'Meu bebê tem hemofilia e está sem se tratar por não ter veias viáveis'
Diagnosticado com hemofilia A grave, uma doença hemorrágica em que o sangue não coagula corretamente, Otávio está sem tratamento preventivo, por opção da mãe, devido à dificuldade em achar veias para receber a medicação intravenosa. "Teve um dia em que perdi as contas de quantas vezes ele foi perfurado, demoraram quatro horas para conseguir pegar uma veia dele", conta a mãe do menino, a servidora pública Márcia Aparecida Ramos Serafim, 39.
Para evitar que Otávio se machuque, Márcia deixa o filho de 1 ano e 4 meses preso no chiqueirinho a maior parte do tempo. Ela tem medo que ele sofra algum trauma e tenha uma hemorragia. O hemocentro onde o menino faz acompanhamento fica a 12 horas da casa onde a família mora, em Santo Antônio do Jacinto, no interior de Minas Gerais. A seguir, Márcia conta como descobriu a doença do filho.
"No dia em que o Otávio nasceu esqueceram de colher sangue pelo cordão umbilical para o exame de tipagem sanguínea e fizeram a coleta tradicional pela veia do braço. No dia seguinte, a técnica de enfermagem foi dar banho nele e perguntou o que tinha acontecido, pois o braço dele estava roxo e inchado, como se estivesse quebrado. Disse que não tinha acontecido nada.
A pediatra o examinou e perguntou se na família tinha alguém com problema de coagulação. Ela desconfiou que o Otávio poderia ter hemofilia. Uma tia que estava comigo disse que um irmão dela, já falecido, teve hemofilia. A médica me orientou a procurar um hemocentro e um hematologista para fazer uma investigação. Ele fez os exames e foi diagnosticado com hemofilia A grave com sete dias de vida, em 2023.
A hemofilia é uma doença hemorrágica em que o sangue não coagula corretamente devido à deficiência dos fatores de coagulação. Os principais sintomas são sangramentos de difícil controle e hematomas desproporcionais ao trauma.
O hematologista explicou que como o Otávio ainda era muito bebê e o risco de se machucar era baixo, ele faria o acompanhamento de 2 em 2 meses, mas iniciaria o tratamento profilático [preventivo] a partir dos 9 meses de idade ou assim que ele tivesse o primeiro sangramento.
Após o diagnóstico, passei a ter cuidados redobrados com o Otávio. Ele dormia na cama comigo, ficava a maior parte do tempo no meu colo, dava banho e trocava a roupa dele devagar porque só de segurar um pouco mais forte já poderia gerar hematomas.
"Meu filho aprendeu a engatinhar na cama"
Tinha muito medo que o Otávio se machucasse, então fazia todos os estímulos com ele na cama até ele se firmar e só depois deixava ele no chão em cima do tatame.
Ele aprendeu a sentar sem apoio e a engatinhar na cama. Também colocava capacete, cotoveleira e joelheira para ele engatinhar e andar. Isso atrapalhava na mobilidade dele, mas tinha receio de ele ter sangramento nas articulações.
Aos 11 meses ele começou a ter muitos hematomas e iniciou o tratamento profilático que consistia em tomar uma medicação intravenosa chamada fator VIII uma vez por semana. Inicialmente, ele tomava no hemocentro, depois liberaram para eu trazer quatro fatores para casa e aplicar 1 por semana. Eles dão treinamento para os cuidadores, mas como tenho pavor de sangue, minha tia aplicava na UBS onde trabalha como técnica de enfermagem.
Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais difícil furar a veia dele para fazer exames e tomar medicação. Teve uma vez que ele caiu da cama, bateu a testa no chão e ficou com um hematoma enorme.
Furaram ele mais de 10 vezes para pegar uma veia para que tomasse o fator. Ele chorava de um lado, e eu do outro. No dia seguinte ele amanheceu roxo e inchado nas partes onde tinha sido furado. Ele não conseguia colocar os pezinhos no chão de tanta dor.
"Demoraram quatro horas para conseguir pegar uma veia dele"
Um dos piores momentos do tratamento foi quando ele teve um sangramento na boca, saíram alguns coágulos e o risco de engasgo era alto. Ele teve anemia, ficou debilitado e foi internado.
Vivi cenas de filme de terror no hospital. Teve um dia em que perdi as contas de quantas vezes ele foi perfurado, demoraram quatro horas para conseguir pegar uma veia dele. Geralmente eram quatro pessoas para segurá-lo e uma para colocar a agulha. Às vezes até conseguiam pegar a veia, mas o sangue não vinha. Era desesperador, ele sofria demais e olhava para mim como se estivesse pedindo socorro.
A situação ficou complicada, o Otávio praticamente não tinha mais onde ser furado. Os médicos cogitaram furar a veia jugular, mas como era muito arriscado e eu fui contra, fizeram um procedimento com anestesia e colocaram um acesso periférico em uma veia no pescoço. Um tempo depois ele perdeu o acesso e a luta para achar as veias continuou.
