90 graus de escoliose: 'Bati o salto e minha costela encostou na bacia'
Cléo Francisco
Colaboração para VivaBem
16/07/2024 04h06Atualizada em 16/07/2024 11h02
Daniela Guedes de Macedo Fraga, ou simplesmente Dani Guedes, tem familiaridade com a dor. Aos 10 anos, descobriu ter escoliose idiopática, nome dado quando não se sabe o motivo da doença. A atriz resistiu à cirurgia na coluna até os 38 anos e saiu da operação com 24 pinos e duas hastes.
Em 2021, ela descobriu um tumor benigno de quatro centímetros envolvendo toda a hipófise (glândula cerebral), que também foi retirada na cirurgia. Era o motivo da acromegalia, uma das doenças raras que se manifestou. No caso dessa, ela viu seus pés e mãos crescerem.
Ano passado, a artista voltou aos palcos aos 44 anos. A obra foi adaptada às suas necessidades e mostra uma mulher que se sente rejeitada pelo marido por causa de sua deficiência.
Mãe de Cauê, 16, e Suelen, 26, a atriz se tornou ativista na causa das pessoas com doenças raras e invisíveis. Apoiada pelo marido, Roberto Marcio de Macedo Fraga Junior, fundou a Cia Teatro Raro, com a missão de tornar visível questões de interesse do público que enfrenta os mesmos desafios que ela. A VivaBem, ela conta sua história:
"Tinha 10 anos quando um primo me empurrou do balanço. Com muita dor nas costas, fui levada ao médico que detectou uma escoliose importante. Meus pais não a haviam percebido. O doutor solicitou o uso de colete para reverter o quadro e evitar a cirurgia. Mas sofria muito bullying e deixei de usar cerca de um ano depois.
Não queria ser olhada diferente. Nos bailinhos, terminava sempre dançando com a vassoura. Então, usei meu poder de comunicação. Na escola, transformava resumos de livros em cenas de teatro. Ganhava os meninos pelo papo por que a escoliose ficou mais aparente. E, assim, me descobri atriz e estudei teatro aos 14 anos.
Quando tirei o colete, a escoliose já tinha evoluído para 69 graus [a curvatura considerada normal vai até 10 graus], mas a cirurgia era mais arriscada na época. Disse aos meus pais que não queria fazê-la. Evitava roupas coladas e alguns vestidos, pois um lado das costas era muito alto. Fazia natação, RPG, mas meu caso era cirúrgico.
Quando entrei no teatro, me rebelei. Fingi que não existia escoliose, usava a roupa que queria, deixei o cabelo comprido e achava que escondia o problema. Cheguei ao final de muitos testes, mas não passava na prova de figurino e sabia que a questão era a coluna. Aos 16, em uma festa infantil, um contratante perguntou ao responsável do nosso grupo: 'Você trouxe uma pequena sereia torta?'.
Percebi a rejeição ao meu físico, fiz comunicação social e fui trabalhar em uma secretaria de cultura. Aos 26 anos, engravidei. Desejava parto natural, sem anestesia, mas meu filho se sentou. Tive que anestesiar e usaram fórceps. Vi tudo. Um ano após o parto, conheci minha filha em um orfanato.
Depois de alguns anos, voltei para o teatro com a peça Engano. Não sentia mais rejeição, estava diferente, tinha segurança. Fiz a sedutora, maluca, sonhadora, vilã, mocinha e convenci. A questão da coluna não aparecia, sabia como compensar o meu corpo e disfarçar.
Em uma das apresentações do musical Bar da Noite, em 2017, bati forte o salto no palco e as dores que já sentia ficaram incapacitantes. Minha costela encostou na bacia. Eram dois dias de espetáculo e três deitada.
Mas continuei as apresentações e, depois, ainda estreei A Mais Forte, por dois meses. Saía dos ensaios e espetáculos para o hospital por causa da dor. Operei a coluna em junho de 2018 e fiquei em cartaz até um dia antes da cirurgia.
Hoje digo aos pais: optem pela cirurgia sempre, agora é segura. Fiz a minha com 38 anos e hoje sinto os pinos a todo momento. Meu corpo, que antes conseguia disfarçar, fica torto, perdi a mobilidade da coluna.
A cirurgia levou 10 horas, minha escoliose estava com 90 graus. O resultado do que era a curvatura para o que ficou foi excelente. Mas meu cérebro não entende até hoje que estou reta. Então, agora, me sinto torta. Fiquei com diferença na perna e manco um pouco quando cansada. Após a cirurgia, achei que não poderia mais voltar ao palco, andava dura. Então, por quatro anos, trabalhei em uma empresa de comunicação.
Um dia, caí da cama. No hospital, pedi uma tomografia por que estava com um galo. Quando a médica voltou, me disse: 'A coluna está normal, mas você tem um tumor de quatro centímetros na hipófise'. Sentia a visão esquerda ruim, os pés ficaram grandes e o nariz mais largo. Era a acromegalia.
