Microplástico é achado em quase todos órgãos, e efeitos são desconhecidos

Era 2015 quando o vídeo mostrando o calvário que uma tartaruga marinha precisou passar para retirar um canudo de sua narina viralizou na internet. Imediatamente, o objeto de plástico se tornou persona non grata em diversos restaurantes e dezenas de municípios brasileiros baniram seu uso. Mas se você acha que o canudo é o maior vilão dessa história, essa reportagem pode fazer você repensar.

Além dos macroplásticos, que são essas peças maiores, visíveis a olho nu, ainda precisamos lidar com os microplásticos, partículas minúsculas, de até 5 milímetros, que estão cada vez mais presentes em rios, oceanos e solo.

E, de acordo com a organização International Union for Conservation of Nature, 28,3% dos microplásticos presentes no oceano, por exemplo, provém de fragmentos dispersados por —acredite— pneus enquanto rodam no asfalto.

Outros 35% surgem a partir de fibras sintéticas têxteis —como poliéster e poliamida— liberadas em grandes quantidades após a lavagem doméstica

Outros 24% são provenientes de poeira das grandes cidades.

Não à toa, os microplásticos estão cada vez mais sendo encontrados no corpo humano. As pesquisas têm acendido alertas em cientistas, que se debruçam em estudos para entender:

Se estamos expostos a essas partículas e elas estão entre nós, quais as consequências da presença delas no nosso organismo?

"É um cenário bem complexo e assustador", afirma Rossana Soletti, professora de embriologia e história da ciência na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). "Hoje, é possível encontrar microplástico em praticamente todos os órgãos humanos. E o desafio da ciência é entender o que eles causam e se há algum impacto negativo para a saúde", explica.

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Toneladas à vista

Em 2016, o Fórum Econômico Mundial de Davos soltou uma previsão sombria: até 2050, os oceanos teriam, em peso, mais plásticos do que peixes.

Já a Unep (United Nations Environment Programme, ou Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) afirma que, hoje, podem existir até 199 milhões de toneladas de plástico nos oceanos.

Se pensarmos que cada unidade se transformará em milhares de micropedacinhos em algumas centenas de anos (os plásticos demoram, em média, 400 a 600 anos para se decompor na natureza), a quantidade de microplásticos presentes nos oceanos se torna gigantesca.

Um estudo, realizado na Austrália, atesta que, até 2019, havia mais de 170 trilhões (sim, com "t"!) de partículas plásticas flutuando pelos oceanos.

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Embora assustador, a quantidade está bem abaixo do volume de material plástico produzido e descartado pelo ser humano. "Esse dado intrigou os cientistas", afirma o biólogo e geocientista Marcelo Soares, professor do Instituto de Ciências do Mar da UFC (Universidade Federal do Ceará).

"A conclusão a que se chegou é de que essas partículas estão se acumulando como sedimentos no leito do oceano ou sendo consumidos e entrando na cadeia alimentar de organismos aquáticos", afirma.

O fenômeno, chamado de "missing plastic paradox" ("paradoxo do plástico desaparecido", em tradução livre), levou alguns especialistas a teorizarem se não estamos criando uma espécie de "ciclo do plástico" na Terra —semelhante ao ciclo do carbono, em que uma mesma molécula desse não metal é reciclada pela natureza e faz parte de ciclos geológicos e biológicos no meio ambiente e entre os seres vivos.

Atualmente, estima-se que existam cerca de 14 milhões de toneladas de plástico no fundo do mar —e o material chega até lá principalmente pela presença humana nas praias. É o que mostrou um estudo, realizado por Soares e outros pesquisadores de universidades brasileiras e internacionais, sobre os padrões de poluição plástica ao longo da costa do Brasil.

O trabalho, publicado em 2023 no periódico Science of the Total Environment, mostrou que as praias turísticas ou mais próximas de centros urbanos concentram as maiores taxas de poluição plástica. Os prejuízos não incluem apenas o acúmulo físico do resíduo em si —que pode prejudicar as formações de corais, por exemplo— como também para a vida de organismos como moluscos e crustáceos, que acabam ingerindo essas partículas como se fossem alimento.

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O caminho até nós

Uma vez que se torna alimento de algumas espécies animais, fica difícil parar o alcance dos microplásticos.

Nós estamos, literalmente, comendo essas partículas. Eles são engolidos por peixes, absorvidos pelas plantas e nós consumimos isso. É a sequência da cadeia alimentar. Danila Soares Caixeta, bióloga e professora do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso)

Caixeta lembra que, além da decomposição de peças maiores, outra forma importante de contaminação dos oceanos ocorre por meio da água dos rios, que carregam resíduos de esgoto industrial e doméstico. "As estações de tratamento que possuímos hoje não têm um sistema de filtragem que consiga reter essas partículas presentes no esgoto urbano", afirma.

