'Sobrecarregada, grito, choro e rolo no chão': ela tem 3 filhos com autismo
Bárbara Therrie
Colaboração para VivaBem
13/08/2024 05h30
Mãe de três filhos com autismo, a dona de casa Patrícia Soares, 47, compartilha nas redes sociais como é a vida da família, que é do Recife, mas atualmente mora em Juazeiro do Norte, no Ceará. Pedro, 12, e Manuela, 10, têm nível 3 de suporte do transtorno e dependem da mãe para fazer todas as atividades, como tomar banho e se alimentar. Bruna, 20, tem nível 1 e já mora sozinha.
Com uma rotina bem estabelecida com os filhos, Patrícia diz que isso evita as temidas crises, mas de vez em quando as coisas saem dos trilhos. Nos momentos em que se sente sobrecarregada, ela grita no travesseiro, chora embaixo do chuveiro e rola no chão (sempre longe dos filhos) como estratégias para extravasar.
A seguir, Patrícia conta como descobriu o autismo dos três, fala da dificuldade de inseri-los na escola e diz que o autismo vivido por pessoas de baixo poder aquisitivo —como é o caso da família— não é o mesmo de quem pode pagar pelo acompanhamento necessário.
"Desde pequena Bruna apresentou alguns comportamentos que chamavam a minha atenção: teve dificuldades na amamentação, ausência de contato visual e demorou para andar. Com um ano ela sofreu uma convulsão, passou a ter quadros de restrição alimentar, sono agitado e ficava doente com frequência.
Aos dois anos e meio, Bruna escreveu o nome dela pela primeira vez em uma escrita espelhada, o que me deixou assustada. Ela tinha facilidade com as palavras e uma obsessão por livros, mas não absorvia os métodos escolares.
Bruna era mais calada, preferia ficar sozinha, não conseguia fazer amizades e sofria bullying. Às vezes, chegava beliscada e mordida em casa, permitia que os colegas fizessem isso na tentativa de ser aceita.
Troquei a Bruna de escola oito vezes em busca de uma melhor adaptação. Minha intuição de mãe dizia que ela tinha algo de diferente, mas não sabia o que era.
Patrícia levou Pedro a 15 médicos antes de diagnóstico correto
Em 2012, tive meu segundo filho, o Pedro. Ele mamava e chorava de uma forma exacerbada. Aos três meses, ele teve uma crise de choro que chamou a atenção do condomínio. A síndica foi ao meu apartamento e disse que um vizinho que era médico queria examiná-lo.
Ele disse que meu filho tinha alguma questão neurológica e me orientou a procurar um neuropediatra. A partir daí iniciamos uma investigação que durou quatro anos e meio até ele receber o diagnóstico correto de autismo.
Pedro era hiperativo, impulsivo, não parava de mexer as mãozinhas, tinha distúrbios do sono, não respondia a estímulos e não falava. Ele passou em 15 médicos, mas os profissionais eram despreparados e não sabiam com o que estavam lidando.
Alguns diziam que meu filho não tinha nada, outros diziam que era comportamental, mimo e que tinha que mudar alguns hábitos dele. Ele chegou a ser erroneamente diagnosticado como surdo e quase fez um implante coclear. Saía das consultas angustiada, chateada e sem resposta.
Em 2013, nasceu a minha terceira filha, a Manuela. Ela era mais tranquila, mas também notei que ela não olhava nos olhos, não respondia a estímulos, tinha restrição alimentar, distúrbio do sono e não falava.
Ao notar esses comportamentos, passei a escrever tudo o que acontecia com cada filho para não esquecer de nada. Tinha um dossiê deles e levava a todas as consultas. Em meio à investigação do Pedro encontrei uma médica que desconfiou que ele e Manu fossem autistas e pediu uma bateria de exames.
