'Indústria farmacêutica não é a escória do mundo', diz CEO da Roche Brasil
Lorice Scalise, CEO da Roche Farma Brasil, destaca a necessidade de inovação nos modelos de negociação com o SUS e a saúde privada, enfatizando que superar crenças limitantes é crucial para promover um diálogo efetivo.
Em entrevista a VivaBem, Lorice esclarece que tanto a indústria quanto o governo compartilham o mesmo objetivo: cuidar dos pacientes e restabelecer sua saúde. Ela argumenta que, para atingir esse objetivo, é fundamental colocar as necessidades do paciente no centro das discussões.
A Roche Farma Brasil já implementou modelos inovadores de negociação, como o acordo estabelecido com o Hospital A.C. Camargo, em São Paulo, focado no tratamento do câncer de pulmão. Nesse modelo, se os resultados esperados não forem atingidos, a Roche não recebe o pagamento integral, compartilhando assim os riscos com a instituição parceira.
Lorice também aborda a possibilidade de aplicar esses modelos ao SUS, destacando a urgência da digitalização do sistema público para centralizar dados e gerar informações essenciais para a gestão. Segundo ela, a descentralização do cuidado é um ponto forte do SUS, mas há muito espaço para melhorias, especialmente na adoção de protocolos centralizados que garantam a equidade no tratamento em todo o país.
VivaBem: Há espaço para inovar nos modelos de negociação com o SUS e com a saúde suplementar?
Lorice Scalise: Acredito nisso, mas para que o diálogo exista é preciso superar crenças limitantes. O setor de saúde é muito sensível e marcado por posições polarizadas. Como se a indústria estivesse de um lado e o governo do outro. Não é verdade que temos interesses distintos. Precisamos colocar o nosso objetivo comum no centro das discussões. Todos queremos cuidar do paciente e restabelecer sua saúde.
Quais as novas formas de negociação que a Roche já conseguiu estabelecer?
Adotamos um modelo de negócio completamente diferente com o Hospital A.C. Camargo, em São Paulo. Criamos um programa completo na área de câncer de pulmão. Se o prognóstico imaginado não se cumprir por qualquer razão (a droga não teve o efeito esperado, o paciente não aderiu ao tratamento, entre outros fatores), significa que falhamos juntos. Nesse caso, a Roche não recebe 100% do que deveria receber.
Existem outras parcerias desse tipo?
Fizemos recentemente um acordo para tratamento de câncer de mama com o Grupo Oncoclínicas. Como existem diferentes formas da doença e protocolos de tratamento, estabelecemos um preço único por paciente. O Oncoclínicas paga esse valor para ter acesso ao nosso portfólio completo. A escolha do medicamento é feita com base no que for melhor para o doente e não no orçamento.
Vocês também celebram esses acordos de compartilhamento de risco diretamente com as operadoras de planos de saúde?
Temos trabalhado diretamente com quem presta serviço às operadoras porque a decisão médica cabe a eles.
Uma medicação não tem o mesmo efeito em todas as pessoas. Se dez mulheres com câncer de mama são tratadas com a mesma droga, talvez só quatro ou cinco tenham o resultado esperado. O prognóstico individual do paciente depende de inúmeras situações e condições impossíveis de controlar.
É possível aplicar esse mesmo modelo ao SUS? A Roche já tem acordos desse tipo com o sistema público ou pretende ter?
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Quero receberÉ absolutamente possível. Assumi o cargo há pouco mais de seis meses e estou o tempo todo advogando para que isso aconteça. O meu desejo é ter mesas de diálogo sem as barreiras as quais estamos acostumados.
A indústria farmacêutica não é a escória do mundo. Precisamos desse diálogo para pensar em políticas públicas com ações concretas e compartilhamento de risco para descomprimir o sistema de saúde.
Quais são as causas dessa compressão?
Grande parte dessa compressão ocorre por modelos que estão completamente ultrapassados. Não temos nada de concreto com o SUS em termos de compartilhamento de risco, mas temos várias possibilidades de diálogo.
Estamos em um momento fértil, com discussões bastante mais próximas do que tivemos em outros momentos. Precisamos superar barreiras, como a questão da governança.
Como assim?
O SUS tem um modelo fascinante de descentralização do cuidado. Ele consegue chegar à comunidade de cada pessoa, falar a mesma língua dela e conhecer as condições em que vive. A estratégia de saúde da família do SUS faz todo sentido, mas há muito espaço para melhoria na questão da digitalização. A Ana Estela Haddad, secretária de Informação e Saúde Digital do Ministério da Saúde, está trabalhando forte nisso.
Por que a digitalização é urgente?
A digitalização do sistema público é imperativa. Só assim teremos os dados centralizados para gerar informação para a gestão.
É muito difícil adotar um modelo de compartilhamento de risco se não há dados. Como vou saber se o problema foi o protocolo médico adotado ou se não alcançamos o resultado esperado porque o paciente não conseguiu fazer o tratamento por falta de transporte?
O que mais você acredita ser fundamental?
Precisamos de protocolos centralizados. Em oncologia, não dá para ter um tratamento escolhido no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) e outro em uma instituição de Manaus. Uma vez que decidimos que determinado protocolo é o melhor, ele deveria ser seguido em todo o Brasil.
O preço das drogas varia entre as regiões do país, o que pode impedir a adoção dos mesmos protocolos. O acesso é facilitado quando o Ministério da Saúde faz grandes acordos com os fabricantes e centraliza as compras?
Quando falo em protocolo não me refiro apenas às drogas, mas a tudo o que envolve o cuidado do paciente, como o tipo de infusão e os exames realizados nos tempos adequados. Você tem razão. A descentralização da compra pode levar a negociações distintas e à adoção de protocolos diferentes. A centralização da negociação é uma saída, mas podemos ser mais criativos na busca de soluções.
De que forma?
O Ministério da Saúde pode centralizar a compra e uma empresa ficar responsável pela distribuição.
Poderíamos pensar em decisões de compra centralizadas que pudessem atender ao Brasil inteiro.
Há muitas possibilidades de diálogo e formas de compartilhamento de risco. Quando conseguirmos superar a barreira da confiança e sair das posições polarizadas, poderemos avançar.
As drogas para doenças raras são um dos focos principais de inovação na Roche. O que a empresa pretende fazer para tornar esses medicamentos de alto custo viáveis para o SUS?
Temos um portfólio amplo para várias patologias. A Roche investe em pesquisa e desenvolvimento 20% de seu faturamento anual bruto. Acabamos de entrar no mercado da oftalmologia com a droga faricimabe, para tratar duas doenças que podem levar à cegueira. Estamos também na área de neurociências e atuamos com muita força em oncologia e em outros campos.
E as doenças raras?
É dolorido quando as discussões sobre doenças raras giram em torno do financiamento. Ouvimos que o sistema de saúde está quebrado, mas acredito que ele precisa ser mais bem administrado.
Quando falamos que essas drogas são caríssimas, é preciso pensar no impacto que o benefício delas terá na vida do paciente ao longo do tempo. O nosso desafio é dialogar sobre diferentes formas de financiamento desses tratamentos.
Vocês têm algo em mente a esse respeito?
Não tenho um modelo acabado para mencionar hoje. Temos que sair dos formatos prontos. Por isso, insisto no diálogo. Em um futuro não muito distante, gostaria que a maioria dos nossos acordos fossem de compartilhamento de risco.
Esse é o lugar mais sadio que a gente pode encontrar. Tenho certeza de que esses diferentes modelos vão dar mais acesso aos pacientes.
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