Ele ficou 7 anos sem falar, isolado: 'Voltei a viver com a prótese vocal'
Quando ficou rouco de repente, Ricardo Gama pensou que era pelas condições do ambiente de trabalho. Mas depois de 40 dias sem melhora, decidiu consultar um médico e foi diagnosticado com câncer nas cordas vocais aos 40 anos. Tratado, o tumor voltou no ano seguinte na laringe, que precisou ser totalmente removida. Com isso, ficou sem voz. Hoje, aos 61, ele conta sua história a VivaBem.
"Em 2003, eu trabalhava numa siderúrgica, um local de muito barulho e altas temperaturas. Fui transferido para uma das áreas mais barulhentas e, de repente, comecei a ficar rouco. Imaginei que era por estar nessa área, foi simplesmente uma rouquidão.
Fui alertado pela família para procurar um médico, mas eu não tinha sintomas de gripe, febre, nada.
Depois de uns 40 dias que persistiu a rouquidão, fui ao otorrino, que detectou um calo na minha corda vocal e indicou que eu procurasse um cirurgião de cabeça e pescoço imediatamente, porque aquilo indicava um tumor.
No dia seguinte, eu já tinha uma consulta de encaixe. O médico me examinou novamente e constatou que eu precisava fazer uma biópsia para saber se era um tumor benigno ou maligno.
Fui direcionado para o hospital AC Camargo, onde consegui uma consulta na semana seguinte.
Depois da consulta, em quatro dias eu já estava na mesa de cirurgia para retirar o calo da corda e fazer a biópsia. O resultado veio depois de 12 dias com a confirmação de que era maligno. A equipe médica optou por retirar o calo por inteiro, fazer a raspagem da corda vocal e entrar com 35 sessões de radioterapia.
Eu tinha apenas 40 anos de idade, ainda trabalhava, estava ativo, no último ano da faculdade. O médico se sensibilizou e falou que ia fazer de tudo para preservar minhas cordas vocais, para que eu não perdesse a voz.
Rotina desgastante
Até esse momento, eu não tinha muita noção do que poderia acontecer. A cirurgia de raspagem foi de 40 minutos, eu voltei ainda rouco, mas falando, me alimentando. Aí as coisas começaram a complicar quando eu comecei as sessões de radioterapia.
Era muito desgastante, porque eu moro em Santos, saía de manhã para trabalhar em Cubatão até a hora do almoço, depois ia me tratar em São Paulo e voltava para casa. E a radioterapia era de segunda a sexta.
Na época, a empresa onde eu trabalhava colocou um carro à minha disposição, que todo dia me levava para a sessão e depois para casa.
Mas a radioterapia, há 20 anos, não era tão precisa como hoje, ela queimava os órgãos em volta. A partir da décima sessão, eu já estava bem debilitado.
Minha garganta foi afetada e eu tinha dificuldade de falar, engolir e mastigar. Perdi peso e isso tudo foi desgastando até o momento que eu me afastei do trabalho.
Volta do câncer e 7 anos de isolamento
Em 2004, infelizmente, houve uma recidiva. O câncer voltou direto na laringe, e o médico falou que tinha que tirar. Fiz uma grande cirurgia.
Fui para o hospital falando, entrei para a cirurgia e voltei mutilado, sem a laringe, sem as duas cordas vocais e com traqueostomia definitiva. Para o resto da vida vou ter esse buraco no pescoço.
Fiquei sem chão, arrasado. Eu não esperava que fosse acontecer isso comigo com 41 anos de idade. Foi quando tive depressão.
Eu não tinha condição de sair de casa, porque não tinha meios de me comunicar. As pessoas não me entendiam, me olhavam diferente, eu não conseguia produzir som. Fui me isolando, porque não queria que as pessoas me vissem assim.
Foi o momento mais difícil que eu passei, de 2004 a quase 2011. Foi um impacto para quem convivia comigo também. Eu só ia para a casa da minha mãe e do meu irmão, mas também ficava isolado, porque assunto eu até tinha, mas não tinha voz para falar. Minha mãe, às vezes, não queria me receber em casa, porque ela ficava constrangida de não saber se comunicar comigo.
Muito raramente eu ia a um restaurante, mas sempre com minha esposa ou filha. Não conseguia nem ir na padaria pedir um pão. As pessoas faziam perguntas e eu não conseguia responder. Isso me deixava extremamente nervoso, com vergonha.
Minha esposa é técnica de enfermagem, então ela me ajudou muito nos conhecimentos, nos curativos, na boa higiene do pescoço para evitar infecção. Minha filha foi sensacional. Ela falava comigo como se falasse com qualquer outra pessoa normal. Às vezes, ela me entendia de costas.
Na época, eu desliguei o telefone fixo que a gente tinha, porque quando tocava e eu estava sozinho em casa, não podia atender. Eu ficava lendo, vendo televisão, era tudo muito difícil.
Muitas pessoas acham uma eternidade, mas para mim passou como se fosse uma semana: quando percebi, estava completando sete anos de isolamento quase total.
Eu tinha psicólogo à disposição no AC Camargo, mas sempre fui muito resistente, não aceitava minha condição e não queria conversar sobre o assunto.
Relutei bastante, porque fiquei muito revoltado, não com a doença, mas com a sequela que me impedia de conversar. Minha esposa e minha filha insistiram bastante, mas não fui.
Esperança para voltar a falar
A laringe ajuda a respirar, se alimentar, ajuda no seu tom de voz e eu perdi esse órgão. Tive que fazer sessões de fono para aprender a engolir, mastigar, respirar e falar. Mas tudo isso não é da noite para o dia.
