'Fazia leitura labial e achava que ouvia': ela descobriu surdez por acaso
A médica Luiza D'Ottaviano Cobos, 25, é surda. Ela, que é de Campinas (SP), descobriu isso aos 17 anos, enquanto prestava vestibular. O diagnóstico foi uma surpresa porque ela conseguia entender as pessoas ao redor por meio da leitura labial, mecanismo que seu corpo desenvolveu sem que ela se desse conta. A VivaBem, Luiza conta sua história.
'Colegas se queixavam e eu não ouvia nada'
"Descobri a perda auditiva por acaso aos 17 anos. Estava assistindo a uma aula de física sobre ondas sonoras e acabei saindo da sala. Ao retornar, vários colegas se queixavam de um som incômodo, mas eu não ouvia nada.
Falei com o professor e ele me explicou que estava produzindo ondas sonoras no alto-falante da sala de aula,—ele se preocupou por eu não estar escutando.
No dia seguinte, fui a uma consulta com um otorrinolaringologista. Não havia nenhuma queixa até esse episódio.
Expliquei a situação para o médico e, com a primeira audiometria, ele identificou uma perda auditiva leve a moderada. Fiz todos os exames possíveis e não conseguimos identificar a causa da perda.
Em paralelo, comecei a fazer acompanhamento com fonoaudióloga e o otorrino me indicou o uso de aparelho auditivo.
'Eu achava que ouvia'
Conseguir aceitar a necessidade do uso do aparelho auditivo foi um processo. Eu achava que ouvia e não queria usar.
Na época, fazia cursinho, e comecei a usar os aparelhos em casa para estudar. Foi assim que percebi que era muito melhor para conversar com minha família, para ver série. Passei a entender que a ajuda que eles me traziam era muito maior do que a vergonha.
Comecei a ir para a aula com eles e ninguém me perguntou nada. Se repararam, não comentaram.
Sou, sim, uma pessoa surda, tenho minhas especificidades e necessidades. Os aparelhos são como óculos: os coloco para me ajudar a ouvir.
Meu diagnóstico é de surdez neurossensorial bilateral severa-profunda progressiva: acontece a partir de alterações nervosas na cóclea, nos dois ouvidos, e progride ao longo do tempo.
Luiza D'Ottaviano Cobos
O início da perda foi entre os 9 e os 17 anos, porque tenho exame audiométrico normal aos 9 e alterado aos 17. Atualmente, escuto muito pouco sem os aparelhos. No futuro, devo realizar um implante coclear devido à progressão da perda.
'Situações se mascaravam no contexto'
Depois do diagnóstico, percebi que havia certas situações que se mascaravam nos contextos. Por exemplo, eu não escutava se me chamassem na sala de aula. Me sentava na frente e, se me chamassem por trás, eu não respondia.
Também sempre tive dificuldade para acordar com despertadores, e meus pais acabavam me acordando. Eu acreditava que só tinha sono profundo. Alguns sons eu não percebia, como passos e torneira pingando.
Luiza D'Ottaviano Cobos
Como a minha surdez não parte de causas como tumores ou má-formação do sistema auditivo, o tratamento indicado é a constante estimulação da audição, preservando as conexões neurais já existentes e o treinamento da fala e da audição.
No meu caso, o uso do aparelho auditivo é imprescindível porque ele estimula todas essas funções. Uma possível indicação futura de implante coclear realizaria a função da cóclea quando o aparelho parasse de suprir minha perda.
'Falam que não sou tão surda por falar'
Os principais comentários que recebo na internet são questionando sobre eu ser surda e falar. Em geral, as pessoas não entendem e assumem que estou brincando ou que 'não sou tão surda assim'.
Muito disso vem da desinformação. Existem diversos tipos e graus de surdez. A fala e a voz partem de um aparelho fisiológico diferente daquele responsável pela nossa audição. Eles são complementares, não dependentes.
Meu papel como pessoa surda acaba sendo esse de informação também, de me expor para informar aqueles que desconhecem. Eu sou surda, falo e escuto.
Luiza D'Ottaviano Cobos
A leitura labial foi uma adaptação que meu organismo fez a partir da progressão da perda de audição. Assim como eu não sabia que estava desenvolvendo a perda auditiva, não sabia que estava realizando a leitura labial.
Eu sentava nas primeiras carteiras para assistir à aula e acompanhava pela leitura labial e também material escrito —conversava olhando para a boca das pessoas.
