'Por prejuízo, resolveram cancelar plano da minha filha com doença rara'

A fonoaudióloga Ana Carolina Rosendo, 38, se mudou do Recife para São Paulo em busca de tratamento para a filha, Ana Lis. A menina, de 7 anos, tem a síndrome tricohepatoentérica, uma doença rara com poucos casos no mundo.

Ana Lis fica frequentemente internada —em toda a sua vida, só conseguiu viver fora do hospital por três meses seguidos. E depende do plano de saúde para sobreviver, mas, em abril, a família tomou um susto: por mensagem no WhatsApp foi avisada de que o plano de saúde da menina seria cancelado.

Na Justiça, Ana Carolina conseguiu uma liminar para manter o plano de saúde ativo, mas relata insegurança sobre as próximas decisões. Por meio de nota, a Qualicorp, administradora de planos de saúde, disse que "a reativação do plano, assim como o pedido de cancelamento, é uma atribuição da operadora Amil, responsável pela cobertura assistencial".

Já a Amil disse que o cancelamento do plano nunca esteve relacionado à doença de Ana Lis e que a menina "permanece com seu plano de saúde ativo".

A VivaBem, Ana Carolina conta o que tem vivido.

'Situação é grave'

"Quando Ana Lis nasceu foi diagnosticada com síndrome tricohepatoentérica e os médicos deram uma expectativa de cinco anos para ela —hoje, graças a Deus, ela tem sete e estamos na luta.

Viemos para São Paulo, pois no Recife não tinha mais nada que os médicos pudessem fazer por ela, e fizemos um plano de saúde quando ela tinha apenas um mês de vida [na época, ela usava outra operadora].

Seguimos assim, sempre em busca de ajuda porque a situação da Ana Lis é grave.

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Ela passou a maior parte de sua vida internada e chegou ao ponto de precisar de nutrição parenteral para se alimentar [a administração de nutrientes de forma intravenosa].

Plano de saúde de Ana Lis cancelou seu contrato alegando 'prejuízos financeiro'
Plano de saúde de Ana Lis cancelou seu contrato alegando 'prejuízos financeiro' Imagem: Acervo pessoal

'Alegaram prejuízos'

Em abril deste ano, quando Ana Lis estava de home care, recebemos um informe do plano de saúde [a mensagem veio da Qualicorp] de que estavam cancelando o atendimento da Ana Lis, algo que coloca a vida dela em risco.

No comunicado, eles alegaram que o cancelamento era unilateral porque estavam enfrentando prejuízos financeiros [a mensagem dizia que o contrato entre Amil e Qualicorp vinha gerando prejuízo acumulado à operadora].

Existia uma data-limite de atendimento, então começamos a apelar nas redes sociais e com políticos para impedir essa decisão, mas foi em meio aos desastres do Rio Grande do Sul e toda a atenção, de forma justa, estava voltada para as pessoas de lá.

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Entramos na Justiça, o que requer mais gastos, já que tínhamos de pagar advogado. Então, conseguimos uma decisão provisória de que o plano tem de manter o atendimento a ela.

Ana Lis depende desses cuidados para viver. Minha filha toma, por mês, uma medicação [paga pelo plano], que custa em torno de R$ 80 mil, para evitar que tenha inflamações. No ano passado, a inflamação chegou ao cérebro e ela teve um mal convulsivo —chegava a ter 15 crises por dia.

O período mais longo que passou em casa, sem precisar de internações, foi de três meses. Isso deu a possibilidade de ela viver, ir à escola, mas, se não tivermos o plano, não temos como dar essa chance para ela.

Não sabemos quanto tempo essa medida [de reativação do plano] vai durar, então fica uma insegurança muito grande porque o convênio recorreu da decisão da Justiça, em busca do cancelamento. Vamos vivendo um dia de cada vez, e com fé."

Mensagem no WhatsApp

Mensagem que a mãe de Ana Lis recebeu da Qualicorp
Mensagem que a mãe de Ana Lis recebeu da Qualicorp Imagem: Acervo pessoal
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A mensagem que Ana Carolina recebeu, no dia 30 de abril de 2024, sobre o cancelamento do plano de saúde chegou por WhatsApp, por meio de um número verificado da Qualicorp.

