Ela mora há 16 anos no hospital: quando o leito é a única casa de pacientes

Em um quarto com uma pequena cozinha, televisão, brinquedos e pinturas espalhadas pela parede, Andrea da Paixão Fonseca, 51, observa de sua cama as amigas combinando o que farão em seu aniversário. Até que ela chama a atenção, apontando querer salgadinho, e todas prometem atender ao seu pedido.

Com paralisia cerebral, Andrea tem a sua família formada por suas cuidadoras, que a acolhem e até a levam para celebrar datas especiais em casa.

Ela vive há 16 anos no Hospital Eduardo Rabello, zona oeste do Rio, única unidade pública no estado voltada para pacientes idosos. Não se trata de um abrigo, mas alguns deles, mesmo sob alta, são abandonados e, enquanto tenta-se um destino para eles, são considerados pacientes sociais.

Somente naquela unidade há cinco deles aguardando um desfecho. Até junho deste ano, de acordo com informações obtidas por Lei de Acesso à Informação, o Rio contabilizava 20 casos parecidos.

O de Andrea é peculiar. A mãe era funcionária pública e entregou a filha ainda recém-nascida para abrigos. Anos mais tarde, o Ministério Público do Rio determinou que ela ficasse numa unidade do antigo Iaserj (Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro). Com o fim do instituto, há 16 anos, ela foi parar no Eduardo Rabello.

Quarto com pinturas espalhadas pela parede é o lar de Andrea
Quarto com pinturas espalhadas pela parede é o lar de Andrea Imagem: Luiza Souto

"É um caso que ninguém sabe justificar. Ela não é paciente social, mas uma moradora. Já pedimos residência, mas ela fica com a gente até definirem o que fazer", diz o diretor da unidade, Helmer Cardoso de Mattos.

Duas enfermeiras se revezam por dia para ficar com Andrea. Elas passeiam, pintam e até "fofocam".

Ela lê os lábios de longe e entende tudo. Tem os gostos próprios, escolhe a comida e a roupa que vai vestir. Hoje mesmo notou que eu não estava bem e falou pra eu não ficar triste.
Sandra Lucia Trotta, 60, enfermeira

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A enfermeira Antônia Mara dos Santos, 68, diz que todo o amor que a "filha de coração" recebe das profissionais ajudou a mulher a evoluir e a se comunicar melhor.

Você acolhe como família, né? No final do ano, a levo para minha casa para passar Natal e Ano Novo. Não tenho condições emocionais de me separar dela. Tanto que não me aposentei por esse motivo. Faz parte de mim. Eu a beneficio e ela me beneficia.
Antônia Mara dos Santos, enfermeira

Da esquerda para a direita, Sandra (de azul), Antônia e Nilzete Luz; de jaleco, a assistente social Marcia Caldas
Da esquerda para a direita, Sandra (de azul), Antônia e Nilzete Luz; de jaleco, a assistente social Marcia Caldas Imagem: Luiza Souto

'Dói o coração'

Num leito a poucos passos do quarto de Andrea, Maria*, 83, balbucia algumas palavras incompreensíveis. Ela apresenta confusão mental e está no hospital desde outubro do ano passado, quando foi internada com pneumonia e infecção urinária. Apesar de ter recebido alta em dezembro, segue no local, pois não tem para onde ir.

Vitória*, de 89, também está de alta e, diferentemente de Maria, até tem condições financeiras de se manter. Mas não sozinha. Ela foi encontrada em seu apartamento em Copacabana, na zona sul, ao lado do corpo do marido, e internada com asma. Sem filhos, os possíveis parentes localizados são idosos e não têm laços afetivos.

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Numa breve conversa com VivaBem, disse que estava se sentindo bem e "doida para levantar da cama". "Estou pronta para ir embora."

Thereza*, 89, costumava viajar com o marido quando mais jovem. Após a morte dele, passou a morar nas ruas. Internada desde março deste ano com desnutrição aguda e problemas psiquiátricos, é considerada incapaz de morar sozinha. Pensionista da Marinha, tem irmãos e sobrinhos, mas ninguém se disponibilizou a cuidar dela.

Mattos diz que a complexidade de casos de abandono como esses agrava ainda uma questão já caótica no estado: a falta de leitos nos hospitais públicos:

Me pedem vaga todo dia, mas não cedo porque só tenho 30 leitos, sendo cinco com pacientes sociais que não consigo liberar. É um trabalho muito árduo. Dói o coração.
Helmer Cardoso de Mattos, diretor do Hospital Eduardo Rabello

'Não posso jogar na rua'

A assistente social Marcia Caldas é responsável por tentar dar alguma dignidade a essas pessoas no HER.

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Eu não posso pegar essas pessoas e jogar na rua. Elas precisam ser protegidas. Se forem lúcidas e quiserem sair por meios próprios, tudo bem, mas, quando não, dependem da gente para tentar primeiro uma reiniciação familiar ou comunitária.
Marcia Caldas, assistente social

Quando o paciente não tem condições de sair sozinho do hospital, ela aciona o Ministério Público e o Creas (Centros de Referência da Assistência Social) para tentar localizar possíveis parentes ou quem tem um mínimo de laço afetivo com o paciente.

Caso não tenha sucesso, cabe à central de regulação de vagas do município do Rio verificar disponibilidade em uma ILPI (Instituição de Longa Permanência para Idosos do Estado). Ela pode ser do município, do estado ou conveniada.

Segundo a secretaria municipal de Saúde, uma equipe técnica da central primeiro verifica se o caso é social ou de saúde, e qual a secretaria de referência para cada um dos casos.

Quando o idoso tem renda, a Justiça pode determinar um curador público para providenciar os cuidados de que ele necessita. O trâmite é o mesmo quando o paciente é uma pessoa adulta, mas nesse caso fica sob responsabilidade da Central de Recepção de Adultos e Famílias Tom Jobim (Craf).

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