Por que você se dá bem com um remédio e com outro não?
"Alguém tem remédio pra dor de cabeça?", pergunta a colega. "Tenho esse", responde outra com uma cartela de comprimidos na mão. "Não me dou bem com esse aí, só com remédio tal", devolve a primeira.
Os dois medicamentos envolvidos na conversa têm ação analgésica e são indicados para o alívio da dor de cabeça, mas por que um funciona e outro não para a pessoa? E por que um mesmo medicamento tem efeitos diferentes em cada uma?
A resposta simples é que cada organismo processa os remédios de um jeito diferente. O porquê disso acontecer envolve questões genéticas que estão fora do nosso alcance.
Antes de ir para a explicação, é importante dizer que os medicamentos disponíveis no mercado têm segurança e eficácia comprovadas em estudos e análises rigorosos. Efeitos inesperados podem surgir quando eles chegam para um número muito maior de pessoas do que nos ensaios clínicos.
Chave e fechadura
Enzimas que ficam principalmente no fígado processam os remédios que tomamos. Para fazer efeito, a molécula que está no comprimido —a dipirona, por exemplo— deve se ligar a uma enzima específica relacionada ao problema que se quer solucionar, como a dor de cabeça. É como precisar da chave certa para abrir uma fechadura.
Quando as duas dão match, a enzima começa a metabolizar a molécula, ou seja, processá-la de forma equilibrada. Esse processo também é chamado de inativação e serve tanto para que o remédio funcione quanto para que ele seja eliminado pela urina após cumprir sua função.
Mas variações genéticas alteram a forma como as enzimas trabalham. Ou elas processam muito rápido, ou muito devagar, mudando a resposta da pessoa ao medicamento.
Se elas inativam muito rápido, não vai ter o efeito desejado, porque não vai chegar numa dose adequada no sangue para esse medicamento agir. Carolina Dagli Hernandez, farmacogeneticista e doutora em ciências farmacêuticas pela USP
Se as enzimas trabalham devagar, o remédio fica mais tempo disponível no corpo e pode agir em locais onde não deveria. "A chance de ter um evento adverso é muito maior, porque ele está em concentração alta no sangue."
Reações adversas a medicamentos aumentam mortalidade, hospitalização e representam um custo à saúde. O ideal seria adaptar a dose dos remédios a cada pessoa com base em fatores como indicação, idade, atributos genéticos, função renal e hepática para diminuir os riscos.
Por que isso acontece?
Hernandez explica que o motivo das alterações genéticas é evolutivo. No passado, quem tinha metabolização rápida era favorecido quando comia plantas com substâncias tóxicas. "A pessoa não morria por causa do veneno. Ela metabolizava muito rápido e ficava bem."
Quando os medicamentos foram introduzidos na história humana, o corpo não tinha referências. "A gente não tem uma adaptação genética para os medicamentos", afirma. É por isso que hoje algumas enzimas são estudadas para melhor compreender a relação com remédios.
A pesquisadora cita uma enzima que metaboliza cerca de 20% dos medicamentos. Ela age de forma lenta em cerca de 30% das pessoas e de forma rápida em 6%. São números importantes quando se quer direcionar o melhor tratamento.
Diferenças étnicas também podem levar a respostas variadas, como no caso do anticoagulante varfarina. "Existem pessoas asiáticas com uma frequência maior de uma variação genética que podem ter sangramento", diz Hernandez.
Quando se fala de etnias, ela destaca que o problema não é a genética, mas a condução dos estudos com os remédios. "Eles foram feitos principalmente em pessoas brancas, então as doses foram adaptadas para elas. Não foi coberto como é a resposta nas outras etnias."
Do simples ao complexo
A farmacogenética é a área que estuda todo esse mecanismo e explica a preferência de algumas pessoas por um remédio para dor de cabeça. Mas uma aplicação mais prática dela é em casos complexos, em que um teste genético faz diferença no tratamento.
A tatuadora e artista visual Maria Isabel Dagli Hernandez, 29, foi diagnosticada com depressão no final de 2021 e começou a tomar um remédio considerado de entrada. O principal efeito colateral que sentiu foi falta de libido.
Em abril do ano seguinte, o psiquiatra que a acompanhava sugeriu dar um "boost" no tratamento, associando outra medicação, porque ela tinha pegado covid. Segundo ele, a infecção poderia gerar deficiências cognitivas que afetariam o quadro depressivo.