Otávio é um menino doce e tranquilo, mas ficou traumatizado. Quando ele percebia uma movimentação de pessoas perto dele, já começava a chorar. Chegou um momento que não aguentei mais ver o sofrimento dele e pedi para não furarem mais. O quadro dele se estabilizou e ele teve alta.
Em meio a esse processo, foi constatado que o Otávio desenvolveu um inibidor ao fator VIII, por isso a medicação não estava fazendo efeito. Uma possibilidade seria ele fazer a profilaxia com o fator VII três vezes por semana, porque o remédio tem uma durabilidade menor no organismo, mas seria muita maldade submeter um bebê de 1 ano a isso depois de tudo o que ele já passou.
Optei por deixar o Otávio sem tratamento profilático desde que ele recebeu alta, em maio deste ano. Estamos aguardando a liberação do Ministério da Saúde para ele ter acesso à uma medicação subcutânea chamada emicizumabe.
Fico triste e com o coração partido, mas para evitar que meu filho se machuque enquanto está sem profilaxia, deixo ele a maior parte do tempo preso no chiqueirinho. Coloco brinquedos e dou o celular para ele assistir desenhos, mas ele chora quando fica cansado e quer sair. É difícil vê-lo nessa situação, sinto que ele não está vivendo.
Minhas duas filhas mais velhas interagem com ele para ele se distrair. Em alguns momentos, coloco os equipamentos de proteção e deixo ele andar pela casa com a minha supervisão. Ele fica feliz.
Esses dias saí com o Otávio, uma moça me abordou e falou: 'É esse menininho que não pode andar?' Esclareci que ele pode andar, mas é preciso ter cuidado. As pessoas criticam, mas não imaginam o que já passamos, não desejo para ninguém.
Meu maior medo é que ele sofra algum trauma e tenha uma hemorragia grave. Tenho três injeções do fator VII em caso de emergência, mas o hemocentro onde ele faz acompanhamento fica a 900 km da nossa casa. São cerca de 12 horas de viagem para ir e 12 horas para voltar do Hemominas, em Belo Horizonte. Dependemos do transporte da Secretaria de Saúde.
Sou uma mãe superprotetora e tudo o que faço é pensando no bem do meu filho. Estou na expectativa para que ele receba a nova medicação. Tenho fé e esperança em Deus de que o tratamento terá efeito e de que vou ver o Otávio se desenvolvendo, explorando sua infância, sendo feliz e vivendo como as crianças da sua idade."
As dificuldades da hemofilia
A hemofilia é uma doença hemorrágica em que o sangue não coagula corretamente devido à deficiência dos fatores da coagulação.
A doença possui dois tipos: A (deficiência de fator VIII) e B (deficiência de fator IX).
Pode ser classificada como leve, moderada ou grave.
Na maioria dos casos, é hereditária, mas ela também pode ser adquirida.
Os principais sintomas são:
- sangramentos espontâneos ou após trauma/quedas de difícil controle
- hematomas desproporcionais ao trauma
- inchaço das articulações sem história de trauma devido aos sangramentos intra-articulares
O tratamento padrão é a reposição do fator faltante por via endovenosa, que deve ser realizado de uma a três vezes por semana, de acordo com o quadro clínico do paciente.
A aplicação é simples, porém, um dos problemas é a dor e a formação de hematomas (o risco é maior em pessoas com hemofilia) no local da punção venosa.
Bebês e crianças pequenas têm veias mais finas, mas existe variação anatômica individual. Crianças com acesso venoso difícil devem ser avaliadas individualmente. Uma possibilidade é a implantação de cateter venoso de longa permanência com equipe cirúrgica experiente.
Pacientes que não recebem corretamente a reposição dos fatores de coagulação específicos estão sujeitos a sangramentos intra-articulares de repetição que podem levar a sequelas motoras definitivas das articulações acometidas, o que inclui redução de movimento, dor, edema crônico e, nos casos mais graves, o uso de muletas, bengalas e até cirurgia.
Tratamento inovador
Atualmente, está disponível um novo tratamento para pacientes com hemofilia A, o emicizumabe.
Ele não é um fator de coagulação, mas um anticorpo monoclonal que pode ser utilizado tanto por pacientes que desenvolveram o inibidor ao fator VIII, quanto por aqueles que não desenvolveram.
O uso é restrito e para casos específicos definidos pelo Ministério da Saúde.
A vantagem do emicizumabe é que sua aplicação é subcutânea e, portanto, menos dolorosa. A medicação possui bom controle dos sangramentos e um maior tempo de ação. Dependendo da dose e do peso do paciente, a administração pode ser semanal ou até quinzenal.
O emicizumabe está disponível no SUS, mas o estoque está baixo e depende de novas compras para regularizar o fornecimento em todo o país.
Fonte: Márcio Antônio Portugal Santana, médico hematologista da Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Minas Gerais.
*Com informações de reportagem de 23/04/2023.
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