Por que Millennials e geração Z preferem se afastar aos poucos de amigos
O conceito de "demissão silenciosa", do termo original em inglês quiet quitting, ganhou fama há cerca de dois anos, quando o mundo começava a voltar ao seu ritmo normal depois da pandemia de covid-19. Na ocasião, adultos da geração Y (1980 e 1994) e Z (1995 a 2010) começaram a fazer o mínimo necessário em seus empregos porque muitos já não estavam satisfeitos com o modelo de trabalho que vivenciavam e passaram a priorizar a qualidade de vida.
A "demissão silenciosa" agora ultrapassou a barreira profissional e tem sido aplicada por essas mesmas gerações às suas relações pessoais, principalmente amizades. É o que chamam também de desistência silenciosa ou abandono silencioso.
Foi o que viveu o baiano Uamiri de Sá Marques, 39. "Depois da pandemia, comecei a olhar com mais interesse para o que estava à minha volta, o que estava me agregando e o que não estava. Tinham amigos que eu achava que não estavam contribuindo, que estavam com comportamento tóxico comigo e com outras pessoas, mas como era uma amizade de anos, desde adolescente, a gente vai relevando muita coisa. Então aí, aos poucos, eu não fui ligando mais, falando mais e fui desaparecendo", relata.
Ele conta que nos últimos anos foi percebendo que alguns amigos não eram realmente "amigos para toda hora", que não podia falar sobre certas coisas. Então foi entendendo que algumas pessoas eram companhias que ele só poderia contar para festas.
"Tinha um amigo mesmo que conheço desde guri e com o tempo foi se tornando cada vez mais tóxico, não sei se por ele ter começado a ganhar dinheiro foi ficando escroto, destratando as pessoas, falando mal das pessoas por trás. Não queria esse tipo de companhia da minha vida e fui desapegando", diz Uamiri.
Com a enfermeira Vivian Cannato não foi muito diferente. A paulistana de 40 anos também precisou rever as amizades de mais de 20 anos que tinha com ex-colegas da faculdade. "Percebi que havia muita fofoca no grupo, falando mal umas das outras, e isso passou a me incomodar muito", relata.
Vivian conta que também passou a refletir mais sobre suas amizades nos últimos anos. "Na minha percepção, depois da pandemia houve uma mudança importante. Acho que todo mundo reviu seus conceitos, eu pelo menos revi. Então algumas coisas foram perdendo o sentido. Não é porque você ama seus amigos que precisa concordar com tudo que eles fazem, passar a mão na cabeça deles. Então comecei a ficar incomodada com essas atitudes de julgamento, porque eu acho que não tem espaço para isso dentro de uma amizade", reflete.
Tendência já foi observada nos Estados Unidos
Em matéria recente ao site Business Insider, psicólogos relataram ter observado a tendência entre os adultos da geração Y e Z e acreditam que o gesto tem seu lado positivo.
"Embora perder conexões duradouras possa levar a sentimentos de isolamento ou de perda, desistir silenciosamente também pode ser uma maneira saudável para a geração Y e a geração Z podarem suas vidas sociais, permitindo que novos e mais ricos relacionamentos cresçam", disse o psicólogo clínico Daniel Glazer ao Business Insider.
Nos EUA, a nova conotação para o termo já ganhou as redes sociais. Em uma publicação no TikTok, por exemplo, a criadora de conteúdo Melissa Ann Marie, 30, detalhou sua experiência com amizades "abandonadas silenciosamente". "Terminar com um amigo é estranho porque não é como um relacionamento romântico que tem que acabar porque você está saindo com outras pessoas, mas tem que desaparecer lentamente porque vocês não estão mais priorizando um ao outro", diz no vídeo.
Especialista diz que é "incapacidade de dizer o que se sente"
Ana Thereza Mazzi, psiquiatra colaboradora do IPq - HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), explica que muitas vezes o silêncio, em casos de rompimento, destaca a dificuldade de colocar em palavras os sentimentos.
Esse afastamento silencioso evidencia a incapacidade, cada vez mais comum, de dizer o que se sente. Além disso, a dificuldade em manter algo ao longo do tempo, que exige enfrentar frustrações, oscilações e a realidade viva de uma relação, que nunca corresponde exatamente ao ideal, também é um ponto relevante a ser considerado. Ana Thereza Mazzi, psiquiatra
Para Emili Barberino, psicóloga pela Universidade Federal do Vale do São Francisco e neurocientista do comportamento pela PUCRS, há uma relação bem significativa entre a "desistência silenciosa" das amizades e o quiet quitting no ambiente de trabalho. Segundo ela, ambos os comportamentos refletem uma postura mais introspectiva e individualista em relação às pressões sociais.
"No trabalho, o quiet quitting é uma forma de resistir ao excesso de demandas sem abrir mão da segurança de um emprego. Nas amizades, esse comportamento pode ser uma maneira de evitar confrontos ou discussões desgastantes, preservando a paz interior sem o estresse que um término de amizade aberto poderia causar. Essas gerações parecem estar reavaliando onde desejam investir sua energia emocional e tempo, muitas vezes optando pelo que percebem como menos doloroso ou desafiador", reflete.