Juntos, os remédios a deixaram ansiosa. "Usei por algumas semanas, mas continuava com crises de ansiedade e depressão", conta. Ela trocou a combinação por outro remédio, sentiu-se bem na primeira semana, mas viu o quadro piorar ao fim do primeiro mês. Quanto maior a dose, mais efeitos colaterais sentia, como enjoo e muito sono. "Eu dormia mais de 12 horas por dia."
Maria Isabel testou diferentes remédios por quase um ano, com piora da depressão, até decidir fazer um teste farmacogenético. "Foi uma decisão que adiei pelo valor", diz ela, que pagou R$ 2.000 no exame, em junho do ano passado.
O resultado indicava que um remédio que ela já havia tomado seria compatível, mas uma interpretação mais criteriosa identificou que a substância passava por uma enzima deficiente no corpo dela, que fazia o efeito indesejado.
De acordo com a avaliação do atual psiquiatra, ela começou uma nova medicação em agosto passado. "Foi incrível a diferença, parecia que estava sem depressão de novo, pelo menos nos primeiros meses."
A artista ressalta que o teste ajuda, mas não faz milagre. Ela segue deprimida, porém sem efeitos colaterais, teve diminuição das crises depressivas e de ansiedade, bem como dos pensamentos obsessivos. É que além do remédio, tratamento inclui mudanças ambientais, comportamentais e associação com psicoterapia.
Hoje consigo fazer coisas e pensar no futuro de forma que antes não conseguia. O remédio ajudou muito a enfrentar as adversidades de forma mais leve. Maria Isabel, tatuadora e artista visual
Oncologia também se beneficia
Além da psiquiatria, a farmacogenética é aplicada na oncologia para saber como uma pessoa vai reagir a um medicamento em determinadas doenças, como câncer de intestino.
"Tem um teste específico para ver se a pessoa pode desenvolver reações graves quando é administrada a fluoropirimidina", diz Henrique Galvão, médico geneticista especialista em oncogenética e gerente médico da Dasa Genômica.
Outra aplicação é para direcionar o melhor tratamento, pois há remédios que agem especificamente com um tipo de variação genética. "Vai além da farmacogenética, a gente chama de oncologia de precisão, porque foca no alvo específico." É possível saber qual tumor pode responder mais ou menos a determinado tipo de tratamento.
"Isso diminui muito os efeitos colaterais e torna cada paciente único", complementa Alejandro Arancibia, diretor médico da Amgen. A vantagem também é identificar quem realmente pode se beneficiar de determinado tratamento por procedimentos menos invasivos, como uma coleta de sangue ou saliva.
Arancibia destaca ainda o custo-efetivo dos testes, tanto para a indústria quanto para os pacientes, para evitar o uso indiscriminado dos remédios. "Você quer que o diagnóstico seja bem feito para o medicamento ser usado para o paciente específico, senão ele não vai servir."
Como os testes são feitos?
Pensando nos testes rápidos, como os de ancestralidade e saúde em geral, é possível comprar o kit pela internet e receber em casa. Há instruções para coletar uma amostra de saliva com haste flexível, da parte interna da bochecha.
Depois, o material é embalado e enviado ao laboratório, onde técnicos vão extrair o DNA e colocá-lo em sequência para identificar variações genéticas.
A gente consegue fazer uma predição de resposta do indivíduo àquelas drogas que já foram bem estudadas e que já tiveram o seu metabolismo relacionado com determinados genes. Vagner Simões, gerente nacional da Illumina
Mas a ciência não conhece tudo. "A gente ainda não sabe todas as variações e todas as drogas que podem ser ou não metabolizadas de maneiras diferentes."
Apesar das vantagens, ampliar o acesso a esses testes é um desafio, tendo em vista o preço deles e a dificuldade para reembolso dos planos de saúde. Simões aponta também o conhecimento médico como barreira: para ele, falta entender que a ferramenta existe e como usá-la e interpretá-la corretamente.
Nos campos específicos, porém, como na oncologia, Galvão defende que "a capacitação desses médicos está em uma velocidade muito grande", em paralelo com o avanço das tecnologias de diagnóstico e tratamentos.
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