'Minha doença só me deixa ingerir 20 g de gordura; só como para sobreviver'
Com dificuldade para ganhar peso e as taxas de triglicerídeos na faixa de 1.300 mg/dL a 2.500 mg/dL (a taxa normal de triglicerídeos em adultos é entre 150 mg/dL e 175 mg/dL), Francisco Abreu de Araújo, 42, motorista de ambulância e socorrista do Samu, demorou 39 anos para descobrir que tem uma doença rara chamada síndrome da quilomicronemia familiar, também conhecida pela sigla SQF.
A SQF aumenta os níveis de triglicerídeos, um tipo de gordura no sangue e, por isso, Francisco só pode comer até 20 gramas de gordura por dia. De Quixelô, no Ceará, o motorista diz que precisa ter um "psicológico" muito forte para ver as outras pessoas comendo as coisas que ele não pode. A seguir, ele compartilha a sua história:
"Desde bebê meus pais notaram que havia algo estranho, eu chorava excessivamente e tinha dificuldade em ganhar peso. Na infância ficava doente com frequência, era uma criança raquítica, não tinha disposição para brincar e passava a maior parte do tempo em casa.
Minha mãe é devota de São Franciso e fez uma promessa que se eu fosse curado, ela ia cortar meu cabelo quando eu completasse sete anos. Meu cabelo chegou até a cintura. Tinha uma foto minha na sala que quando as pessoas viam perguntavam quem era aquela menina bonita. Não gostava desses comentários e um dia rasguei a foto.
Durante um check-up identificaram que meu triglicerídeos estava muito alto. O valor considerado normal é 150 o meu estava em 1.800. Repetia os exames regularmente, mas os níveis continuavam altos, entre 1.300 e 2.500. Nenhum médico sabia explicar o motivo, só diziam que eu tinha que fazer dieta e atividade física.
Fiz a primeira dieta aos 7 anos de idade. Inicialmente, a recomendação era tomar ômega 3, fazer a minha comida separada do restante da casa, não usar nenhum óleo ou azeite durante as preparações e diminuir a quantidade de gordura. Minha mãe achava que gordura eram apenas comidas pesadas, como banha e carne de porco, mas comia pão com manteiga, que é rica em gordura, por exemplo.
Aos 10 anos fiz uma cirurgia para retirar umas bolinhas de gordura que tinha no cotovelo. Na época não sabia o que era, mas depois do diagnóstico descobri que eram xantomas, um dos sinais da SQF.
"Sentia inveja porque não podia comer as mesmas coisas que meus amigos"
Ao longo dos anos fiz várias tentativas para baixar os triglicerídeos, tomei medicações como estatinas, fibratos, chás medicinais, mas nada adiantava. Mudava de nutricionista, mas as dietas ficavam cada vez mais restritivas. Isso atrapalhava a minha vida social.
Sentia inveja dos meus amigos porque não podia comer e beber as mesmas coisas que eles. Se a gente fosse para uma festa, barzinho ou jogo de futebol e eles me oferecessem um salgado ou uma cerveja, aceitava mesmo sabendo que não podia. Ficava com a comida ou a latinha um tempão na mão, comia um pedaço ou dava um gole, e depois jogava fora escondido deles.
Como não podia socializar comendo e bebendo, uma estratégia para me aproximar das meninas era convidá-las para dançar forró e axé comigo. Fazia essas coisas na tentativa de ser aceito porque queria ser uma pessoa normal.
Sempre que possível escondia o assunto, mas algumas pessoas sabiam que eu tinha algum problema de saúde e comentavam: 'Tu é o doente que tem gordura no sangue'. Não sabia que doença tinha, apenas concordava, mas esse tipo de comentário me magoava. Uma outra coisa que mexia com a minha autoestima era o fato de ser muito magro. Queria ter o corpo definido, mas tinha dificuldade de ganhar peso.
"Ficava desanimado e decepcionado ao ver os resultados dos exames"
Toda minha vida foi à base de dieta, no começo via como algo imposto, mas depois entendi que era pela minha sobrevivência. Não como para saborear e ter prazer, como para sobreviver. Não podia e não posso comer as coisas gostosas que todo mundo pode, como chocolate, pudim, sorvete, doces em geral, macarrão, churrasco, pizza, lanches, etc.
Podia e posso comer arroz e macarrão integral, feijão, clara do ovo, iogurte e leites desnatados, carnes com cortes mais magros, como filé de frango, tilápia, algumas frutas, verduras, legumes e outros alimentos. Achava a comida repetitiva, enjoativa e não podia comer em grandes quantidades, o que me deixava com fome.
Às vezes, seguia a dieta à risca, outras vezes não. Quando isso acontecia, passava mal, sentia fortes dores abdominais, tinha enjoos, vômitos, ficava internado. Tive mais de 10 pancreatites ao longo da vida, a primeira foi aos 10 anos. Em um dos episódios mais graves, um dos médicos cogitou operar e retirar parte do meu pâncreas.
O recomendado era que eu fizesse exames de sangue de 3 em 3 meses para acompanhar as taxas de triglicerídeos, mas tinha resistência e só fazia quando ficava doente. Me ajoelhava e rezava antes de abrir o resultado, mas ficava desanimado e decepcionado quando via que os níveis continuavam elevados. Era desesperador seguir a dieta, passar fome, tomar medicações e não conseguir baixar as taxas.
