'Autor de bullying se diverte e quer ser visto como engraçado e popular'
Brenda Fucuta
Colaboração para VivaBem
10/09/2024 05h30
Catarina Carneiro Gonçalves, doutora em educação, professora da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), é o que se convencionou chamar de especialista em bullying. Além de conduzir projetos de pesquisas acadêmicas sobre o tema, ela presta consultoria de enfrentamento do problema às escolas.
Nessa entrevista, Catarina explica que os espectadores —a plateia de alunos—, são o personagem mais importante do bullying
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VivaBem: Muitas escolas estão investindo em ações contra o bullying e mesmo assim ele continua acontecendo. O bullying é inevitável?
Catarina - É, é inevitável, no sentido de que a escola sozinha não consegue lidar com as muitas variáveis que o constituem. Como a escola é um lugar de convivência diária e o bullying é algo sistemático e recorrente, feito entre pares, é natural que se destaque mais nesse ambiente.
Hoje, temos uma série de legislações para impor à escola a incumbência de educar para a convivência, educar para a paz e enfrentar o bullying. A meu ver, isso não basta. É preciso chegar junto da escola, promover uma cultura de formação de professores que enxerguem a solução de conflitos de convivência como um valor.
O bullying não pode ser evitado, mas sua incidência diminui com ações preventivas e manejos eficazes. E ele não é responsabilidade só da escola, que vem sendo atingida de maneira perversa por diversas formas de violência.
Você não considera o bullying como a forma mais importante forma de violência escolar?
O que quero dizer é que a escola sofre violências contra profissionais de educação, contra alunos, contra a própria escola. Sofre com outros problemas de transtorno de convivência, como a agressividade e a indisciplina, além de violências estruturais como o racismo, capacitismo, misoginia, LGBTfobia.
O bullying é gravíssimo, porque a pessoa é violentada pelos pares, aqueles com os quais ela deveria constituir sua identidade. Mas, embora seja altamente danosa, não é a violência mais comum.
Racismo, capacitismo etc... não se transformam em formas de bullying no ambiente escolar?
Essas violências, que são resultado da nossa organização social, favorecem e alimentam o bullying, mas não são sinônimos. Elas podem aparecer de forma pontual, em um episódio ou outro.
O bullying requer repetição, um alvo e autores definidos, além de espectadores. Ele requer intencionalidade e planejamento, por isso é mais comum entre adolescentes do que entre crianças. A crueldade existe entre crianças, mas não o planejamento.
O bullying é inevitável e sempre existiu. Por que falamos tanto dele hoje?
Sim, do ponto de vista social, tem bullying desde sempre. Do ponto de vista acadêmico, os estudos começaram há pouco. Além disso, nós vivemos em um momento de desengajamento moral, em que os valores são o dinheiro e a aparência. Nesse movimento, o sujeito vai se embotando.
Ficam prevalecendo a cultura do tédio, o vazio existencial, a vaidade e o valor da popularidade. A espetacularização do Eu muitas vezes é o que alimenta o autor na situação de bullying.
Esse trio, alvo, autor e espectadores, como eles interagem?
O alvo é um aluno com imagem empobrecida de si mesmo. É escolhido a dedo exatamente por esta fragilidade. O autor é quem escolhe o alvo e os momentos dos maus-tratos. É um tipo de aluno que carece de sensibilidade moral e empatia.
Tenho pensado que o que mobiliza o autor de bullying é um certo desrespeito recreativo. Ele se diverte fazendo o que faz, quer ser visto como engraçado e popular. Mas tudo isso só é possível porque existem os espectadores, que são o combustível, o verdadeiro oxigênio de uma situação de bullying. São eles que, com suas risadas e palavras de encorajamento, fornecem a sonoplastia que legitima o autor.
Está parecendo que os espectadores são mais importantes do que alvo e autor...
Sim, são os atores mais importantes no manejo do bullying. Se os autores em geral praticam a violência escondidos da autoridade escolar, eles não o fazem sem uma plateia —nem que seja uma plateia virtual, que passa a existir quando a agressão é fotografada ou gravada e distribuída depois pelas redes sociais.
