'Nasci mulher por fora e homem por dentro': ela vive com síndrome rara

Eu nasci mulher por fora e homem por dentro.

É dessa forma que Mayara Araújo Dias Carlos, 29, descreve sua condição genética rara: ela tem a síndrome de insensibilidade androgênica, também conhecida como síndrome de Morris, em que a mulher nasce com a formação cromossômica que determina o sexo como 46XY (masculino), ao invés de 46XX (feminino).

"Eu nasci sem útero, sem ovários. No lugar dos ovários, tinha testículos internos [não perceptíveis]. Por fora, me desenvolvi como uma mulher normalmente, mas, por dentro, o sistema reprodutor era masculino."

@maymeloc Respondendo a @h0peisad4ngrous SÍNDROME DE MORRIS #foryoupage #viral #foyor ? som original - MAYMELOC

A síndrome de insensibilidade androgênica é uma condição caracterizada como intersexo, que ocorre quando há incapacidade total ou parcial das células para responder aos andrógenos, como a testosterona.

Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), 1,7% das pessoas no mundo nascem com traços considerados intersexuais.

A influenciadora digital de São Caetano do Sul, no ABC paulista, descobriu sua condição aos 13 anos.

'Sou a sexta da família'

Fui ao médico por causa de uma hérnia inguinal, mas já imaginava desde criança que poderia ter a síndrome por causa do meu histórico familiar. Sou a sexta mulher da minha família que nasceu com essa condição.
Mayara Araújo Dias Carlos

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Exames de imagem e de sangue comprovaram o diagnóstico.

Mayara na infância; por muito tempo, ela quis esconder a condição
Mayara na infância; por muito tempo, ela quis esconder a condição Imagem: Arquivo pessoal

Me tornei uma mulher, com desenvolvimento dos seios e da vagina, mesmo com o sistema reprodutor interno masculino. Fiz a cirurgia para retirar os testículos internos de 14 para 15 anos e já comecei com a reposição hormonal.
Mayara Araújo Dias Carlos

Mesmo sabendo que poderia ter a síndrome, Mayara conta que sofreu com a confirmação do diagnóstico. Durante a adolescência, passou por um processo de aceitação de sua condição.

Quando eu era mais nova, sentia muita vergonha de falar sobre isso. Na escola, minhas amigas comentavam sobre terem menstruado, sobre cólica, pediam absorvente emprestado e eu sempre mentia, dizia que já tinha menstruado também. Me sentia um peixe fora d'água.
Mayara Araújo Dias Carlos

Outro ponto importante foi a questão de não poder ter filhos biológicos. "Acho que foi o mais difícil. Sofri demais, demais mesmo. Passei anos sofrendo com isso, porque desde pequena meu sonho sempre foi ser mãe. Isso mexeu muito comigo."

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Para cuidar dessas questões, ela se apoiou na terapia. "Hoje, é bem diferente. Tento olhar pelo outro lado, de não sofrer com TPM, cólica e todas essas coisas."

Cuidados com a saúde

Na hora de cuidar da saúde ginecológica, são diversas as peculiaridades de quem tem a síndrome de insensibilidade androgênica. A questão anatômica é uma delas.

"As mulheres com essa síndrome podem ter um canal vaginal mais curto. Então, mesmo após operação da retirada dos testículos, pode existir dor no ato sexual. E aí é necessário fazer um processo de dilatação vaginal e, em alguns casos, cirurgia plástica", explica Helga Marquesini, ginecologista especializada em sexualidade humana do Hospital Sírio-Libanês.

No caso de Mayara, não foi preciso nenhuma outra cirurgia além da remoção dos testículos. Mesmo assim, ainda são necessários cuidados.

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Como não existe útero, a vagina termina em um fundo cego, então não tem aquela questão de fazer exames como o papanicolau, por exemplo. Mas é preciso ter cuidado com doenças como o HPV. Além, é claro, de todos os cuidados de saúde globais, como ultrassom e mamografia.
Helga Marquesini

'Por muito tempo, sofri sozinha'

Desde o ano passado, Mayara fala sobre sua síndrome nas redes sociais. "Um dia, minha irmã sugeriu que eu falasse sobre isso. No começo, fiquei meio receosa por causa do preconceito. Pensei: será que as pessoas vão achar que sou homem? Será que vão entender?"

Mayara na adolescência: descoberta de que não engravidaria causou sofrimento
Mayara na adolescência: descoberta de que não engravidaria causou sofrimento Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo com receio, ela gravou o primeiro vídeo e ele bateu mais de dois milhões de visualizações.

"Foi um susto, mas decidi continuar. É cada comentário, cada pergunta que recebo, coisas sem noção. Gente falando que eu sou trans, que não é verdade a síndrome, mas eu bloqueio todo tipo de hate", diz Mayara.

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Minha intenção ao postar esses vídeos e falar sobre a síndrome é também ajudar outras mulheres, porque por muito tempo sofri com isso sozinha. Então, coloquei minha cara à tapa para mostrar que todo mundo é ser humano igual. Não é por uma anomalia genética que eu preciso me esconder.
Mayara Araújo Dias Carlos

Entenda a síndrome

A síndrome de insensibilidade androgênica, ou síndrome de Morris, ocorre quando a mulher nasce com a formação cromossômica que determina o gênero como 46XY (masculino) ao invés de 46XX (feminino). Na síndrome, há a incapacidade total ou parcial das células para responder aos andrógenos, como a testosterona.

Para que se forme alguém com fenótipo (características externas) masculino, é preciso ter testículos e produção de testosterona, mas só isso não basta. É necessário, ainda, que o corpo tenha também um receptor para a testosterona em funcionamento —o que não ocorre com pessoas que têm a síndrome, explica Ubirajara Barroso Jr., urologista chefe da divisão de cirurgia urológica do Hospital da Universidade Federal da Bahia.

"No caso da insensibilidade androgênica, existe a testosterona, só que o receptor não é sensível", explica Ubirajara Barroso Jr.

Como não há sensibilidade, a testosterona não tem efeito e, se ela não tem efeito, tudo aquilo que deriva dela não vai existir, como o pênis. Se não se forma o pênis, se forma a vagina. [Na síndrome] A aparência, o fenótipo é feminino, mas a formação cromossômica é masculina.
Ubirajara Barroso Jr

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