"Fiquei aliviado de descobrir a doença e me conecto com outros pacientes"
Fui a vários especialistas, procurava informações na internet sobre os sintomas, entrava em chats para tentar achar pessoas que tivessem o caso parecido com o meu, mas não achava nada.
Em 2021, fiquei muito debilitado, pensei que estava com câncer e fiquei com medo de morrer e deixar as minhas duas filhas, a Cecília e a Thalycia, sem pai. Comecei uma nova investigação e passei com uma gastroenterologista que comentou que uma amiga endocrinologista estava fazendo um estudo com pacientes que tinham o quadro parecido com o meu. Passei com essa endócrino, ela me pediu vários exames, entre eles, um teste genético.
Aos 39 anos, fui diagnosticado com a síndrome da quilomicronemia familiar, uma doença rara que aumenta os níveis dos triglicerídeos no sangue. Talvez algumas pessoas ficassem chocadas e assustadas com o diagnóstico, mas fiquei aliviado de saber o que tenho e que não sou o único.
Gosto de conversar, me conectar e trocar experiências com outros pacientes, saber a história deles, como eles descobriram a doença, o que eles comem. Faço parte de duas associações: Associação Cearense dos Portadores de Doenças Raras e Associação Brasileira de Síndrome da Quilomicronemia Familiar.
Tomo uma medicação chamada volanesorsena, cujo acesso consegui via judicial. Ela ajuda a baixar os triglicerídeos —hoje minhas taxas ficam entre 600 a 700, mas já cheguei a 300. No começo, aplicava a injeção uma vez por semana, atualmente aplico a cada 15 dias.
A base do meu tratamento continua sendo a ingestão de até 20 gramas de gordura por dia, mas uma das coisas que melhorou é que posso comer os alimentos da dieta em maior quantidade. Por exemplo, se antes comia de 3 a 4 colheres de arroz integral, hoje posso comer 6, o que ajuda a diminuir a fome.
Uma vez por mês a nutricionista libera para eu comer algo fora da dieta, mas com alguns cuidados. Por exemplo, posso comer um pedaço de pizza, mas precisa ser o sabor mais saudável. Posso comer uma carne do churrasco, mas precisa ter o corte e o preparo corretos. Também pratico atividade física seis vezes por semana, faço musculação, corro e jogo futebol.
"Já liguei em restaurantes pedindo para fazerem uma comida que posso comer"
Evito comer fora de casa porque as comidas não são preparadas da forma adequada para mim e para não passar vontade de ver os outros comendo.
Já liguei em alguns restaurantes para verificar a possibilidade de cozinharem algo específico para mim, conto sobre a doença, mas todos dizem que não têm tempo e disponibilidade. Só teve uma vez que deu certo. Minha namorada queria comemorar o aniversário dela em um restaurante. Expliquei a situação para o cozinheiro e ele fez um macarrão integral com tilápia.
Um dia gostaria de almoçar no restaurante Mocotó, em São Paulo. Eles têm o Mocotó SQF, uma campanha chamada 'Comer Sem Medo', que dá visibilidade aos pacientes com SQF e conscientiza os restaurantes a promoverem a inclusão.
Quando vou à pizzaria com a minha namorada e família, como a minha comida antes em casa para não sentir tanta fome.
Preciso ter um psicológico muito forte, porque enquanto todo mundo come pizza, tomo água ou suco natural. As pessoas veem a minha cara e perguntam se estou triste, não estou triste, mas me sinto deslocado.
A alimentação vai ser sempre desafiadora e difícil para mim, mas preciso me adaptar e achar estratégias. Minha mãe prepara minha comida, meu próximo passo será aprender a cozinhar para ter mais liberdade para passear, viajar e não ficar dependente dela.
Não tenho nenhum sonho extraordinário, meus sonhos são simples, quero continuar tendo saúde, trabalhando e vendo minhas filhas crescendo."
O que é essa doença que restringe a ingestão de godura?
A SQF (síndrome da quilomicronemia familiar) é uma rara e grave forma de dislipidemia, caracterizada por níveis extremamente elevados de triglicerídeos no sangue. Essa condição é causada pela deficiência da enzima lipoproteína lipase (LPL), que é responsável por quebrar os triglicérides no intestino e no fígado.
Em pessoas com SQF, a ingestão de gorduras resulta no acúmulo de quilomícrons, partículas ricas em triglicerídeos, que não são metabolizadas corretamente, comprometendo o transporte de gordura para os tecidos.
Os sintomas da SQF incluem dores abdominais recorrentes, xantomas eruptivos (lesões cutâneas amareladas), aumento do fígado e baço, além de manifestações neurológicas como fadiga e confusão mental.
A complicação mais grave é a pancreatite hipertrigliceridêmica, que ocorre em função dos altos níveis de triglicérides e pode ser fatal. "O risco de pancreatite em pacientes com SQF é até 10 vezes maior do que em outras formas de hipertrigliceridemia", destaca Maria Cristina Izar, cardiologista e professora da Unifesp e presidente da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo).
O tratamento da SQF exige uma dieta rigorosa, com baixa ingestão de gorduras e carboidratos simples, além de evitar álcool e açúcares de adição. A doença é genética e, portanto, não tem cura. Recentemente, novas terapias, como a medicação volanesorsena, têm mostrado eficácia na redução dos níveis de triglicerídeos, proporcionando esperança para os pacientes que convivem com essa condição debilitante. O diagnóstico precoce e o manejo adequado são essenciais para melhorar a qualidade de vida e reduzir as complicações associadas à SQF.
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