Por que certos países têm proibido o tratamento hormonal de crianças trans?

A cada ano cresce o número de países com medidas restritivas de cuidados com crianças e adolescentes transgênero. Nos Estados Unidos, vários estados proibiram de vez o atendimento a esse público.

Todos alegam falta de evidências de benefícios de bloqueadores e hormônios e preocupações com danos a longo prazo, além de questões políticas e religiosas.

No Brasil, uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo) investigou procedimentos de transição de gênero no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual) do Hospital das Clínicas da USP.

O Amtigos, uma referência no país, segue atendendo, e profissionais ouvidos por VivaBem falam em palanque e desonestidade com o tema.

A Inglaterra, que restringiu o acesso de crianças trans a hormônios e bloqueadores em abril último, baseou-se em uma revisão encomendada pelo SNS (Serviço Nacional de Saúde), conduzida pela pediatra Hilary Cass.

A análise de quase 400 páginas questionou a eficácia dos bloqueadores de puberdade para crianças e adolescentes com disforia de gênero, sugerindo que outros tratamentos baseados em evidências podem ser mais eficazes, sem detalhar quais.

Desde os 4 anos, arrancava os vestidos

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O Amtigos, uma referência no país, segue atendendo, e profissionais ouvidos falam em palanque e desonestidade com o tema. Quem é atendido ali garante ter mudado a vida. Para melhor.

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Caso de Nicolas Lima, 11, que frequenta o ambulatório desde os 8 anos. Aos 4, sua mãe conta que ele arrancava os vestidos e insistia em se arrumar como um menino. Quando ele pediu para cortar seu cabelo bem curto, a farmacêutica Larissa Lima, 38, entendeu que precisava buscar atendimento especializado para a criança.

Hoje ele é acompanhado semanalmente por uma equipe de especialistas e, recentemente, começou a fazer exames para o uso de bloqueadores de puberdade devido à disforia, pois não aceita seu corpo e teme a menstruação.

Eu e o pai decidimos respeitar sua vontade. Ele passou por muitos desafios na escola e no condomínio, sofreu bullying, perdeu amigos e até apanhou. Desde o ano passado, estuda em casa. Mas sempre teve nosso apoio. Larissa Lima, 38, mãe de Nicolas, 11

Para Larissa, buscar ajuda logo no início, antes mesmo de esperar a adolescência do filho, foi a melhor decisão. "Ele melhorou muito, está mais forte e feliz. O Nicolas achava que a forma de resolver tudo era morrer, e no atendimento os profissionais mostram o tempo todo o quão inteligente ele é."

Como é o atendimento no Brasil

No Brasil, uma resolução de 2019 do CFM (Conselho Federal de Medicina) estabelece que para atendimento a pessoas trans é preciso uma equipe multiprofissional composta por psiquiatras, endocrinologistas, entre outros.

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Todo procedimento deve ter assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido, e menores de 18 anos devem apresentar termo de assentimento, concordando com os responsáveis quanto ao atendimento.

O bloqueio puberal só pode ser realizado exclusivamente em caráter experimental em protocolos de pesquisa, em hospitais universitários e/ou de referência para o SUS.

Tratamento hormonal só pode ser iniciado a partir dos 16 anos e deve ser prescrito por médicos com conhecimento específico.

Cirurgias para afirmação de gênero só podem ser realizadas após os 18 anos e exigem acompanhamento prévio por equipe multiprofissional.

Como é em outros países

Na década de 1990, clínicas na Holanda começaram a administrar bloqueadores de puberdade para jovens com disforia de gênero, para que os atendidos tivessem tempo para explorar sua identidade. A medida foi seguida por outros países.

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Mas a partir de 2020, alguns governos passaram a restringir o acesso a esses tratamentos devido à alta demanda e à alegada falta de dados comparativos confiáveis sobre sua eficácia a longo prazo, entre eles Finlândia, Suécia e Noruega.

Em maio deste ano, o Vaticano emitiu um documento aprovado pelo papa Francisco afirmando que a Igreja acredita que a fluidez de gênero e a cirurgia de transição constituem afrontas à dignidade humana.

O bloqueador de puberdade

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Em 2018, dez médicos da única clínica de transição de gênero para jovens do SNS da Inglaterra, conhecida como Tavistock Gender Identity Development Service, queixaram-se de se sentirem pressionados a aplicar bloqueadores da puberdade em crianças que nem comprovadamente tinham disforia. Acusados de transfobia por limitar o acesso a esses medicamentos, eles passaram a liberar o uso sem muitos critérios.

