'Com 4 anos, minha criança perguntou se podia morrer para nascer menina'

Thamirys Nunes, 34, tornou-se ativista pelos direitos trans infanto-juvenil após entender que sua filha Ágatha, de nove anos, é uma criança transgênero. Desde os três anos, ela lamentava por não ter nascido menina e chegou até mesmo a questionar a mãe se, caso morresse, no outro dia poderia nascer mulher.

Thamirys relata que o processo de entender que a filha estava infeliz com o gênero que foi designado a ela no nascimento não foi fácil. Mas a luta para que ela possa ser quem é tem sido recompensadora quando ela percebe que tem em casa uma criança mais feliz e pronta para lidar com o mundo após passar pela transição social. A seguir, ela conta sua história:

"Com pouco mais de dois anos, minha filha já demonstrava ser uma criança com um desconforto muito grande com tudo que era muito tipicamente masculino, como brinquedos, roupas e personagens de desenho. Ela não gostava quando falavam que era muito parecida com o pai, que ia ser bonita como ele. Ela chorava.

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Imagem: Arquivo pessoal

Depois dos 3 anos e meio, começaram as verbalizações, os lamentos como 'que pena que não nasci menina' e 'teria sido mais feliz se Deus tivesse me feito menina'.

Nessa mesma fase, em qualquer brincadeira lúdica, ela se recusava a assumir papéis associados ao masculino. Por exemplo, ao brincar de faz de conta, ela não queria ser 'o' pirata, mas 'a' pirata, ou a princesa. Sempre no feminino.

Venho de uma família muito conservadora e não convivia com pessoas LGBTQIA+ no meu dia a dia. Então me causava muita angústia porque minha filha não brincava como outros meninos e não se interessava pelo mesmo que eles.

Me perguntava se era eu que não sabia educar essa criança. Onde estava errando? Tinha sempre a culpa, o lamentar e a dúvida. Do que estávamos falando? De uma criança gay? Foi muito confuso.

Com 3 anos, 11 meses e 15 dias minha filha falou: 'Posso morrer hoje, para nascer uma menina amanhã?'. Nesse momento soube que algo tinha que mudar. Na hora congelei e consegui só responder que ela não precisava morrer, o resto daríamos um jeito.

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Imagem: Arquivo pessoal

Aos quatro anos, ela me pediu uma festa de unicórnio, mas fiz do Mickey. Ela concordou porque queria ver a Minnie. Só que pedi para a decoradora não levar nem a Margarida e nem o Pateta. A festa era só do Mickey.

Quando ela chegou, perguntou das personagens e disse que elas tinham ido viajar uma com a outra e não puderam ir. Isso fez com que ela me dissesse que a festa não era dela e passou quatro horas na porta do buffet, sem entrar.

Nesse dia dei um basta. Minha criança precisava de mim, independentemente dos medos que eu tinha, do quanto a sociedade não entenderia, do quanto eu não entendia o que estava acontecendo. Precisava começar a entender para ajudá-la.

Menos vaidade para a mãe, mais convivência com o pai e até cachorro macho

Angustiados com a recusa do universo masculino e um interesse muito grande pelo feminino, levamos Ágatha a uma psicóloga da área de família, infantil, extremamente renomada.

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Ela nos falou que não tinha nada de errado com a nossa criança. O problema estava em nós, os pais. De acordo com a especialista, eu era uma mãe vaidosa demais e como a criança passava muito tempo comigo, eu trazia essa referência para ela.

Já o pai trabalhava muito, então a criança tinha pouca referência de masculinidade. A conclusão era de que nós, enquanto pais, não estávamos sabendo trazer o universo masculino para a criança.

A orientação foi que nossa filha passasse mais tempo com o pai e trouxéssemos mais referências masculinizadas para a vida dela, e que eu fosse um pouco menos vaidosa. E assim a gente fez.

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Imagem: Arquivo pessoal

Eu passei praticamente dois anos sem usar maquiagem, cortei as unhas e o cabelo bem curto. Não usava mais tanto vestido, usava mais calça jeans.