Fiz várias sessões de fonoaudiologia para tentar a voz esofágica, mas não consegui. Eu chorava nas sessões, às vezes de nervoso. Achava que não tinha que esperar mais tanto tempo para conseguir aquilo, achei que era de imediato.
Quando me apresentaram a prótese esofágica, fiquei fascinado e falei: 'acho que essa é a voz que vou querer ter'. Mas quando falaram que precisava de uma cirurgia para colocar a prótese, dei um passo atrás, porque fiquei muito traumatizado com o centro cirúrgico.
Tive que amadurecer a ideia. Me explicaram que a cirurgia era simples, a recuperação era rápida e que a possibilidade de falar era quase imediata. Em 2011, coloquei a prótese vocal, que realmente deu uma virada na minha vida.
Saí do centro cirúrgico e quando cheguei no quarto, já falei com minha esposa, e ela me entendeu. Telefonei para a minha filha, que não me ouvia há anos, e nos emocionamos muito.
Nova vida, nova voz
Voltei a viver, ao convívio em sociedade, com a família, com amigos. Voltei a sair sozinho, ir no restaurante, comprar algo no supermercado, ir ao banco.
Mas essa voz agora não é a minha. A voz é parte da nossa identidade, e eu comecei a ouvir uma voz diferente, que eu não conhecia. Tinha que fazer com que as pessoas do meu convívio, que conheciam minha voz, passassem a se habituar com minha nova identidade. Não é fácil.
Tanto que hoje, quando telefono seja para onde for, a primeira coisa que a pessoa fala é: 'pois não, o que a senhora deseja?'. No começo, isso me impactava, mas hoje eu já tiro de letra. Vou fazer o quê? A minha voz agora é assim.
Eu passei a não depender 100% da minha filha e da minha esposa, foi uma liberdade, muito emocionante.
Hoje, sempre que posso, faço minhas caminhadas no calçadão à beira-mar. Não posso entrar no mar para mergulhar por causa do traqueostoma. Tenho pouca capacidade pulmonar, então não jogo futebol, porque também não tenho condições físicas.
Eu pedalo, viajo, me divirto, frequento bar, restaurante, cinema, teatro. Moro no quarto andar e às vezes consigo subir de escada, tudo dentro da minha capacidade, não só respiratória, como da idade."
Tratamento nem sempre é mutilante
Em alguns casos, é possível preservar a laringe. Quando o câncer é detectado precocemente, o tratamento conservador envolve radioterapia e quimioterapia, dependendo do caso, a fim de manter o órgão inteiro.
Para isso, a laringe precisa estar funcionante, ou seja, a pessoa consegue falar sem rouquidão, não tem engasgos nem sente falta de ar.
Se o paciente chega com disfagia (dificuldade para engolir), engasga quando come, tem falta de ar, a gente tenta quimio e radio em alguns casos, mas a diretriz é fazer cirurgia, diz Katia Marchetti, oncologista do Hospital Sírio Libanês de Brasília e voluntária da ACBG Brasil (Associação Brasileira de Câncer de Cabeça e Pescoço).
A retirada de tumores malignos na laringe pode ser parcial ou total. Dependendo do caso, a cirurgia preserva parte da estrutura do órgão e mantém algumas das funções (fala, respiração e deglutição). Tudo depende da extensão do câncer.
Os principais fatores de risco para o câncer de laringe são tabagismo e consumo de bebidas alcoólicas. Quando se fala de tumores que afetam as regiões de cabeça e pescoço, o câncer de orofaringe tem como principal causa a infecção por HPV e o de nasofaringe pelo EBV (vírus Epstein-Barr).
É comum que a doença seja identificada em estágio avançado porque as pessoas não reconhecem os sintomas. Além de rouquidão, engasgo e falta de ar, outros sinais são perda de peso, falta de apetite, lesão na boca e linfonodos inchados.
Rouquidão que não passa em 48 horas é sinal de alerta. Marchetti dá o exemplo de uma pessoa que vai a um show e fica rouca depois de cantar e gritar: o sintoma dura de 24 a 48 horas. Quem tem contato com fumaça ou fuligem também pode sentir uma irritação por um ou dois dias. "Mas se não tem causa, fica rouco do nada, precisa investigar."
"O principal é ficar atento aos sintomas, tomar vacina contra HPV, pois reduz o risco de câncer, e cessação de etilismo e tabagismo, que vale até para evitar câncer de pulmão e bexiga", diz a médica.
Alternativas para falar
O tratamento do câncer geralmente envolve reabilitação da voz, que pode ser feita por três métodos:
- Laringe eletrônica: a pessoa usa um aparelho eletrônico portátil que, pressionado sobre a pele do pescoço ou da bochecha, emite uma onda sonora contínua. Essa vibração é transmitida para a cavidade oral e transformada em palavras conforme a pessoa usa língua, dentes e lábios para articular a fala.
- Prótese traqueoesofágica: método usado por Ricardo, trata-se de uma válvula colocada cirurgicamente na junção entre a traqueia e o esôfago, ligando as duas vias. Quando a pessoa quiser falar, ela tem de inspirar pelo traqueostoma e, em seguida, tampar o orifício com o dedo. O ar passar pela válvula, da traqueia para o esôfago, onde vibra para formar a voz pela articulação das palavras.
- Voz esofágica: é um método de produção de voz que não depende de cirurgia nem equipamento, mas de muito treinamento com fonoterapia (os outros dois métodos também precisam). O profissional de fonoaudiologia ensina técnicas para que a voz seja produzida a partir do esôfago, puxando o ar pela boca e devolvendo-o ao ambiente enquanto faz vibrar as paredes do esôfago, emitindo som.
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