. Gosto de malhar e evito fazer exercícios que pressionem o abdome, para não ter uma nova hérnia e preservar a bolsa de ostomia.
Me tornei influenciador digital e estou estudando para poder cursar medicina. É um sonho que tenho desde criança e quero me especializar em proctologia e doença de Crohn para conseguir ajudar mais pessoas que sofrem disso.
Você precisa seguir o caminho que te faz feliz, isso não tem preço. Não se pode desistir dos sonhos, a bolsa de ostomia me deu uma vida nova e sou muito grato por isso. A vida tem altos e baixos, mas sempre tem algo bom lá na frente por vir."
O que é a doença de Crohn?
É uma doença inflamatória intestinal que pode se manifestar desde a boca até o ânus. Vem aumentando na América Latina e em outros lugares do mundo devido a fatores como: urbanização, industrialização, poluição, consumo de alimentos ultraprocessados, tabagismo e sedentarismo.
Segundo a Sociedade Brasileira de Coloproctologia, o problema pode atingir 100 a cada 100 mil brasileiros, especialmente na faixa entre 20 e 40 anos (60% dos casos). Mas é possível, em situações mais raras, que a doença inflamatória se manifeste em crianças, adolescentes e idosos.
Pode surgir da combinação de fatores genéticos aliados com alterações da microbiota intestinal e causar úlceras nas mucosas dos órgãos afetados, como esôfago, intestino delgado e/ou grosso ou reto, além de fístulas na região anal ou estenoses. Em alguns casos, se manifesta com todos os problemas, ou apenas um.
Os principais sintomas são:
- diarreia
- dores abdominais
- cólicas
- febre
- perda de peso
- sangue ou muco nas fezes
Por ser uma doença complexa e multifatorial, o tratamento varia de um paciente para o outro, passando por medicações para combater a inflamação, cirurgia para retirada de órgãos afetados (partes deles ou inteiros) e em casos extremos ou graves, a implementação de uma bolsa de ostomia. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, maiores são as chances de o tratamento ser mais efetivo e menos invasivo.
Fontes: Alexandre Carlos, médico assistente do Departamento de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas, membro do núcleo de doença inflamatória intestinal dos Hospitais Sírio-Libanês, São Camilo Pompeia e Albert Einstein, todos em São Paulo. Investigador principal de estudos clínicos em doenças inflamatórias intestinais no Hospital Sírio-Libanês e Instituto CPQuali e Michel Gardere Camargo, doutor em ciências da cirurgia pela Unicamp, médico assistente do Grupo de Coloproctologia da Unicamp e membro titular da Sociedade Brasileira de Coloproctologia.
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