Foi quando o SNS contratou Cass para realizar uma revisão independente. Ao longo de 388 páginas, ela questiona a eficácia de bloqueadores de puberdade para crianças e adolescentes com disforia de gênero, em comparação com apoio psicológico, transição social para o gênero desejado ou nenhuma intervenção.

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O bloqueador é um hormônio usado na medicina desde a década de 70 para quem tem puberdade precoce ou câncer de próstata.

"É como se fosse um pause. E quando a pessoa chegar nos seus 15 anos e ver que não era aquilo que queria, eu tiro essa medicação e o eixo reprodutivo volta a funcionar normal. Não vai ter um dano à saúde a longo prazo", descreve a endocrinologista Luciana Oliveira, coordenadora do Ambulatório Transexualizador do Hupes-UFBA (Hospital Universitário Professor Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia), vinculado à rede Ebserh.

Existem pessoas no extremo, que querem um corpo mais próximo possível daquele que corresponde ao gênero com o qual se identificam, e tem pessoas que não querem, por exemplo, ter as mamas ou perder a ereção. É muito ruim impedir que alguém que deseja o extremo não tenha a possibilidade de ter acesso a isso. Luciana Oliveira, endocrinologista

As opiniões conflitam

O médico psiquiatra Saulo Vito Ciasca, do Núcleo Trans Unifesp - Famílias, Adolescências e Infâncias e no Espaço Transcender do Centro de Saúde Escola Butantã, está lançando um estudo que contradiz algumas conclusões de Cass.

Ele ressalta que sociedades de endocrinologia e pediatria, tanto nacionais quanto internacionais, possuem, sim, diretrizes padronizadas de cuidados psíquicos baseados em evidências.

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Ciasca destaca que o bloqueio puberal (em geral entre 10 e 12 anos de idade) e a hormonização (iniciada a partir dos 16 anos), têm sido associados a uma melhora significativa na qualidade de vida e na redução do risco de suicídio.

A pessoa que chega no serviço com 15 anos, vai ter um risco de suicídio. Quando ela chega um ano depois, já tem quatro vezes mais probabilidade de tirar a vida. Com 17, ela tem 8 vezes mais. A gente tem muitas evidências de que o bloqueio puberal e a hormonização, essa última a partir dos 16 anos, melhoram muito a qualidade de vida e reduzem o sofrimento mental. Saulo Vito Ciasca, psiquiatra

Os efeitos dos hormônios

A hormonização no Brasil começa a partir dos 16 anos, quando a estatura da criança não será prejudicada.

Alexandre Hohl, presidente da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) ensina que sua aplicação, seja em pessoa cisgênero —a que está de acordo com seu sexo biológico— ou transgênero, atua no crescimento, por isso o uso deve ser acompanhado por um médico.

Por causa disso, ele, que é também vice-presidente do Departamento de Endocrinologia Feminina, Andrologia e Transgeneridade da sociedade médica, aponta que hormônio não é aplicado em crianças porque os efeitos são irreversíveis.

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"Para muita gente, o hormônio é a solução, inclusive para pessoas cis, que querem tomar testosterona achando que será o salvador da pátria. Não é nada disso. Ele é ótimo quando precisa, e é uma porcaria quando não precisa", atenta Hohl, que é ainda professor de endocrinologia e metabologia da UFSC.

Por isso, o endocrinopediatra Daniel Luis Gilban, um dos coordenadores do Ambulatório Identidade do Hupe (Hospital Universitário Pedro Ernesto) da Uerj, defende a cautela no atendimento a crianças somente em centros de pesquisa, conforme já determinado pelo CFM.

Acho que esse cuidado se justifica para você não perder a mão do acesso, para não ter profissionais que não foram treinados adequadamente para isso. Quanto mais cuidado você tem ao lidar com jovens questionadores de gênero, que não são necessariamente pessoas trans, o risco de arrependimento é muito pequeno. Daniel Luis Gilban, endocrinopediatra

Aos 10 anos, a preocupação em menstruar

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A farmacêutica Mariana Bergamo Oda, 38, viu o filho rejeitar brinquedos e roupas femininas desde pequeno. Até ouvir da criança, então com 8 anos, que não queria ser uma menina.

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"Ele pediu para cortar o cabelo e comprar roupas de menino. Então foi fazendo essa transição de uma forma muito natural, enquanto eu e meu marido buscamos mais informações." Hoje, aos 10, Felipe se prepara para tomar o bloqueador.

