Ele tem doença conhecida como morte em vida: 'Parecia o fim do mundo'
Renata Turbiani
Colaboração para VivaBem
24/07/2024 04h15
O brasiliense Antonio Maranhão Calmon, 47, sempre quis ser piloto de avião. Conseguiu realizar o sonho ainda jovem, e chegou a ser comandante de uma grande empresa de aviação comercial. Porém, aos 38 anos, teve de abandonar a carreira e mudar todos os planos por causa de uma doença.
Calmon tem ataxia de Friedreich, também conhecida pela sigla AF, uma patologia neuromuscular rara e progressiva que provoca a degeneração de algumas regiões do sistema nervoso central. Apesar de na maioria dos casos a AF se manifestar de forma significativa na infância e adolescência, no seu caso se deu na fase adulta. Os primeiros sinais mais evidentes apareceram na forma de caminhar e na fala.
O diagnóstico não foi fácil. Ao longo de anos, ele procurou diversos médicos e recebeu resultados errados. A seguir, Calmon conta em detalhes a sua trajetória e celebra ter feito parte do estudo clínico do primeiro medicamento do mundo para o tratamento da doença.
"Fui diagnosticado com ataxia de Friedreich aos 37 anos. Comumente, os primeiros sinais da doença se manifestam já com mais força na infância ou na adolescência. No meu caso, foi um pouco diferente —os sinais mais significativos se deram depois dos 30 anos.
Sempre fui uma criança muito ativa e quando tinha por volta de 10 anos, algumas pessoas da minha família notaram que eu tinha dificuldade de andar em linha reta. Quando brincava com meus amigos na rua, era o que corria menos, o que tinha menos agilidade.
Naquela época, todo mundo achava que isso era só uma característica minha. Ninguém pensou ser sintoma de uma doença. E fora que era algo bem ameno, nada visível para quem não conhece a AF e, na verdade, até mesmo para quem conhece.
E não me incomodava muito com essa pequena dificuldade locomotora. Claro que não queria ficar sempre para trás dos outros, mas levava numa boa e até acabava ficando mais motivado a tentar melhorar, a me superar.
Primeira perda da licença para pilotar
Os anos passaram e tudo seguiu na mesma. Aos 18 anos, realizei o sonho de me tornar piloto de avião. Mas, aos 25, levei o primeiro susto. Com essa idade, perdi pela primeira vez a minha carteira de piloto porque, na avaliação anual de saúde que era obrigatório fazer, fui diagnosticado com arritmia cardíaca. A suspeita era de síndrome de Wolff-Parkinson-White.
Para que pudesse recuperar a carteira, tive de procurar um cardiologista e fazer cateterismo e estudo eletrofisiológico. Como não foi encontrado nada visualmente nestes exames, presumiu-se que não tinha nenhum problema de saúde e consegui voltar a pilotar.
Hoje, acredito que essa alteração cardíaca já era uma manifestação mais clara da AF, que é uma doença que, além de comprometimento neuromuscular, afeta o coração e outros órgãos.
Fala arrastada e acusações
Passaram-se dez anos desse episódio, e aí sim tudo começou de fato a mudar. A primeira coisa foi que fiquei com a voz arrastada, outra característica da ataxia. Isso foi bem complicado na minha profissão, pois as pessoas pensavam que eu estava embriagado.
Fui acusado diversas vezes por passageiros e membros da tripulação de ter bebido. Como estava em uma posição de liderança —era comandante—, sendo responsável por mais de 200 vidas em cada voo, isso se tornou bastante complicado.
Mas a empresa para a qual trabalhava me conhecia, confiava em mim e achava que era essa forma de falar era só o meu jeito. E, também, nunca tive problemas nas simulações e avaliações, mesmo com as pequenas dificuldades locomotoras. Não demonstrava nenhuma inaptidão para a atividade.
Quase dez anos depois, em mais um exame de rotina anual para renovar a licença de piloto, aí sim apareceu uma alteração significativa. Fui afastado do trabalho e fiz muitos outros exames neurológicos e psicológicos e avaliações fisioterapêuticas.
Enfim, o diagnóstico
Neste período, recebi vários diagnósticos. Um deles foi que eu tinha a doença de Machado-Joseph e, outro, problemas de célula-tronco. Ainda assim, nove meses depois, consegui mais uma vez voltar a voar.
Segui indo a médicos e, em uma consulta no Sarah?Kubitschek, em Brasília, me pediram um exame neuromolecular e foi só então que soube que tinha AF.
Quando recebi o diagnóstico, parecia que era o fim do mundo, foi como uma sentença de morte. E de certa forma é, pois essa doença é conhecida como morte em vida, porque o lado cognitivo fica intacto, mas o corpo padece. É o contrário do Alzheimer.
Sempre gostei de filmes apocalípticos e, para mim, o apocalipse se deu pela doença. Isso no início. Porque depois pensei: tenho duas opções; a primeira é chorar, lamentar e sentir pena de mim mesmo e, a segunda, levantar e lutar para ter uma melhor qualidade de vida. Escolhi a segunda e, hoje, vivo plenamente da melhor forma que posso.
Nova fase da vida
Parei definitivamente de pilotar avião em 2015, aos 38 anos, e me aposentei. Logo depois, já não conseguia mais correr ou caminhar sem apoio. Desde então, sinto muita fadiga, que é um dos principais sintomas da doença, e é algo bastante debilitante, tenho dificuldade de equilíbrio e perda de coordenação motora fina e caio com facilidade.
Mas, como sempre fui muito ativo, não queria ficar sem fazer nada. Decidi fazer curso de mergulho, pois na água meus sintomas não são tão fortes e é uma forma de usar as habilidades que adquiri ao longo da vida. Fiz mais de 150 mergulhos profundos com cilindro.