Essas áreas do corpo voltaram ao tamanho normal após a cirurgia. O tumor envolvia toda a glândula, que também foi retirada. Acordei com muita sede no hospital, mas não podia tomar água. Chorei e minhas lágrimas estavam tão salgadas que meu rosto ardia, parecia água do mar. Era sintoma do diabetes insipidus.
Preciso equilibrar a ingestão de água e vontade de urinar, senão desidrato, perco sódio, tenho confusão mental e entro em coma. Tenho incontinência urinária e já passei por vários perrengues. Não fabrico o hormônio que controla a sede e a vontade de urinar.
Já fiz xixi na academia, na cama ao lado do meu marido e me senti muito envergonhada. Foi muito difícil de aceitar no início.
Por causa da insuficiência adrenal tomo corticoide todo dia, pois não fabrico cortisol. Já com o pan-hipopituitarismo, meu cabelo começou a cair e inchei 30 kg. A osteoporose veio também e acentuou a perda óssea onde há os pinos. Minha imunidade é horrível. Tive covid sete vezes. Na última, no começo do ano, desenvolvi hepatite e trombose nas pernas.
Ano passado, o parceiro e autor Ricardo Leitte, me sugeriu voltar ao palco com A Mais Forte, mas com texto adaptado às minhas necessidades. E quero incluir pessoas, discutir com as mulheres questões de autoestima."
A escoliose
Para saber sobre o comprometimento da coluna, usa-se uma metodologia conhecida como ângulo de Cobb, que mede a curvatura através das vertebras mais inclinadas.
O grau de escoliose (ângulo de Cobb) é medido traçando-se uma linha entre a vértebra mais baixa e a mais alta da curva e medindo a angulação entre elas. Em geral, os pacientes têm mais de uma curva, sendo necessário medir 2 ou mais ângulos para uma mesma pessoa.
"Olhando a coluna de frente, não é para ter curvatura em nenhum dos lados. Quando chega aos 10 graus, considera-se escoliose", explica Carlos Eduardo Barsotti, ortopedista, cirurgião de coluna e especialista em deformidades complexas dessa estrutura.
Entre 15 e 20 graus, indica-se a fisioterapia. Com 25, se usa o colete, feito em 3D, específico para cada pessoa. Segundo o especialista, as pesquisas mostram que o uso correto e no momento certo, pode evitar até 70% das cirurgias.
Mais de 50 graus é caso de cirurgia o quanto antes. "Além de ficar torta, a coluna pode afetar outros órgãos, causando síndrome restritiva pulmonar, por exemplo. Escoliose grave diminui a expectativa de vida do paciente", adverte o especialista.
Recomenda-se que jovens, no início da puberdade, já procurem um médico de coluna. Meninas têm mais de escoliose que meninos, na proporção de oito para um. E os casos mais graves costumam ser em mulheres.
A questão dos hormônios
A acromegalia é uma doença caracterizada pelo aumento do nível dos hormônios GH E IGH-1. Na maioria dos casos é causada por um nódulo na região da hipófise, glândula que fica logo abaixo do cérebro, explica Felipe Gaia, endocrinologista com doutorado e pós-doutorado em endocrinologia e atual presidente da regional São Paulo da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia).
"Essa produção de hormônios pode levar a uma série de alterações tanto físicas como metabólicas" diz o especialista.
Entre as primeiras estão, por exemplo, o crescimento de mãos, pés e mandíbula, e alargamento de nariz. Além disso, pode haver também aumento de órgãos como o coração e surgimento de hipertensão arterial e diabetes.
O tratamento principal é a cirurgia. Há a possibilidade de até mais de 90% de cura com a retirada de tumores descobertos cedo e com menos de 1 centímetro. Descoberto tardiamente e maior, a chance de cura diminui. Quando a cirurgia não pode ser feita ou não controla a doença, pode-se fazer uso de medicamentos.
A diabetes insipidus, para evitar a confusão com a diabetes melitus, agora se chama diabetes por deficiência de vasopressina, outro hormônio. Pode acontecer por conta de danos na região do hipotálamo e hipófise, que secretam essa substância responsável por controlar a quantidade de água que os rins eliminam na forma de urina. É necessária a reposição com outro hormônio chamado desmopressina.
Danos à hipófise podem impedir a produção do hormônio ACTH, que estimula as glândulas supra-renais, que produzem o cortisol. Sem ele, dá-se a insuficiência adrenal, que pode causar queda de pressão, hipoglicemia e baixa de sódio, conjunto de situações que, não tratados, pode ser fatal.
Por fim, com a hipófise totalmente danificada haverá a falta de produção de TSH, que controla a tireoide e FSH e LH, que regulam a função dos ovários e testículos.