Tratar a obesidade infantil é evitar consequências sérias na vida adulta

O mundo não está mais para brincadeira. Em 1980, menos que 5% das crianças e dos adolescentes estavam acima do peso. Não precisou muito tempo, porém, para tudo mudar. Passadas apenas quatro décadas, em 2020 essa proporção saltou para 22%, de acordo com o atlas da World Obesity Federation. No ano que vem, a estimativa é de que 28% dos meninos e das meninas ao redor do globo tenham sobrepeso ou obesidade; 33%, em 2030 e 39%, em 2025.

Se quer um retrato do Brasil dos nossos filhos, sobrinhos e netos, por aqui 15,9% da criançada pequena, que nem completou 5 anos de idade, já têm sobrepeso. E 7,4% apresentam obesidade pra valer. São os dados mais recentes do Ministério da Saúde.

Números sempre deixam aquela impressão fria de que o problema não está na casa da gente. Mas, olhando para eles, entenda que, se nada for feito, o futuro das novas gerações será bem diferente daquele que gostaríamos.

Isso porque as doenças da vida adulta e até mesmo de idosos tendem a aparecer muito mais cedo em quem teve obesidade infantil — como será o caso de um monte de indivíduos logo mais. Estudos projetam que, neles, complicações como infarto, câncer e doenças inflamatórias crônicas — para citar somente alguns exemplos —apareçam dez anos antes do que em pessoas que passaram a infância com o peso adequado.

Quanto mais cedo, mais preocupante

Um trabalho apresentado no Congresso Europeu de Obesidade deste ano chamou a atenção da endocrinologista Maria Edna de Melo, que é chefe da Liga de Obesidade Infantil do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e coordenadora da Comissão de Advocacy da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica). "Ele mostrava que uma criança com obesidade grave vive, em média, 39 anos", justifica a médica. "É uma expectativa de vida muito baixa, não é mesmo?"

Quando chega um paciente de seus 40 anos com obesidade no hospital, a percepção de risco da doutora muda se ele conta que trava uma batalha com a balança desde quando era pequeno. "Isso significa que, provavelmente, há um bom tempo existe um quadro de resistência à insulina, assim como circulam moléculas de gordura além da conta em seus vasos e a pressão arterial está fora do ideal", justifica. "Ou seja, ele vem arrastando esses problemas por anos a fio e acumulando danos ao sistema cardiovascular. Portanto, é mais vulnerável do que aquele sujeito que só engordou na última década."

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Imagem: Jose Luis Pelaez Inc/ Getty Images

Feito um elástico

Não há uma idade a partir da qual pais e responsáveis devam se preocupar. "Desde bebezinho, em cada consulta o pediatra precisa acompanhar o IMC, quer dizer, o índice de massa corporal da criança", informa a doutora Maria Edna.

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Atenção: nem tente fazer esse cálculo por conta própria. Ele não é igual ao do adulto e só o médico saberá fazê-lo, olhando para um gráfico. Afinal, a criança não para de crescer. Daí que o seu IMC será diferente conforme a idade o sexo biológico.

Se a curva do IMC no tal gráfico vai lá para o alto, o caso já merece todo o cuidado. No passado, os médicos até falavam para controlar só um pouquinho o peso porque, mais para frente, no estirão da puberdade, aquela criança cheia de dobrinhas "esticaria" e a gordura corporal excessiva desapareceria. Hoje se sabe que não é bem assim.

"Ter obesidade entre os 4 e os 6 anos de idade é fator de risco para continuar com essa condição na adolescência e, depois, na vida adulta", afirma a doutora Maria Edna. "E, quanto maior o grau de obesidade dessa criança e mais precoce, pior."

A endocrinologista faz a comparação com um elástico: "Se o esticamos só um pouco, ele volta ao normal. Mas, se o esticarmos demais e por muito tempo, ele nunca voltará a ser como era", diz ela. Onde quer chegar: mesmo se o indivíduo perder 30% do peso inicial, o que é bastante, um adulto com 150 quilos continuará pesando mais de 100. Claro que, ao emagrecer, ele reduzirá uma porção de ameaças e será muito mais saudável. Mas ainda estará sobrecarregando o organismo.

Daí que é melhor tratar a obesidade logo no início, começando por mudanças no estilo de vida enquanto, digamos, o "elástico" ainda não esticou tanto. Aliás, é o que as diretrizes da Academia America de Pediatria recomendam desde o ano passado: não deixar a obesidade infantil, que é uma doença progressiva, se agravar cada vez mais, como se tudo fosse sinal de fofura.

Por que a criança engorda?

A obesidade infantil não é consequência de uma coisa, nem de outra isoladamente. Ela é causada por inúmeros fatores. Os genes são um deles e, geralmente, quando o bebê novinho já tem um IMC elevado ou vive com uma fome de leão desde o período da amamentação, dá para se desconfiar que a genética tenha grande participação.

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Seria bom fazer um teste para escrutinar o DNA, então? "Se for só obesidade, sem sinais sugestivos de alguma síndrome genética, não faz diferença. Isso porque resultado do teste não mudará a conduta dos profissionais de saúde para tratar o pequeno", responde Maria Edna.