Além disso, praticava voo livre com parapente. Mas aos poucos parei as duas coisas, para não me expor tanto aos riscos. No mergulho, o maior problema era me equipar no barco em movimento e depois pular na água. Nestes momentos, sempre precisava de ajuda. No voo com parapente, o pouso e a decolagem eram as partes complicadas.
Enquanto isso, busquei todas as alternativas para retardar a progressão da doença, que até alguns anos não possuía um tratamento específico. Quando estava com quase 40 anos, soube de um estudo da Biogen, nos EUA, para receber o medicamento omaveloxolona. A idade limite era justamente 40 anos e fui aceito um dia antes do meu aniversário.
Já no terceiro mês notei melhora: diminuição da fadiga e melhora na fala, no andar e na coordenação. Ficou comprovado cientificamente, no meu caso, uma redução de 90% na evolução.
Isso é um alívio, pois estava condenado a perder minha mobilidade e independência. Hoje, posso dizer que tenho uma boa vida. Moro em Portugal há dois anos e vivo com a minha namorada, que também tem ataxia de Friedreich e está em cadeira de rodas de forma permanente.
Sou paciente e sou cuidador. Eu e ela não temos ajuda externa, e sou eu quem faço a maior parte das coisas. Mesmo precisando dispor de mais força e concentração para lidar com as atividades diárias, como lavar roupa, arrumar a casa e fazer comida, tenho conseguido. E ainda saio, passeio e viajo.
Em relação aos cuidados médicos, além de tomar o omaveloxolona e óleo de cannabis para me ajudar com a insônia, passo em consulta com neurologista a cada quatro meses, e me consulto com outros especialistas, como oftalmologista, otorrinolaringologista, pois a doença também afeta visão, audição e deglutição, e cardiologista. E faço fisioterapia três vezes na semana.
Aprendi a aceitar o que a vida me deu e não tenho raiva da minha condição, da doença. Não me permito mais sentir pena de mim mesmo e busco formas de ser feliz dentro das minhas limitações e me manter independente pelo maior tempo que puder. Entendi que não devo criar mais limitações além das que já tenho."
O que é a ataxia de Friedreich
É uma doença rara, de base genética, progressiva, debilitante e que diminui a expectativa de vida. Apesar de rara, é a forma mais comum de ataxia hereditária recessiva, afetando, em média uma em cada 50 mil pessoas no mundo, pelos dados da Fara (Friedreich's Ataxia Research Alliance).
No Brasil, o segundo país com mais casos, atrás apenas dos Estados Unidos, a Abahe (Associação Brasileira de Ataxias Hereditárias e Adquiridas) mapeou aproximadamente 730 pessoas com a doença.
Nela, ocorre um defeito genético que faz com que algumas regiões do sistema nervoso central sofram um processo de degeneração.
Essa patologia se inicia geralmente na pré-adolescência, entre 8 e 15 anos, e causa alteração motora —perda de coordenação, equilíbrio e força, dificuldade para andar e fraqueza muscular.
"Em média, cerca de 15 anos após o início dos sintomas, os pacientes acabam precisando de cadeira de rodas porque não têm mais capacidade para caminhar", aponta Marcondes França Junior, professor assistente do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e chefe do Ambulatório de Doenças Neuromusculares e cochefe do Ambulatório de Neurogenética da mesma instituição.
O defeito genético ocorre por uma mutação do gene FXN, que codifica a proteína frataxina. Essa proteína é importante para a função da mitocôndria, organela que temos nas células e que é uma espécie de usina, sendo a fonte de produção de energia do corpo.
"Na ataxia de Friedreich, a degeneração acontece porque existe uma incapacidade dos tecidos em produzir energia na quantidade adequada para o funcionamento dos órgãos. Os órgãos que têm demanda energética maior, por exemplo, neurônios, músculo cardíaco etc. são mais vulneráveis e sofrem mais com a doença", enfatiza França Junior.
Embora seja uma patologia primariamente neurológica, é comum observar manifestações que vão além do sistema nervoso central. Dentre elas, destaque para uma alteração cardíaca chamada miocardiopatia hipertrófica, que, inclusive, é a principal causa de morte nos pacientes. Também ocorrem alterações ortopédicas, em especial escoliose, e hormonais, como o diabetes mellitus.
Os pacientes ainda têm fadiga —um dos sintomas mais prevalentes—, fala arrastada, perda auditiva, problemas de fala e deglutição, problemas na visão, dores nos músculos, nas articulações e nos membros.
O diagnóstico é feito por meio de testes genéticos que podem ser acompanhados de eletromiografia, eletrocardiograma, ecocardiograma, exames de sangue e ressonância magnética. Os médicos ainda podem mensurar a função neurológica e a gravidade dos sintomas por meio de escalas de classificação da doença.?? França Junior observa que o tempo médio entre os primeiros sintomas e a confirmação é de oito anos.
Por enquanto, não existe um tratamento específico para a doença no Brasil, mas a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) está analisando a possível aprovação do omaveloxolona, da Biogen.
O medicamento, o primeiro no mundo destinado ao tratamento de AF em jovens e adultos, para pacientes com 16 anos de idade ou mais, foi aprovado pela FDA (Food and Drug Administration), órgão dos EUA, em fevereiro de 2023, e, pela Comissão Europeia, órgão da União Europeia, em fevereiro deste ano.
"A AF é uma doença órfã, não tem nenhum tipo de intervenção modificadora de doença, um tratamento que pelo menos retarde a evolução. O que fazemos é tratamento voltado para reabilitação e controle de sintomas, com uma equipe multidisciplinar. Mas essa análise pela Anvisa representa um momento promissor. Acreditamos que haverá uma mudança de panorama", completa França Junior.