No dia 16 de março de 2016, os dois foram diagnosticados com transtorno do espectro autista nível 3. Na época, Pedro tinha 4 anos e Manu, 3. Nunca tinha ouvido falar na condição, mas é como se intuitivamente estivesse me preparando todos aqueles anos e só precisava de um nome para entender o que os meus filhos tinham.
"Nem todas as escolas são inclusivas e existe o preconceito dos pais"
Após o diagnóstico, tentei inseri-los na escola. Manu teve acesso a uma escola inclusiva por um ano. Nas instituições tradicionais, ela fazia as atividades, mas não conseguia ficar muito tempo na sala e precisava levantar e sair.
Já Pedro era inquieto, não se concentrava e quando tinha crises, jogava a mesa e tentava machucar os amiguinhos. Percebia que as pessoas não queriam meus filhos naquele ambiente.
Troquei eles de escola algumas vezes, mas isso gerou um cansaço, me questionava sobre qual seria o benefício de eles ficarem no canto da sala e não serem incluídos. Não vou generalizar e dizer que todas as experiências foram ruins, me deparei com professores e diretores bons, que queriam ajudar, mas eles sozinhos não conseguiam, é preciso que o sistema de educação para crianças com deficiência funcione, mas ele não funciona.
Nem todas as escolas são inclusivas, existe o preconceito dos pais e o ambiente escolar não adaptativo reforça isso. Pedro e Manu não vão mais à escola, eles frequentam 1 vez por semana o atendimento educacional especializado, um serviço voltado para alunos com deficiência, TEA ou superdotação.
"Só descobrimos o autismo minha filha mais velha por causa dos irmãos"
Três anos após o diagnóstico do Pedro e da Manu, a Bruna começou a não querer ir mais para a escola, passou a ter um desempenho ruim e quase reprovou, o que me deixou preocupada, porque ela sempre foi uma aluna aplicada. Ela não estava conseguindo lidar com a exclusão das colegas.
Levei a Bruna na neuropediatra que acompanhava os irmãos. Ela foi submetida a uma investigação e foi diagnosticada com autismo nível 1, aos 15 anos, em 2019. A notícia pegou a todos de surpresa, deixou a Bruna confusa e assustada. Ela demorou quatro anos para aceitar a condição.
Fiquei em choque, comparava ela com os irmãos e não entendia como ela era autista. Hoje compreendo a cegueira e ignorância que existem em torno do tabu do autismo, de achar que as estereotipias é que definem o transtorno. Suspeito que meu marido, o Antônio, seja autista, mas ele nunca fez nenhuma investigação.
"Pedro e Manu comiam correndo pela casa: era um caos"
Ter três filhos autistas é desafiador, a parte mais difícil é relacionada à alimentação e ao sono. A Bruna tinha algumas restrições alimentares, mas conseguia se alimentar da forma adequada.
O Pedro e a Manu não aceitavam talheres e não ficavam sentados. Eles pegavam o alimento e comiam correndo pela casa, derrubavam no chão, se sujavam e sujavam a casa toda. Era um caos.
O sono também era perturbador. Eu os colocava para dormir às 20h30, mas tinha dias que eles acordavam por volta de meia-noite e passavam a madrugada correndo pela casa, jogavam as coisas para cima, atacavam a geladeira.
Dava banho para ajudar a relaxar, tentava levá-los de volta para a cama, mas não adiantava. Muitas vezes eles iam direto e só iam dormir à noite. Atualmente, essas questões já estão controladas.
Rotina ajuda na autorregulação e evita as temidas crises
Atualmente, a Bruna tem 20 anos, é independente, mora sozinha, se tornou escritora e escreveu o livro "Diário de uma autista". O Pedro tem 12 anos, e a Manu, 10, mas é como se eles tivessem 3. Eles têm o nível mais avançado do transtorno, não falam (são não-verbais), são dependentes e precisam do meu suporte para todas as atividades.
Meu dia consiste em coordenar a rotina e estimular a autonomia deles. Já tivemos muitos avanços, hoje eles já conseguem usar os talheres e comer na mesa, mas preciso estar do lado orientando o que eles devem fazer. Eles têm horário para acordar, dormir, tomar banho, se alimentar, fazer os estímulos, receber visitas, prever saídas.
