'É traumático conduzir morte do seu ente querido e fiz isso com minha mãe'
Quando a jornalista Joana Negri, 42, descobriu que a mãe, Thereza Marques Paranhos, estava com câncer, a doença já tinha se espalhado. O tratamento seguiu por cerca de um ano, até causar mais risco do que benefício. Em fase terminal, ela ficou sob cuidados paliativos. Joana então se tornou cuidadora da mãe, que morreu aos 77 anos em 2019. Uma experiência "surrealista" que ela compartilhou com VivaBem.
'Fiquei desnorteada'
"Minha mãe foi diagnosticada com câncer de intestino em maio de 2018, mas só fiquei sabendo em julho porque ela escondeu de mim. Primeiro, para me poupar, porque estava defendendo meu doutorado; segundo, porque meu pai tinha morrido do mesmo câncer em 2009.
Estava indo trabalhar quando a moça que trabalhava conosco me ligou para contar que minha mãe tinha descoberto um nódulo no intestino. Entrei em pânico, fiquei desnorteada, porque já conhecia aquela história. Quando meu pai ficou doente, li tudo sobre a doença.
Naquele dia, pedi licença do trabalho e, em casa, li o laudo dela.
Como é ruim saber das coisas. O que achei que fosse o início de um câncer já era metástase no pulmão, fígado e coluna. Entrei em desespero, fiquei completamente angustiada.
Tratamento 'penoso'
Decidi que tentaria fazer meu melhor por ela. Minha mãe estava sem plano de saúde e na fila do SUS para começar o tratamento.
Fez radioterapia para diminuir o tumor primário e, depois de dez sessões, começaram as quimioterapias.
É muito penoso: a gente acordava 5h30 para enfrentar a fila, chegava ao hospital às 7h e saía às 15h. Me doía ver o cansaço físico dela.
O tratamento foi até julho de 2019, com interrupções, porque se a imunidade estivesse baixa, não podia fazer a sessão. Teve intercorrências também e a sobrevida dela foi bastante reduzida.
Sinto que, mentalmente, minha mãe não aceitou a doença. Era muito duro e sofrido para ela.
Fisicamente, ela teve bons resultados após a primeira bateria de quimioterapia, os tumores tinham reduzido razoavelmente. Isso deu ânimo, mas, depois que começou outra bateria, ela não pôde nem fazer ressonância.
'Falou que estava em fase terminal'
Depois de uma quimioterapia, ela teve forte de diarreia que não parava, não tinha como levá-la ao hospital. Consultei um oncologista particular e foi a melhor pessoa, um anjo.
Cheguei no consultório aos prantos, e ele me recebeu com um sorriso. Com todo o cuidado do mundo e a maior sensibilidade, leu os laudos, viu o estado da minha mãe e conduziu a conversa na seguinte direção:
'Joana, sua mãe respondeu bem, mas às vezes a gente tem de saber que a vida é isso: a gente nasce, vive e tem a hora de ir embora. Isso não precisa ser doloroso. Vejo amor entre vocês. Às vezes, dói mais sua mãe ser submetida a tratamentos que vão maltratar a saúde dela, sem trazer grandes benefícios nesse momento'
Um tempo depois, ela teve erisipela bolhosa, com secreção, e não queria levá-la ao hospital de novo. Os exames estavam muito ruins, e ela começou a piorar.
Liguei para o médico, ele foi até nossa casa, examinou minha mãe com todo carinho e conversou comigo e meu irmão. Falou que ela estava realmente na fase terminal, com metástase cutânea. Disse que podiam ser 15 dias ou dois meses, mas não seis meses.
Foi um choque para meu irmão, mas eu já esperava isso. O médico disse que o melhor para ela, com certeza, era ficar em casa, mas não necessariamente seria a melhor coisa para mim. Foi aí que os cuidados paliativos entraram na minha vida.
'Experiência surrealista'
No dia seguinte, liguei para a médica paliativista. O ideal seria ter fisioterapia, nutricionista, auxiliar de enfermagem, e eu ficaria próxima. Mas não tinha dinheiro para arcar com tudo. Como já estava cuidando dela —trocava fraldas, dava remédio— estava super consciente de que continuaria.
A médica foi em casa e combinamos que arcaria com visitas pontuais dela, e ela foi me ensinando aspectos práticos da morte. Isso é uma experiência surrealista.
Ela enumerou todos os sinais de quando eu saberia que minha mãe estaria para morrer: a respiração que a gente chama de ronco da morte, o teste de apertar as pontas dos dedos, a pele que esfriaria.
Tinha seis despertadores no meu celular para administrar os remédios, fazia higiene das escaras, dava morfina em comprimido para falta de ar, porque ela tinha derrame pleural.
Tudo começa a se tornar prático, mas tudo me foi dito com muito carinho e sensibilidade.
Depois de cinco dias, ela não conseguia mais engolir, e a médica me ensinou a aplicar injeção de morfina. Nunca tinha feito isso em ninguém e nunca vou me esquecer do pavor que foi segurar a seringa pela primeira vez.