Se na fase dos dois anos, o ideal é o mundo Bita e Galinha Pintadinha, nós mostramos a ela todos os super-heróis da DC e da Marvel para tentar uma influência mais masculina. Chegamos até a comprar um cachorro macho para ter mais uma referência masculina em casa e nada adiantou. Quanto mais trazíamos o masculino, mais a minha filha dizia que não era nada daquilo que ela queria.

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Profissional capacitada a acolheu

Ao ver que não estávamos no caminho certo, decidimos procurar outra especialista. Conseguimos uma psicóloga que já atendia outra criança trans e ela foi fundamental no processo.

Ela conseguia ofertar para nossa criança um ambiente neutro, livre das expectativas da mãe e do pai, para ela externar o que sentia, expor suas questões, e ela mediava isso conosco.

Essa psicóloga olhou para a nossa criança sem preconceitos, acolheu suas demandas e foi nos ajudando a entender o que ela precisava e como poderíamos ofertar aquilo para ela naquele momento.

Posteriormente, entramos para o Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), do Hospital das Clínicas de São Paulo, que tem uma equipe multidisciplinar que acompanha o desenvolvimento da criança.

Como é a transição de uma criança

Hoje, minha criança já transicionou e é a Ágatha. Ela fez o que é possível para a idade dela, que é a transição social. Aos nove anos, não tem bloqueio puberal, uso de hormônios ou cirurgias de modificação corporal.

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Com a transição social foi modificado aquilo que a incomodava, como roupas, brinquedos, pronomes, como nós a vemos, como ela se vê, o nome dela, e é isso. Há protocolos possíveis para o futuro dela, mas a transição já foi feita. Ela é uma menina.

Há quem diga que a Ágatha pode se arrepender no futuro do que está vivendo hoje, mas é preciso entender que tudo que é possibilitado a uma criança trans é 100% reversível.

Como expliquei antes, ela não toma hormônio e nem faz cirurgia. Ela fez apenas a transição social e, dentro disso, tudo que é permitido para minha filha, que é mudança de nome, cabelo, roupas, acessórios, pronomes, tudo isso é reversível.

Não acho que se acontecer alguma mudança no futuro vamos olhar para trás e nos arrepender de tê-la acolhido. Hoje, a minha criança sabe que é respeitada, ouvida, que os sentimentos dela importam.

Sabemos que é muito enriquecedor para um ser humano saber que sua família o escuta, o respeita, valida seus sentimentos e principalmente suas dores, e é isso que fazemos pela Ágatha.

Com a transição de gênero, vejo hoje uma criança muito mais empoderada. Ágatha é mais viva, mais feliz, com brilho nos olhos e com mais opinião sobre o mundo.

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Como saber se uma criança está infeliz com o gênero?

O psiquiatra Saulo Vito Ciasca, coordenador do Espaço Transcender e colaborador do Núcleo Trans Unifesp - Famílias, Adolescências e Infâncias, explica que já por volta dos dois a três anos, a criança começa a se entender como menino ou menina. Pode ser por volta dessa idade que a criança trans comece a demonstrar descontentamento com o gênero que foi designado a ela desde o nascimento.

Diferentemente de uma criança que apenas gosta de brincadeiras estereotipicamente associadas a outro gênero, a criança trans em geral diz ser de outro gênero, reivindicando outra identidade, além de ser um assunto frequente no dia a dia dela. Podem questionar inclusive sua anatomia genital, mas isso não é regra ou obrigatório.
Saulo Vito Ciasca, psiquiatra

A criança trans tende a se sentir desconfortável com nomes e pronomes diferentes daqueles com que ela se identifica. Isso faz com que ela apresente sinais importantes de sofrimento, pois passa a sentir que não está sendo escutada e respeitada.