Só me dei conta que eu sabia fazer isso quando, durante a investigação da surdez, um otorrino colocou a mão na frente da boca e falou que eu tinha passado a consulta toda acompanhando por leitura labial, e que eu dependia dela.
Hoje ela é essencial no meu dia a dia, se tornou minha principal forma de comunicação em complemento aos aparelhos. O lado negativo da leitura labial é que ela depende da visualização da boca e, na pandemia, a utilização de máscara foi mais do que necessária. Além disso, eu trabalho em ambiente hospitalar: máscara é EPI e imprescindível.
'Se eu não me expuser, sou prejudicada'
Trabalhei bastante minha compreensão e paciência comigo mesma para, toda vez, me expor e explicar que tenho deficiência auditiva, que posso não entender algumas coisas e que posso pedir para repetirem.
São situações que desencadeiam momentos de ansiedade de não ser bem recebida ou compreendida. Mas, se eu não me expuser, eu sou a única prejudicada.
Luiza D'Ottaviano Cobos
As adaptações começam logo quando acordo. Como não consigo usar o despertador, durmo com um smart watch para acordar com a vibração do relógio.
A legenda é essencial em todo o conteúdo que eu assisto, desde stories até aulas online.
O iPhone tem uma função de acessibilidade que notifica se teve batida na porta, miado, latido, gritos, água correndo. E utilizo bastante aplicativos de transcrição simultânea em palestras ou aulas.
Corpo se adapta
Quando se trata de música ou sons intensos, a adaptação vem do meu próprio corpo. Consigo entender ritmos e qual música está tocando a partir da vibração do som. Consigo sentir o som e compreender a partir da memória musical.
Sinto também a vibração do carro para dirigir manualmente, já que não escuto o motor.
Como sou médica, preciso usar o estetoscópio e tenho um modelo eletrônico, conectado em um fone de ouvido extra auricular, isolando o som e o produzindo direto nos aparelhos auditivos.
A medicina me permitiu entender muito mais sobre o meu caso, sobre as causas e tratamentos —e a me conectar melhor com casos similares."
Surdez não é tudo igual
Há diferentes tipos de perda auditiva. Segundo Andy Vicente, otorrinolaringologista do Hospital Cema, elas podem ser classificadas em condutiva (quando algo impede o som de passar, como cerume ou calcificações), neurossensorial (pela degeneração das células sensoriais de partes do ouvido) e mista.
Principais causas. "O paciente pode nascer com perda auditiva, pode ter fundo genético, pode ser pelo envelhecimento do sistema auditivo, exposição crônica a ruídos intensos, uso de medicamentos que são tóxicos para o labirinto, entre outros", diz o especialista.
Intensidades diferentes. As perdas auditivas podem ser leves, moderadas, severas ou profundas. "As perdas severas e profundas normalmente são em pacientes candidatos a implante coclear. Ou seja, o aparelho auditivo convencional não consegue mais restabelecer os limiares auditivos do paciente."
Perda pode ser súbita ou progressiva. "O que pode causar a perda súbita é uma infecção viral, um trauma, uma fratura do osso do ouvido, tumores, doenças vasculares. As perdas progressivas podem ser lentas ou moderadas. Ccom o envelhecimento, a gente vai perdendo a função auditiva também."
Idades diferentes, sinais diferentes. "Em crianças, a gente pode suspeitar de uma perda auditiva quando ela apresenta um déficit de atenção, irritabilidade, hiperatividade, baixo rendimento escolar. Menores de dois anos de idade podem apresentar respostas deficientes aos estímulos sonoros, atraso no desenvolvimento da linguagem e um baixo nível de interação com as outras pessoas."
Nos adultos, o que pode levar a suspeitar seria o aparecimento de zumbido, sensação de pressão nos ouvidos, hipersensibilidade a sons, distorção sonora, culminando na perda auditiva declarada.
Andy Vicente, especialista em perda auditiva
Consequências vão além do "não ouvir". Segundo o especialista, o paciente acaba se isolando, tendo déficit cognitivo, depressão e até, dependendo da gravidade da perda auditiva, evoluindo para demência.
Como é o diagnóstico. É recomendável que, depois dos 40 anos, seja realizada pelo menos uma audiometria por ano. No caso de suspeita de perda, outros exames são solicitados.
Tratamento. "Os aparelhos auditivos desempenham um papel importante, a grande maioria das pessoas acaba se beneficiando com o uso deles. Mas existem casos em que ele não consegue reverter a situação", diz Andy Vicente. Alternativas de tratamento incluem próteses osteointegradas e implante coclear.
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