Ao empoderar o autor, por medo de serem os próximos ou por conivência, os espectadores se transformam em autores secundários. Lembrando que o alvo se empobrece diante de uma plateia, ele experimenta um verdadeiro sentimento de abandono afetivo. Por isso, o manejo de bullying precisa envolver toda a comunidade escolar.
Como ajudar o alvo?
Ele deve ser amparado, acolhido, mas sobretudo fortalecido para sair da condição de alvo. Precisa se indignar para que não seja enredado em uma situação de violência. Os alvos de bullying, segundo as pesquisas, têm poucos amigos nas escolas e, portanto, não contam com uma rede de proteção. Precisamos atuar nisso.
Hoje, algumas escolas incentivam a criação de grupo de ajuda de outros alunos. Eles estão ali para apoiar o alvo, não para resolver a situação de bullying.
O autor: punir ou não punir?
O autor precisa compreender que as ações têm consequências. Mas punir é pouco. Não adianta suspender ou expulsar o aluno. Eu acredito em responsabilização, mas prefiro as sanções por reciprocidade —aquelas que não são expiatórias, em que se pune apenas, sem efeitos educativos.
Se as agressões são cometidas principalmente por falta de empatia do autor, a escola deve proporcionar oportunidades para que ele saia de si mesmo, alcance a emoção e se comova com o outro.
Como seriam essas experiências?
Participar de situações em que há dilemas para resolver, situações de assembleia, situações que favoreçam o espírito comunitário. Na escola, o outro não pode ser tratado como oponente. Ali é o lugar onde a gente encontra o companheiro. Também existem as situações de reparação, que fazem com que os autores percam alguma coisa que valorizam em função da ação do outro.
Exemplo simples, que aconteceu: um adolescente que estava sofrendo bullying com violência homofóbica desistiu de ir a uma festa muito esperada pelos alunos por medo de ser humilhado. A escola soube, chamou os autores e disse que a festa não iria acontecer se eles não encontrassem uma forma de reparação. Bem, os autores se mobilizaram para que a festa acontecesse.
Conversaram com o alvo, se desculparam com ele. Reconheceram o que estavam fazendo e asseguraram que ele não seria exposto. Precisaram conversar com o alvo, ouvir suas dores e, com isso, se sensibilizaram com elas. Desse modo, não só mudaram de postura, mas ampliaram suas possibilidades de empatia.
A expulsão não vale em nenhuma hipótese, como reparação para o alvo pelo menos?
Vejo a expulsão como válida apenas quando alvo e autor não podem mais conviver no mesmo espaço. Fora isso, acho que a medida serve mais como uma justificativa social da escola —'Veja o que fizemos'—, mas não acredito na eficácia.
Expulsar o aluno é empurrar o autor para outra escola, sem resolver a questão principal, que é o reconhecimento de que o que ele fez é vergonhoso. A gente precisa interditar não o aluno, mas o comportamento. Ou seja, interromper para que não aconteça de novo, encorajar reparação e ter ações sistemáticas de educação.
Por fim, qual a responsabilidade da família?
Um adolescente que não consegue acessar suas emoções, que não sente culpa nem vergonha da humilhação que provoca no outro, é resultado de um cenário complexo. A construção de valores sociais de uma pessoa envolve não só a família, mas também a cultura, a religião, amigos e o próprio ambiente escolar.
Quanto mais a família fornecer oportunidades para que este adolescente tenha convivências plurais, valorize a diversidade e a responsabilidade coletiva, mais estará favorecendo que ele não banalize as situações de maus tratos que compõem o bullying.
Procure ajuda
Entre os profissionais que tratam de saúde mental e instituições especialistas em prevenção ao suicídio, é unânime a ideia de procurar (ou orientar) ajuda específica sempre que sentir necessidade de acolhimento (ou perceber que alguém precisa). Aqui alguns canais para receber atenção e auxílio:
CVV (Centro de Valorização da Vida: realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, email e chat 24 horas todos os dias.
Mapa da Saúde Mental: que traz uma lista de locais de atendimento voluntário online e presencial em todo o país.
Pode Falar: um canal do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) de ajuda em saúde mental para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. Funciona de forma anônima e gratuita, indicando materiais de apoio e serviço.
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