"Uma criança que não é ouvida em relação a não se sentir confortável com seu corpo ou com o gênero designado a ela desde o nascimento tende a se retrair e se isolar, aprendendo a esconder alguns comportamentos que lhe disseram que eram 'errados' por causa do seu gênero. Isso gera sofrimento, angústia, com maior chance de depressão, ansiedade, fobia social, irritabilidade, dificuldades de adaptação social e escolar, piora na sociabilidade, transtornos relacionados à imagem corporal, transtornos alimentares, autolesão e suicídio", explica o psiquiatra.

As etapas da transição de gênero

A transição de gênero de uma criança começa com as mudanças sociais, como as que Ágatha viveu. Em outras palavras, a criança escolhe desde o nome pelo qual quer ser chamada, seus pronomes, as roupas que gostaria de vestir, o tipo de cabelo que quer ter até os brinquedos que prefere que façam parte da sua rotina. Isso já é o suficiente para a criança transicionar e se sentir mais confortável em ser quem é.

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Além da transição social, a resolução 2265/2019, do CFM (Conselho Federal de Medicina), permite que seja feito o bloqueio da puberdade assim que ela começa em pacientes em que as mudanças corporais trazidas pelo período podem causar mais sofrimento e distorção de imagem para o jovem trans.

Vale lembrar que a puberdade fisiológica pode começar aos oito anos para quem tem vagina e aos nove anos para quem tem pênis.

O bloqueio de puberdade tem que ser autorizado pelos pais, que devem assinar um termo de consentimento livre e esclarecido, e o adolescente deve assinar um termo de assentimento.
Luciana Oliveira, endocrinologista

"É recomendado que o bloqueio puberal seja feito em centros universitários relacionados a projetos de pesquisa, porque ainda é uma prática que temos muito o que aprender sobre o que vai ser melhor para esses adolescentes a longo prazo", continua Luciana Oliveira, que é responsável pelo Ambulatório Transexualizador do Hospital Universitário Professor Edgard Santos da UFBA.

De acordo com a endocrinologista infantil Taciana Carla Maia, que está à frente do atendimento de crianças trans no Centro de Referência em Atenção Integral para Saúde Transespecífica, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, as medicações usadas para fazer o bloqueio puberal são extremamente seguras e as consequências do uso tendem a ser positivas.

"O bloqueio da puberdade pode ajudar nos sentimentos de não pertencimento da criança e/ou do adolescente, assim como na disforia até que ela possa ter mais maturidade para iniciar a terapia hormonal propriamente dita, após os 16 anos. Também reduzirá os custos futuros físicos e financeiros de cirurgias e outros procedimentos para adequação do gênero percebido. É completamente segura e reversível", diz Taciana.

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Aos 16 anos, adolescentes trans podem optar pela hormonização, também conhecida como terapia hormonal, desde que haja acompanhamento médico.

Em homens trans, o uso da testosterona engrossa a voz, aumenta os pelos corporais, redistribui a gordura corporal e aumenta a musculatura;

Em mulheres trans, o uso de estrógeno e antiandrógeno ajuda a suavizar a textura da pele, auxilia no crescimento das mamas, e redistribui a gordura corporal para que o corpo fique com uma silhueta considerada feminina.

Para além disso, a hormonização está associada com melhora da qualidade de vida, menores índices de depressão e ansiedade e maior conforto com o próprio corpo para quem deseja fazê-la.
Saulo Ciasca, psiquiatra

Aos 18 anos, pessoas trans que se sentem desconfortáveis com suas genitais podem ainda optar pela cirurgia de reafirmação sexual desde que elas estejam no mínimo há um ano em acompanhamento multidisciplinar e contraindicações médicas e psiquiátricas para a cirurgia tenham sido descartadas.

"Ser transgênero não é um transtorno mental, logo, não faz sentido indicar acompanhamento médico para toda pessoa trans. Porém vivemos em um país altamente transfóbico, e muitas dessas pessoas precisarão de apoio para conviver nesta sociedade e ter estratégias para lidar com isso", esclarece Ciasca.

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