A rotina e a disciplina são extremamente importantes, pois ajudam na autorregulação e evitam as temidas crises, mas nem sempre o que faço para um funciona para o outro, preciso fazer adaptações.
Por exemplo, Pedro come banana cortada em rodelas, Manu come a banana inteira. Pedro só come arroz misturado com feijão, Manu come primeiro o feijão e depois o arroz. São detalhes que fazem diferença e que só é possível adaptar ao olhar para cada um como indivíduos. Pedro tem hiperfoco em água e brinquedos que o deixam em movimento. Manu em livros e lixo, e Bruna na escrita.
"Quando me sinto sobrecarregada, grito, choro, rolo no chão"
Sou mãe e cuidadora em tempo integral do Pedro e da Manu. Me sinto exausta no fim do dia, que mãe não se sente?
Meu marido é representante de vendas e viaja a trabalho cinco dias por semana. Minha comadre e o filho dela vão à minha casa uma vez por mês e ficam quatro dias para eu poder sair e resolver coisas.
Estou tão mergulhada no universo do autismo que brinco que sou um pouco autista. Minha vida está totalmente conectada a dos meus filhos, não consigo mais me ver como um indivíduo. Tenho dificuldades em me desvincular deles e em achar um tempo de qualidade pra mim.
Se faço algo externo que não seja relacionado a eles, como ir ao salão fazer a unha, fico com a consciência pesada. Acordo antes deles, tomo banho, me arrumo, tomo café, faço uma oração. Depois que eles dormem, tento me distrair um pouco, ler ou assistir a uma série. Estou trabalhando essas questões com o psicólogo.
Quando Pedro e Manu entram em crise, tento não me desesperar. Sei que não é por maldade ou por desobediência, entendo que eles não estão conseguindo lidar com algo dentro deles. Tento manter a calma e me desarmo de qualquer julgamento ou sentimento ruim, mas não sou a Mulher-Maravilha, não existe perfeição, sou um ser humano passível de erros e me permito fraquejar.
Tem momentos em que as coisas saem dos trilhos, me sinto sobrecarregada e sufocada, nessas horas tenho algumas estratégias para extravasar.
Quando estou sozinha e longe deles, grito no travesseiro, choro embaixo do chuveiro, rolo no chão e peço ajuda a Deus. Quando coloco tudo pra fora, já me sinto pronta e preparada para o próximo desafio.
"Pedro e Manu não fazem todas as terapias que precisam por falta de dinheiro"
Além do autismo, os três têm insônia, alguma comorbidade e tomam medicação. Bruna tem depressão, ansiedade e TOC (transtorno obsessivo-compulsivo). Pedro tem depressão e TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade). Manu tem TOD (transtorno desafiador opositivo).
Pedro e Manu passavam com uma fonoaudióloga e uma psicóloga uma vez por semana na Apae, mas como 30 minutos de sessão de cada terapia é insuficiente para o nível 3 de suporte que eles têm, abri mão do tratamento para dar oportunidade a outras crianças que estão na lista de espera e que podem ter um resultado eficiente.
Estou tentando as terapias pelo plano de saúde, não tenho condições financeiras de pagar de forma particular, então faço os estímulos em casa, procuro informações na internet e estou pensando em fazer um curso de terapia ocupacional.
O autismo vivido por pessoas de baixo poder aquisitivo não é o mesmo de quem pode pagar pelo acompanhamento necessário.
"Aceito meus filhos do jeito que eles são: eles nunca serão um peso para mim"
Em 2023, criei uma conta no TikTok para compartilhar a rotina com os meus filhos. Meu objetivo é atingir outras mães atípicas e mostrar que é possível lidar com o transtorno de forma positiva, com conhecimento e comprometimento. Os desafios vão sempre existir, mas quando aceitamos estamos prontos para tudo. Como dizem popularmente, aceita que dói menos.