A casa se tornou um hospital. Três primos meus iam lá com certa frequência e era a hora mais feliz do meu dia —a mais triste era quando eles iam embora, porque sentia medo de estar naquela casa sozinha com ela. Era um filme de terror para mim.
Não estava pronta para conduzir o processo de morte de qualquer pessoa, que dirá da minha mãe. É muito traumático conduzir a morte do próprio ente querido.
'Não deixei medo me imobilizar'
Ouvi muitos questionamentos de por que minha mãe estava em casa. As pessoas acham que estar em casa é sofrimento e associam o hospital a um lugar sempre do cuidado, onde o paciente está mais confortável, mas não necessariamente é verdade.
Se a gente pudesse dar autonomia, tenho certeza que minha mãe ia preferir morrer no conforto do lar dela, rodeada das pessoas que ela ama, não intubada num lugar frio que é o hospital.
Estava fazendo de tudo, não deixei o medo me imobilizar e acho que o que me apoiou foi saber que ela precisava de mim.
A gente olha para o doente porque ele é o protagonista, mas o cuidador fica esquecido. Eu não comia e fui perdendo a necessidade de comer. Já sou magra e emagreci mais.
Minha vida girava em torno disso, mas, realmente, não tinha como elaborar aquela situação. Às vezes, perguntava ao médico 'quando ela vai?' e me sentia culpada. Parecia que estava querendo minha mãe morta, mas é porque não estava mais aguentando.
Na hora que a pessoa morre, vem o vazio de tudo: da lembrança, da mãe e o vazio também do cuidado. Estava há mais de 15 dias vivendo em função dessa pessoa, o que faria agora?
'Vi que ela tinha ido'
Um dia antes de ela morrer, passei a noite deitada na cama junto com ela, fazendo carinho nas costas e sentindo a respiração. Estava calma. Falei tudo o que queria, pedi perdão, falei que ia tentar ser feliz. Tive meu momento com ela.
Na noite em que ela morreu, dormi no quarto ao lado. Toda hora eu passava no corredor, escutava a respiração dela, sabia que ainda estava viva e ia para o quarto.
Teve uma hora que passei e não ouvi nada. Fui para o quarto dela e fiz todos os procedimentos que a médica tinha falado: apertar as pontas dos dedos, checar a temperatura. Vi que ela tinha ido. Chamei meu irmão, a gente a abraçou e chorou.
'Preparação do corpo é surrealista'
A preparação do corpo é um aspecto absolutamente surrealista. Na manhã seguinte, a gente higienizou o corpo dela, colocou ataduras na mandíbula para manter a sustentação e nos pés.
Na primeira noite que dormi sem minha mãe, minha casa não parecia minha. Quando seus pais morrem, o mundo se transforma. É como se você olhasse tudo pela primeira vez.
A morte de alguém, dessa forma principalmente, envolve um equilíbrio muito sutil entre memória e esquecimento. Porque se você passa a lembrar muito da pessoa, vai doer demais. Só que, se você esquece, se esvazia completamente.
De uns anos pra cá, comecei a me sentir muito vazia. Às vezes, as pessoas não entendem certas mudanças da minha personalidade, gente cobrando presença quando eu estava ausente de mim mesma.
Se olha muito para o paciente, e tem que olhar, mas tem que olhar para o cuidador também —e esse olhar é muito falho, principalmente quando é um parente tão próximo."
Cuidados paliativos em casa ou no hospital?
A decisão deve ser individualizada. Se o paciente tem condições de se locomover e isso não for um problema logístico ou financeiro para a família, indica-se cuidado ambulatorial. Se a pessoa fica mais tempo acamada e está em fase final da vida, os cuidados paliativos em casa podem ser mais adequados.
É fundamental individualizar o cuidado, conforme contexto e história de vida do paciente e da família.
Rodrigo Kappel Castilho, presidente da ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos)
Diante de um quadro terminal, se a pessoa está insegura e sente que suas necessidades emocionais e físicas não são atendidas em casa, a preferência pode ser pelo cuidado em hospital. Há casos em que o atendimento muda: o paciente está em casa, mas seu quadro gera sofrimento para a família ou surgem novos sintomas sem possibilidade de controle em domicílio, quando se indica o ambiente hospitalar.
Família nos cuidados
É fundamental ter uma equipe multidisciplinar conduzindo os cuidados paliativos, seja em casa ou no hospital, diz Castilho.
Não é justo colocar esse fardo nas costas da família, que tem papel próprio de cuidado. É muito nobre e corajoso o familiar que aceita esse momento e fala que vai cuidar. Rodrigo Kappel Castilho
Além do paciente, a equipe também assiste os familiares. "Tem muitas inseguranças e dúvidas que vão surgir, e elas precisam ser cuidadas também." A conduta envolve ouvir o que familiares têm a dizer, sobre si ou sobre o paciente, incluindo memórias, e tratar todos com respeito após a morte do familiar.
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