Bipolaridade: 'Tratamento errado me fazia transar com desconhecidos'
Alice Arnoldi
Colaboração para VivaBem
19/08/2024 05h30
A arqueóloga Ana*, 26, foi diagnosticada aos 18 anos com transtorno bipolar afetivo (TAB) tipo 2, caracterizado principalmente pelas crises depressivas de automutilação e ideações suicidas. Só que o tratamento errado da condição, com antidepressivo, fez com que ela começasse a apresentar os episódios de hipomania, em que o indivíduo se sente invencível, colocando-se facilmente em situações de risco.
Depois de uma longa jornada com diferentes psiquiatras, ela encontrou remédios que trouxeram estabilidade, conquista que se deu também através do processo terapêutico. Hoje, ela enfatiza que o transtorno bipolar é apenas um diagnóstico e não uma sentença. A VivaBem, ela conta sua história.
Depressão e alucinações
"Comecei a ter episódios depressivos aos 10 anos. Não queria ir à aula, não conseguia assimilar o conteúdo e tinha dificuldade de socialização. Além disso, me sentia extremamente vazia, o que fez com que eu começasse a cogitar a ideia de suicídio.
Eu sabia exatamente como eu queria morrer e acredito que esses episódios de planejamento vinham da minha mãe, que era uma pessoa bastante depressiva e falava como iria se suicidar.
Aos 12, o processo de depressão estava tão intenso que comecei a ter alucinações. Via pessoas tocando em mim, vultos, como se fossem demônios. Nesta época, ela resolveu me levar para igreja. Quando esses episódios aconteciam, eu deitava em posição fetal e chorava muito, a nível de chegar a gritar. Os vizinhos vinham saber o que estava acontecendo e minha mãe falava que eu estava com enxaqueca ou alguma dor no corpo.
Fui à psicóloga pela primeira vez aos 16 anos, logo após assumir minha bissexualidade. Foi um período de muitos conflitos internos que estavam relacionados principalmente à crença religiosa do meu meio familiar. Pensava que Deus estava me condenando ao inferno pela minha sexualidade. Além disso, eu não era aceita dentro de casa e isso fez com que os episódios de depressão aumentassem e, como solução para toda dor que sentia, eu me punia, me mutilava.
Acredito que a mutilação era uma forma que meu cérebro encontrou para pedir socorro em relação a tudo que eu estava sentindo. Nesse período, fui fazer um exame de rotina em um posto de saúde e a médica viu os cortes. Ela me encaminhou para um clínico geral que me receitou antidepressivo e remédio para insônia. Foi a primeira vez que tive contato com medicação controlada.
O remédio acabou piorando o meu quadro depressivo. Eu não conseguia parar de chorar e já estava sem dormir há três, quatro dias. Estava começando a ficar completamente enlouquecida, então, decidi parar a medicação por conta própria.
Euforia e hipomania
Mas foi aos 18 anos que as mutilações ficaram ainda mais graves. Não queria mais viver. Minha mãe me levou ano Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), onde tive uma consulta de cinco minutos em que o psiquiatra me diagnosticou com bipolaridade e me passou fluoxetina, um antidepressivo.
Esse medicamento acabou sendo um gatilho para uma virada de chave na minha cabeça. Foi nesse momento que os episódios de hipomania e euforia começaram. Minha vida se tornou ainda mais caótica. Oscilava de humor várias vezes na semana e, às vezes, várias vezes no mesmo dia.
Os episódios de euforia eram marcados pelo uso excessivo de álcool, misturado com remédios controlados, e maconha. Me colocava sempre em situações de risco, por me sentir inabalável naquele momento, sensação que era potencializada pela bebida alcoólica. Nesses episódios, pegava carona com pessoas desconhecidas e andava de moto em alta velocidade, pulava o muro do cemitério, deitava em cima dos túmulos para beber, fumar maconha e depois correr da polícia. Tudo para me sentir viva.
Só parei de beber quando quase fui abusada sexualmente aos 20 anos. Eu lembro de ter bebido muito e, no dia seguinte, acordei toda mutilada, com queimaduras no meu pulso que outras pessoas tinham feito em mim e eu também. Meu braço estava muito inchado. E um cara estava em cima de mim, se esfregando. Consegui empurrá-lo e sair dali.
Foi nesse momento que tive um lapso e percebi que algo estava realmente errado e precisava de ajuda. Parei de beber e retornei ao psiquiatra. O problema desses períodos de euforia é que sempre que eu estava bem, largava a medicação.
Comecei o tratamento de transtorno bipolar com lítio, o que me fez ficar estável por cerca de dez meses. Só que acabei abandonando o remédio por sentir que não precisava dele. Não tinha mais crises de depressão e nem de euforia, mas não durou muito e eu acabei trocado o vício da bebida pelo do sexo. Tinha relações sexuais recorrentes, com pessoas distintas. Eu as conhecia em plataformas de aplicativo e, às vezes, no mesmo dia, estava na casa delas e passava semanas transando.
Tinha uma falsa sensação de controle da minha própria vida porque tinha saído de casa para ir estudar em outro estado e não tinha mais o envolvimento com a religião.
Mas, quando retornei para a fase depressiv, entendi que precisava voltar ao psiquiatra. Esse período é muito complexo porque sentia uma tristeza tão profunda que eu não consiguia me mover, levantar da cama, comer ou estudar.