Aceito a minha realidade e os três do jeito que eles são. Na minha casa nunca houve repressão, eles nunca foram e nunca serão um peso para mim. Nasci para ser mãe da Bruna, do Pedro e da Manu. Não é romantismo, mas eles são um presente para mim e me tornam uma pessoa melhor."
Há evidência científica de que o autismo possa ser genético?
As causas do autismo ainda não são completamente compreendidas. Os estudos mais recentes apontam para uma série de fatores que contribuiriam para o seu desenvolvimento:
- fatores genéticos
- condições da gestação e do parto
- prematuridade
- exposição a substâncias tóxicas
- infeções durante a gravidez
De acordo com Matheus Castro, médico geneticista do Hospital Sírio-Libanês (SP) e do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, já existem diversos genes associados ao TEA que vão desde alterações genéticas que causam o autismo até outras que aumentam o risco, mas que precisam se somar a outros fatores para desenvolver o transtorno.
"Identificou-se que há um forte componente genético no TEA através de estudos familiares e de gêmeos idênticos. Se um dos gêmeos tem autismo, o outro, que compartilha o mesmo material genético, tem um risco bem maior de ter. O risco também aumenta quanto mais familiares com autismo tiver na família, e quanto mais próximo for o parentesco com uma pessoa com TEA", explica Castro, que é especialista em neurogenética.
O risco em geral de TEA é de aproximadamente 3% para primos, 13% para irmãos e 59% para gêmeos monozigóticos (idênticos).
É importante fazer o aconselhamento genético para entender o risco de autismo dentro de cada família. O diagnóstico é clínico com base nos comportamentos do indivíduo, mas os testes genéticos ajudam a identificar as causas para o autismo e não o transtorno propriamente dito.
Burnout materno
O suporte para mães de filhos autistas precisa ser ainda maior, o que inclui alguém para ajudar com as tarefas domésticas, para lidar com os filhos —pois cada um possui necessidades e desafios distintos— e suporte social. Mas sabemos que essa não é uma realidade em todas as famílias. É comum que muitas mães se sintam culpadas e responsáveis por tudo e tentem se punir de forma inconsciente.
O burnout materno, ou seja, mães esgotadas física e mentalmente, existe. Elas podem ter dificuldades de sono, de alimentação, quadros de ansiedade e depressão, e esgotamento físico que pode levar a outras doenças e sintomas graves cursando com incapacitação e casos de suicídio. É o que explica Luciana Garcia, neuropsicóloga, especialista em análise do comportamento voltada para o TEA, doutoranda em medicina pelo departamento de pediatria da USP e coautora do livro "Autismo: um olhar por inteiro".
A mãe atípica tem uma ocupação para a qual não existem momentos de folga ou de descanso, são 24 horas por dia, 7 dias da semana e 365 dias por ano.
Luciana dá algumas dicas que podem contribuir com a saúde mental de mães de autistas:
Pratique exercícios físicos. O importante é fortalecer o corpo e garantir bons níveis de dopamina, endorfina e serotonina.
Tenha uma alimentação balanceada para garantir nutrientes que aumentem a energia, imunidade e desempenho cognitivo.
Tenha momentos de lazer, é preciso falar de outras coisas e mudar o foco para revigorar.
Peça ajuda terapêutica para elaborar situações difíceis, mudar crenças e melhorar a mente.
Busque suporte social, pesquisas revelam que pessoas que mantém amizades profundas e duradouras sentem mais felicidade e têm melhor saúde mental.
O CVV (Centro de Valorização à Vida) pode auxiliar em momentos difíceis.
Entenda que não existe perfeição e que você não é uma super-heroína de filme, é só um ser humano com todas as suas forças e fragilidades. Você não precisa assumir tudo, fazer tudo, dar conta de tudo, muito menos com perfeição. Aceite sua vulnerabilidade porque ela te faz humana.