O texto dizia que "ao longo dos últimos anos, o Contrato de Cobertura de Assistências Médica e Hospitalar Coletivo por Adesão firmado entre Amil e a Qualicorp vem gerando prejuízo acumulado à operadora, resultado em altos índices de reajustes, que ainda assim não foram suficientes para reverter a situação do contrato".

O aviso explicava que a Amil, "exercendo as regras contratuais aplicáveis, decidiu pela rescisão unilateral do contrato ao qual [Ana Lis] está vinculado".

Procurada por VivaBem, a Qualicorp afirmou, em nota, que "a reativação do plano, assim como o pedido de cancelamento, é uma atribuição da operadora Amil, responsável pela cobertura assistencial".

Na condição de administradora de benefícios, a Qualicorp, quando informada pela operadora, realiza o contato com a beneficiária para informar que o plano está novamente ativo e disponível para utilização.
Qualicorp, em nota

Já a Amil afirmou que o cancelamento do plano nunca esteve relacionado à doença de Ana Lis e que a menina permanece com seu plano de saúde ativo.

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Cabe reiterar, conforme esclarecimento público da empresa, que não houve nenhum caso de cancelamento por conta de doença específica ou de perfil de beneficiário, e sim de contratos coletivos por adesão, sempre observando rigorosamente a regulação da ANS [Agência Nacional de Saúde Suplementar], a legislação e as previsões contratuais.
Amil, em nota

A Amil afirmou também que foi mantido "ativo o plano de saúde dos beneficiários internados ou submetidos a tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, conforme as normativas estabelecidas".

Prática e judicialização

Kristian Rodrigo Pscheidt, advogado e professor de direito, diz que a prática de cancelamento de contratos coletivos de planos de saúde não encontra hoje uma restrição na lei. Por isso, os contratos que davam prejuízo financeiro começaram a ser rescindidos.

Em maio, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou um acordo com operadoras para suspender cancelamentos unilaterais de planos de saúde, segundo reportagem da Folha de S. Paulo. O acerto foi verbal. Meses após o acordo, no entanto, a prática continuava, ainda segundo a Folha.

Segundo o especialista, a única maneira de o consumidor evitar que isso aconteça é entrando com uma liminar na Justiça, como a família de Ana Lis fez.

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A interrupção do plano nesses casos de necessidade viola a dignidade humana. O Judiciário passou a julgar essas liminares de maneira favorável aos consumidores.
Kristian Rodrigo Pscheidt

Mesmo entrando na Justiça, diz Pscheidt, não há garantia de que o plano será mantido. "O processo de uma pessoa não garante que o da outra terá a mesma solução. Influencia, mas não é garantido e nem automático."

Entenda a doença

A síndrome tricohepatoentérica é uma doença muito rara, genética, caracterizada por uma diarreia intratável que pode ser detectada logo nos primeiros dias de vida da criança, explica a gastropediatra Maricelia Cirilo Gonçalves, que atua no Hospital São Luiz Morumbi, da Rede D'Or.

Além disso, há características como dismorfismos faciais, anormalidade capilar, que deixa os fios facilmente quebradiços, e a imunodeficiência.
Maricelia Cirilo Gonçalves, gastropediatra

Esses pacientes têm restrição no crescimento uterino, nascendo menores ou prematuramente. "Também é comum o surgimento de infecções, que é uma das comorbidades que leva ao óbito essas crianças." O quadro pode, por exemplo, evoluir para uma cirrose.

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O diagnóstico é feito por eliminação. "Quando vemos uma criança nos primeiros dias de vida com diarreia, fazemos uma investigação e vamos descartando as causas mais crônicas para a idade, como alergia. Depois podemos fazer um exame genético."

A doença não tem cura. "É uma síndrome genética e os tratamentos estão relacionados aos sintomas sentidos pelo paciente. Como o principal é diarreia, é preciso fazer uma terapia de nutrição de maneira intravenosa. Às vezes, é necessária também reposição de imunoglobulinas para o controle de infecções", diz Gonçalves.

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