Jéssica Mantoani, psicóloga e especialista em psicologia hospitalar, observa que para quem opta por esse caminho, torna-se mais "fácil" agir sem pensar do que ter um diálogo difícil, porém necessário. "Relacionamentos saudáveis são feitos de conversas difíceis. Quem é que gosta de uma conversa difícil? Ninguém. Porém, fazer o que é gostoso (fácil), muitas vezes leva a caminhos desastrosos", acredita.
Redes sociais favorecem movimento
A tendência do "abandono silencioso" das amizades pode estar refletindo uma série de mudanças culturais e tecnológicas que marcaram essas gerações. As gerações Y, também conhecida como Millennials, e Z cresceram em um mundo onde a comunicação é rápida e superficial, graças à ascensão das redes sociais e ao uso predominante de mensagens de texto.
Isso pode ter promovido uma cultura em que a paciência para lidar com conflitos interrelacionais ou manter vínculos mais profundos foi diminuída. Além disso, as exigências da vida moderna e a busca constante por produtividade podem fazer com que esses indivíduos priorizem outros aspectos de suas vidas em detrimento de amizades que consideram 'menos essenciais'. Emili Barberino, psicóloga
Mazzi chama ainda atenção para outro ponto. Segundo a psiquiatra, no mundo contemporâneo, onde a presença do digital é constante, parece haver uma confusão entre amigo e seguidor. "O sujeito que curte sua foto, comenta e troca memes é seu amigo? É importante fazer a distinção entre seguidores e amigos, pois muitas vezes todas as pessoas são niveladas em uma mesma categoria. As gerações Y e Z, imersas no digital, podem ser percebidas como menos comprometidas devido à facilidade e rapidez com que se formam e se rompem conexões online. No entanto, as relações exigem paciência, dedicação e respeito; são uma construção", reforça.
Vivian levou essa questão em consideração quando resolveu se afastar silenciosamente das antigas amigas. "Eu acho que precisa ser um comprometimento de 50% de responsabilidade de cada parte. Então, chegou um momento que eu percebi que era muito mais eu tendo que ir até elas e não vendo o mesmo esforço de virem até mim. E isso começou a ficar pesado", relata.
Marina Pinheiro, professora do Departamento de Psicologia da UFPE, acredita que, como toda relação, as amizades possuem também seus ciclos que podem se fechar e se abrir, a depender da qualidade das trocas produzidas.
"Um diálogo difícil é produzido quando há um compromisso com a verdade do que se sente e uma espécie de aposta na ideia de que compartilhando com o outro, a relação possa continuar, isto é: para manter-se viva a amizade, necessariamente precisa se transformar", comenta.
A psiquiatra Ana Thereza Mazzi acredita que a profusão de "amigos virtuais" e a necessidade de estar constantemente conectado e disponível, tem dificultado para essas gerações sustentar um grande número de relações e aprofundar os laços.
"Dessa forma, parece que estamos vivendo uma lógica de 'gosto ou não gosto, serve ou não serve para mim neste momento'. A lógica das redes sociais e as interações efêmeras podem levar as gerações Y e Z a valorizar mais as amizades transacionais, onde a troca de benefícios e interesses momentâneos predomina", acredita a psiquiatra Ana Thereza Mazzi.
Diferença de gerações
Para a psicóloga Emili Barberino, as gerações Y e Z não necessariamente são menos comprometidas que as gerações passadas, mas o comprometimento se manifesta de maneira diferente.
"As gerações Y e Z cresceram em um mundo hiperconectado, mas ao mesmo tempo mais volátil e instável, o que pode ter afetado a maneira como veem os relacionamentos. A busca por autenticidade e por um equilíbrio saudável entre vida pessoal e profissional se tornou prioridade. Se percebem que uma amizade não contribui para o seu bem-estar, podem optar por se afastar, sem necessariamente ver isso como falta de compromisso, mas sim como uma autopreservação", acredita ela.
Segundo Barberino, as gerações passadas, por outro lado, foram criadas com um forte senso de comunidade e laços duradouros, o que fazia com que persistissem em relações mesmo diante de adversidades.
Há lado positivo e negativo na desistência silenciosa
A psicóloga Emili Barberino enumera algumas vantagens e desvantagens que esse tipo de atitude traz.
Vantagens:
Preservação emocional: evitar confrontos diretos pode reduzir o estresse e a ansiedade, especialmente em indivíduos que têm dificuldade com conflitos.
Autopreservação: a pessoa pode sentir que está protegendo seu bem-estar mental ao se afastar de uma amizade que considera tóxica ou desgastante.
Desvantagens:
Falta de encerramento: a pessoa pode não ter a oportunidade de processar completamente o término da amizade, o que pode levar a sentimentos de culpa ou arrependimento mais tarde.
Impacto na confiança: a amizade que foi "abandonada" pode se sentir traída ou confusa, o que pode afetar negativamente sua autoestima e confiança em outras relações futuras.
Perda de oportunidades de crescimento: enfrentar conflitos de forma madura e aberta pode levar a um crescimento pessoal e ao fortalecimento das habilidades de comunicação, oportunidades perdidas em uma "desistência silenciosa".
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