Mas ela entende quando os pais fazem esse tipo de pergunta: eles querem achar um motivo, até para não se sentirem culpados. A palavra culpa, no entanto, deveria ser riscada do vocabulário.

Há uma série de fatores que, juntos, culminam no ganho excessivo de peso na infância: o estado nutricional da mãe durante a gravidez ou se ela teve diabetes gestacional; alterações no microbioma intestinal; uso de certos medicamentos para tratar doenças pediátricas; poluentes capazes de desregular as glândulas; falta de atividade física; sono insuficiente ou de má qualidade e muito mais.

Na verdade, o que está por trás da obesidade infantil é mais ou menos igual no mundo inteiro. Mas, no início deste ano, o professor Licio Velloso, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), publicou um artigo na Nature Metabolism em que analisa quais fatores seriam ainda mais determinantes nos países da América Latina.

Um deles merece destaque: o consumo de alimentos ultraprocessados, formulados para agradar em cheio o paladar infantil. Eles são extremamente calóricos, lotados de gorduras e açúcares. "Esse é um aspecto ruim no mundo inteiro. Mas, nos países em desenvolvimento, existe um agravante: esses produtos costumam ser mais baratos que uma fruta na feira. Daí que as escolhas alimentares das famílias mais vulneráveis terminam sendo muito piores."

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Imagem: Energyy/Getty Images
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Impacto no cérebro

Será que o hipotálamo, a região cerebral envolvida com a fome e com o gasto energético, sofreria danos quando a obesidade surge na infância? Essa era uma pergunta que o professor Velloso vinha se fazendo. Faltavam estudos em crianças ou, vá lá, em modelos de animais jovens, o que ele e seus colegas ajudaram a suprir.

"E, sim, há alterações tanto na estrutura quanto no funcionamento do hipotálamo, provocadas principalmente pelo consumo de alimentos cheios de gordura", diz ele. "Isso nos ajuda a entender por que, na medida em que o tempo convivendo com a obesidade passa, vai se tornando mais difícil tratá-la com qualquer tipo de intervenção, como reeducação alimentar."

A desregulação do hipotálamo nos primeiros anos de vida faz o apetite se agigantar. Então, a criança — e, mais tarde, o adulto — não comerá demais porque os pais não fazem nada a respeito ou porque é gulosa. A questão é neuronal, muito além do seu querer ou da orientação que recebe em casa.

Doenças de adulto na infância

Além de adoecerem mais ao virarem adultas, crianças com obesidade também sofrem de problemas que, normalmente, só apareceriam quando fossem bem mais velhas, como colesterol elevado formando placas nas artérias e hipertensão.

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"Quando fiz residência, diabetes tipo 2 no jovem era tão raro que parecia algo quase delirante", lembra o médico Bruno Geloneze, professor de Endocrinologia e Metabologia da Unicamp. "Mas agora tenho cinco casos de adolescentes no ambulatório e falo com a maior segurança que outros cinquenta, que hoje têm pré-diabetes, irão converter o quadro para diabetes tipo 2 no ano que vem."

O primeiro sinal de que uma pessoa caminha para o diabetes tipo 2 é a resistência das células à insulina, que faria a glicose entrar nelas para ser usada como fonte de energia. O pâncreas tenta compensar essa dificuldade produzindo mais e mais desse hormônio, até que um dia se esgota. Esse processo costuma demorar mais de década em um adulto. Mas, no adolescente, ele é muito mais agressivo: pode levar apenas de um a três anos. E, uma vez instalado, o diabetes tipo 2 não tem volta.

Problemas articulares

O excesso de peso na infância às vezes provoca um deslizamento da epífise do quadril e do fêmur. Essa região na extremidade dos ossos seria como uma placa de crescimento. "O resultado são deformidades, deixando as pernas arqueadas, em formato de 'C'. Isso gera dor e limita a movimentação", nota a doutora Maria Edna.

Com o tempo, o desvio ainda provoca um desgaste das cartilagens. Por isso, não raro, o adulto que teve obesidade na infância se vê, precocemente, com uma osteoartrose.

Cuidado com o terrorismo!

Há vários outros problemas físicos que a obesidade infantil pode causar — apneia do sono desde a mais tenra idade, aumentando o risco cardiovascular na vida adulta, por exemplo.

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No entanto, a doutora Maria Edna ressalta as cicatrizes deixadas pela baixa autoestima, pelo bullying na escola, pela depressão. Elas não se apagam facilmente.

Aliás, fica um alerta importantíssimo: "Muitos pais, para o filho não comer guloseimas, disparam ameaças de que ele ficará doente e irá morrer cedo disso ou daquilo", observa a endocrinologista. "Isso só aumenta o estresse e prejudica ainda mais a saúde mental da criança."

Vamos combinar que tudo o que está neste texto é papo de gente grande. Conversas sobre as consequências da obesidade infantil devem ficar entre os adultos da família — que, reforçando, não são culpados por nada — e uma boa equipe de especialistas, realmente capacitada a tratar a criança para que ela se torne um adulto mais saudável.

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