Ele não tem problema nenhum com o corpo, mas já manifestou desde o início essa preocupação em menstruar. E como mãe, quero que meu filho tenha a opção, lá na frente, de escolher o que quer. Mariana Bergamo Oda, 38, mãe de Felipe, 10

Não é só a questão da intervenção farmacológica

Quando Gilban fala de pessoas que não necessariamente são transgênero, está incluindo aquela população que se identifica, por exemplo, como não binária, que corresponde a pessoas que não se identificam nem 100% como homem, nem 100% como mulher. O termo vem crescendo nos últimos anos, conforme observa a psiquiatra Paula Dione, voluntária no serviço de psiquiatria do Hupes.

"A nova geração se permite questionar e parar para pensar. É como se esse jovem dissesse: 'por que eu tenho que seguir esse caminho?'. Então o trabalho da saúde mental é de escuta de acolhimento para entender aquela história de vida. É muito menos do que a questão da intervenção farmacológica", explica Dione.

A psicóloga Suzana Livadias, que coordenou o Espaço de Cuidado e Acolhimento de Pessoas Transexuais e Travestis no Hospital das Clínicas de UFPE, ligado à rede Ebserh, acrescenta ainda que o sofrimento do indivíduo trans é menos com relação ao corpo e mais com a forma como ele é visto numa sociedade transfóbica. E que a questão das modificações físicas vai muito no sentido de proteger a saúde mental para que as pessoas possam dar conta de suas vidas.

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"É importante a gente destacar que o sofrimento vem do trato que a sociedade tem diante das pessoas trans. Por isso a psicologia atua no sentido de proteger o sujeito e garantir o atendimento das pessoas para que elas possam falar de suas dores e dificuldades", ensina ela, que está na chefia da Unidade de Saúde Mental no HC.

"É um alívio muito grande que a gente sente"

O estudante Luckas Silva, 18, começou a tomar bloqueador em 2018, quando deu entrada no Amtigos. Diz que já sabia bem o que era e as mudanças que pretendia fazer. De efeitos, conta ter sentido ondas de calor, irritabilidade e ganho de peso.

A testosterona veio cinco anos depois, em 2023. Fala que está achando demorado ver os efeitos. "Estou com um pelo na barba." Recentemente, ele retirou as mamas.

Tirei uma tonelada de peso nas costas, porque de todo o processo isso era o que mais me incomodava. Agora pode vir o que for que vou encarar. Luckas Silva

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Antes de todo esse processo, porém, e até chegar no Ambulatório da USP, Luckas se automutilava devido à disforia. Diz ter sentido ódio do próprio corpo por muito tempo. Hoje fala em alívio ao começar o acompanhamento cedo.

"Foi um alívio no meu coração saber que ia parar a menstruação e o crescimento das mamas. Ainda bem que comecei cedo, porque era uma angústia tão grande sair na rua já pensando se estou parecendo feminino, se minha voz está como mulher, que os seios estão aparecendo. Estaria perdido. Melhorei muito como pessoa e nas relações sociais."

Politização da saúde

No final de 2023, o texto final do relator da CPI que investiga o atendimento na USP, tenente Coimbra (PL), apontou o processo clínico como um risco à saúde para menores de idade. E propôs um projeto de lei para impedir o uso de bloqueadores hormonais para pessoas abaixo dos 16 anos —algo já preconizado pelo CFM, além da não admissão de novos pacientes em processos de transição de gênero até que sejam estabelecidas normas mais robustas e menos experimentais.

O projeto de lei foi distribuído para quatro comissões e só depois poderá ir à votação.

VivaBem entrou muitas vezes em contato com a USP e com o coordenador do Amtigos, o psiquiatra Alexandre Saadeh, para comentar o tema, mas não houve retorno. O espaço segue aberto para manifestação.

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Alexandre Hohl apresentou parecer da SBEM na CPI, e considera injusto o que estão fazendo contra a Amtigos devido ao importante acolhimento a essa população, nas suas palavras. "É uma politização, algo totalmente equivocado o que está acontecendo em São Paulo", ele opina.

O psiquiatra Saulo Vito Ciasca, que atuou na Amtigos, concorda e avalia que há uma tentativa de se usar um tema sensível para fazer polêmica. Na sua opinião, usam o pressuposto de defender crianças, sem olhar para elas: "Acho muito irresponsável quando você, de alguma forma, politiza uma questão de saúde, porque no final pode colocar uma pessoa à mercê de uma desassistência, quando o bloqueio é feito com critérios muito bem estabelecidos, com muitos profissionais envolvidos. É muito irresponsável e desonesto."

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