'Se errar, passa fome': o que leva pessoas a correrem 100 km na montanha?
Isabel Amorim, 54, passa dias correndo em montanhas inóspitas —um hábito que começou meio por acaso e virou parte da vida. Corredora há mais de 25 anos, ela já fez mais de 35 provas no Brasil e no mundo, incluindo maratonas e ultramaratonas.
Para ela, a corrida traz resiliência.
"Profissionalmente, nada me derruba. Posso ouvir o maior absurdo, mas respiro, seguro e vou. A sensação é de que não existe problema que não tenha solução", diz Isabel, superintendente executiva do Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição).
Pessoas que aderem a práticas de aventura buscam contato com a natureza, respostas internas e às vezes existenciais. É uma forma de desenvolver recursos emocionais para lidar com a vida cotidiana.
Não tem jornada que não seja longa o suficiente a ponto de você não dar conta.
Isabel Amorim
Entre rios, pedras e vulcões
Isabel começou a correr quando foi trabalhar nos EUA, onde a prática era mais fácil do que achar uma piscina para seguir na natação que já fazia. Participou de provas, mas nunca tinha feito uma de longa distância quando aceitou o convite de sua treinadora para o El Cruce de Los Andes.
A prova tem um percurso de 100 km, divididos em três dias, pela Patagônia chilena e argentina, em lugares inóspitos, deslumbrantes e desafiadores. Subidas íngremes e extensas, vulcões, picos com neve, travessia de rios e áreas rochosas são desbravados sob sol, chuva ou vento forte.
"Acho que o mais bonito do El Cruce é que cada ano é num lugar completamente diferente", conta ela, que já fez a prova quatro vezes. Embora a prova seja a mesma, os ambientes mudam pelos próprios efeitos da natureza.
"Cheguei a um lugar do Chile que eu nunca vou saber onde estava. Era lindo."
Na primeira edição, em 2009, a meta era correr 36 km no primeiro dia. Na metade, se deparou com um vale sem fim. Com cãibra, já chorando, encontrou uma pessoa e disse que precisava parar, pois não aguentava mais.
"Ele falou: 'são 18 km para ir e 18 km pra voltar'. Chorei mais um pouco, umas pessoas pararam para me ajudar, me deram um sal e em dois minutos seguimos."
A organização da prova tem pontos de apoio no fim de cada rota diária, onde os corredores se alimentam, trocam de roupa e dormem. Lá, é possível interromper a jornada, mas no meio do trajeto, sem acesso a trecho urbano, não tem como desistir.
Em outra edição, Isabel enfrentou um dia de muita chuva, que entrou até na barraca de dormir, e frio a ponto de colegas terem hipotermia. O caminho ficou enlameado e impediu a chegada do caminhão que levava os pertences dos corredores ao ponto de apoio. "Estava ficando perigoso", lembra.
Foi a única vez que ela desistiu e se arrependeu na manhã seguinte, quando o dia amanheceu claro e quente. "A vida não é isso, um dia horrível chovendo e no outro ensolarado?"
Até hoje, quando faz provas longas, Isabel se pergunta o motivo de estar ali. "Correr por oito, dez horas não é natural. Tem uma certa loucura nesse negócio", diz. Para ela, "uma loucura do bem", que a fez se apaixonar pelo esporte.
Mas por quê?
No artigo Corridas de aventura e lazer: um percurso analítico para além das trilhas, os autores citam qualidades comuns a esses corredores: persistência, autocontrole, superação de limites, alta tolerância à dor, cooperativismo.
"Não importa se vai chegar cinco minutos antes ou depois, você não passa na montanha sem ajudar alguém que está precisando", diz Isabel.
Ela compara a corrida de montanha com a vida: cheia de desafios, riscos, imprevistos, necessidade de adaptação e planejamento. "Não pode errar, senão você passa sede ou fome."
Tem momentos muito alegres, momentos difíceis, momentos em que você acha que não vai dar, momentos em que você diz 'nossa, tô exausta, não aguento mais'. E aí você se alimenta e segue.
Isabel Amorim
Em busca de novas aventuras, agora ela mira no UTMB (Ultra Trail do Mont Blanc) numa distância mais modesta. "O mais longo que já fiz em um dia foi 70 km. É muito punk."
Experiência física, mental e social
Pesquisadores já se debruçaram sobre esse mistério do ser humano que é gostar —e pagar— para sofrer e correr riscos (controlados até certo ponto) na natureza.
"As pessoas buscam essas práticas com propósitos que vão ao encontro de novos significados da vida humana", diz Priscilla Pinto Costa da Silva, doutora em educação física e professora na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte).
Vencer obstáculos nesse cenário traz sentimentos de conquista, autorrealização e percepção de vida. O medo também desempenha papel importante, sendo o risco —real ou imaginado— um fator inerente à vida humana.
A psicóloga Paula Teixeira Fernandes, professora da Faculdade de Educação Física da Unicamp, destaca que o contato com a natureza é significativo para a motivação, que até minimiza o risco.
"Isso traz uma conexão profunda com a prática esportiva, com a possibilidade de você melhorar questões de ansiedade, estresse e reconexão consigo", diz ela, coordenadora do Gepen (Grupo de Estudos em Psicologia do Esporte e Neurociências).
Esse é um dos aspectos, segundo Fernandes, que tem levado mais mulheres ao esporte de aventura, antes predominantemente masculino.
Pelos múltiplos papéis que desempenham, elas buscam ali uma forma de manter o equilíbrio e recursos para dar conta da vida cotidiana. Ao voltar da aventura, o sentimento de conquista é seguido pela autoconfiança e autoeficácia, que fortalecem a autoestima.
Silva observa também um comportamento paradoxal: enquanto no cotidiano as pessoas buscam segurança financeira, profissional e pessoal, se lançam no desconhecido das práticas na natureza.
"Elas buscam fortes emoções como uma fuga da própria realidade. É uma forma de buscar alívio, porque as práticas de aventura permitem ao sujeito se sentir o agente principal, dando rumo à própria vida, algo que muitas vezes não é permitido no cotidiano", diz ela, que é vice-líder do Grupo de Pesquisa Corpo, Saúde e Ludicidade da UFRN.
As pesquisadoras destacam que qualquer prática esportiva pode proporcionar os benefícios citados. O importante é gostar, sentir encantamento e, de repente, se abrir a novas possibilidades. Se a escolha for a prática de aventura na natureza, Silva reforça a necessidade de segurança, considerar ter guias habilitados e conferir as certificações de empresas que oferecem o serviço.
Referências
Folharini, L. R.; Yoshida, H. M.; Godoi, R. C. de; Fernandes, P. T. Psicologia do Esporte e esportes na natureza: revisão integrativa. Caderno de Educação Física e Esporte, Marechal Cândido Rondon, v. 20, p. e-27479, 2022.
Gomes, O. C.; Isayama, H. F. Corridas de Aventura e Lazer: Um Percurso Analítico para Além das Trilhas. Motriz, Rio Claro, v.15 n.1 p.69-78, jan/mar 2009.
Schwartz, Gisele Maria; Pereira, Leonardo Madeira; Figueiredo, Juliana de Paula; Christofoletti, Danielle Ferreira Auriemo; Dias, Viviane Kawano. Estratégias de participação da mulher nos esportes de aventura. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 38, p. 156-162, 2016.
Silva, P. P. C.; Azevedo, A. M. P. ; Silva, E. A. P. C. ; Freitas, C. M. S. M. Riscos e Práticas Corporais na Natureza: uma revisão sistemática. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, v. 18, p. 84-91, 2010.
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