O psiquiatra começou a tratar a depressão, passando por todo um processo de acompanhamento, em que ele foi introduzindo medicação e tirando. Até que ele começou a usar estabilizador de humor e ansiolítico. Permaneci com esse psiquiatra até os 24 anos e, então, ele fechou o meu diagnóstico de bipolaridade com mais traços depressivos.
Parei de me consultar com ele por causa da distância - estávamos em estados diferentes - e, por ele ser um senhor, não conseguia me atender por telemedicina. Continuei o acompanhamento com um psiquiatra do SUS, que só fazia a manutenção dos remédios.
Bipolaridade não tem cura
Recentemente, procurei um novo psiquiatra porque estava estabilizada e queria parar de novo a medicação. Só que ele me explicou que a bipolaridade não tem cura e que eu precisava encarar o remédio para ela como uma pessoa que tem pressão alta e precisa tomar medicamento pelo resto da vida. Foi ele quem fechou o meu diagnóstico de transtorno afetivo bipolar tipo 2.
Junto com o tratamento psiquiátrico, comecei o acompanhamento psicológico com terapia cognitiva comportamental (TCC). Com isso, comecei a entender que consigo criar hábitos e viver de forma saudável.
Hoje, acredito que a bipolaridade é apenas um diagnóstico na minha vida e não uma sentença. Sei que haverá momentos que vou me sentir triste ou feliz, mas não necessariamente serão períodos de depressão ou hipomania".
*O nome da personagem foi trocado a pedido dela, a fim de preservar sua identidade.
Transtorno afetivo bipolar tipo 2: o que é, sintomas, diagnóstico e tratamento
O transtorno afetivo bipolar tipo 2 é um distúrbio psiquiátrico em que a pessoa apresenta pelo menos um episódio de depressão e um de hipomania ao longo da vida - e não de mania. É o subtipo mais comum da condição, com os sintomas surgindo principalmente entre os 20 e 30 anos. Nesse tipo de TAB, as fases depressivas são mais predominantes;
O episódio de hipomania consiste em um período de pelo menos quatro dias, em que a pessoa apresenta pelo menos três dos sintomas como: dificuldade de concentração; pensamento acelerado e vontade incontrolável de falar sem parar; sono perturbado e/ou insônia; energia excessiva, mesmo sem necessidade; agressividade; irritabilidade e impulsividade;
A impulsividade no episódio de hipomania pode favorecer gastos excessivos, aumento da libido a ponto da pessoa ficar mais erotizada, beirando a promiscuidade, além de ela poder ficar mais vaidosa querendo um visual mais chamativo, mudando o cabelo repentinamente, colocando piercing e fazendo tatuagens. Essa fase também pode estar associada ao consumo exacerbado de bebida alcóolica e drogas;
O episódio depressivo do TAB tipo 2 costuma durar pelo menos uma semana e pode se estender por meses. Os principais sintomas que surgem nessa fase são: baixa energia; lentidão; desânimo; irritabilidade; sono em excesso ou insônia; diminuição da capacidade de sentir prazer na vida; desesperança; sensação de vazio; e pensamentos voltados à morte.
O diagnóstico do transtorno afetivo bipolar tipo 2 é realizado a partir da avaliação do histórico do paciente. No entanto, ele pode ser desafiador porque o indivíduo costuma buscar ajuda psiquiátrica apenas quando está na fase depressiva, o que pode levar a confusão de diagnósticos e prescrição de medicamentos errados.
Já quando a pessoa está no episódio de hipomania, ela pode nem sequer perceber que há algo de errado, porque está acostumada com o padrão e fica imersa na sensação de ser incrível. Além disso, pode até mesmo abandonar o tratamento que começou no pico depressivo. O mesmo pode acontecer ao se ver estável e pensar que não precisa mais do medicamento usado anteriormente;
O tratamento base do TAB tipo 2 é com estabilizadores de humor. Mas outras categorias medicamentosas podem ser combinadas, como anticonvulsivantes e antipsicóticos. A psicoterapia também é uma ferramenta importante no tratamento;
Recentemente, a eficácia do tratamento com psicodélicos, como a cetamina, foi comprovada nos casos de depressões resistentes às intervenções convencionais e também quando há risco elevado de suicídio em pacientes com transtorno afetivo bipolar;
Os antidepressivos não são comumente usados nos casos de transtorno afetivo bipolar porque podem levar o paciente do polo de depressão para o de hipomania e/ou euforia. Esse tipo de fármaco deve ser cogitado com cautela pelo especialista nos episódios depressivos e o indivíduo deve ser acompanhado de perto durante a prescrição;
Pacientes que mantêm o tratamento adequado em relação ao TAB tipo 2 conseguem manter uma vida dentro dos padrões de normalidade, o que pode levá-los a anos de estabilidade, sem recorrência dos sintomas. No entanto, é importante ter em mente que esse equilíbrio não anula a necessidade de seguir com a intervenção medicamentosa e psicoterápica, uma vez que o transtorno psicológico é tratável, mas não possui cura.
Fontes: Dr. Dartiu Xavier da Silveira, médico-psiquiatra, professor livre-docente do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo; Dra. Doris Moreno, psiquiatra do Programa de Transtornos Afetivos do IPq - Instituto de Psiquiatria do HC.