Além dos plásticos maiores, fibras têxteis, microesferas cosméticas e partículas que se soltam de pneus (e incluem polímeros como o polibutadieno) estão entre os materiais que acabam nos rios com maior frequência em centros urbanos. No caminho para o mar, a contaminação por microplásticos ainda faz outra vítima: o solo, incluindo aquele utilizado para agricultura.

Ali, além de serem absorvidos por plantas que seguirão para o nosso prato, os microplásticos prejudicam o equilíbrio existente abaixo da terra ao alterar a densidade e até sua capacidade de reter água. "Tudo isso terá impacto na microbiota do solo, ou seja, nas bactérias que vivem ali, que irá perder sua diversidade", afirma o engenheiro ambiental Luís Fernando Amato Lourenço, pesquisador do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da USP e bolsista da Fapesp.

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Segundo ele, alguns vegetais, como determinados tubérculos, precisam da ajuda de bactérias para crescerem e se desenvolverem de forma plena. "Sem essas bactérias, a planta não se desenvolve tão bem ou não é capaz de reter tantos nutrientes", explica. Ou seja, além de estarmos comendo plástico, nós provavelmente também estamos produzindo alimentos com menor teor nutricional.

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Prejuízos à saúde não são claros

Não são poucos os estudos mostrando até onde os microplásticos podem chegar no corpo humano. Cérebro, pênis, placenta, pulmão e coração são só alguns dos locais em que eles foram descobertos.

A pergunta seguinte é óbvia: o que isso significa?

"Nós ainda não temos uma resposta", afirma Eliseth Leão, pesquisadora sênior do Hospital Israelita Albert Einstein e professora do Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo. "Já estabelecemos que os microplásticos têm a capacidade de entrar nos tecidos, nos órgãos, mas ainda precisamos de anos de mais dados para estabelecer a presença deles como causa de doenças", avalia.

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Os indícios mostrados pelos estudos que já existem, no entanto, não são otimistas. Um recente trabalho feito por pesquisadores do Novo México, por exemplo, mostrou que havia um grande acúmulo de microplástico —maior do que o considerado "normal"— no cérebro de pacientes que morreram em decorrência de Alzheimer. A pesquisa, que ainda está em fase pré-print (ou seja, não foi revisada por cientistas não ligados ao estudo) e feita com uma amostragem de dados pequena, não é considerada conclusiva.

Já outro estudo, publicado no The New England Journal of Medicine, conseguiu detectar a presença de microplásticos em placas de gordura que se acumulam em artérias (chamadas ateromas). A conclusão do estudo é de que esses indivíduos têm maior risco de sofrer infarto, AVC e morte.

No caso das análises que envolvem a fertilidade humana, um dos desafios é conseguir amostras para pesquisa. "No caso de embriões e fetos humanos, por exemplo, isso é quase impossível", afirma Rossana Soletti.

Por isso, diz ela, hoje muitas pesquisas são feitas utilizando modelos animais como camundongos, aves e peixes para entender o que a exposição aos microplásticos pode causar na reprodução deles. "Praticamente todos os estudos existentes, e são centenas, observam algum efeito", lamenta a pesquisadora. "Em quase todos, podemos ver alterações em enzimas ou genes, ou ainda pequenos defeitos na formação de embriões, que também se tornam menos viáveis", afirma.

O próximo desafio é saber se esses achados podem ocorrer de forma semelhante entre os humanos.

Outro grande problema dos microplásticos é que eles podem carregar outros contaminantes. "O plástico em si não é um material tóxico", afirma Cassiana Montagner, professora e pesquisadora do Departamento de Química Analítica do IQ-Unicamp (Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas).

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"O problema é o que eventualmente se grudou a ele depois e que pode se soltar a qualquer momento", afirma. Um exemplo disso são os metais pesados ou poluentes orgânicos que, mesmo banidos para uso há décadas, ainda persistem no meio ambiente.

Montagner cita ainda outro exemplo de químicos que podem prejudicar a saúde, a dos aditivos químicos utilizados para melhorar ou potencializar as aplicações dos polímeros em geral no nosso dia a dia. "Uma cadeira esbranquiçada, por exemplo, já degradou o suficiente para que parte do seu corante tenha se soltado", exemplifica. "É uma forma didática que usamos para mostrar que, assim como a tinta, outros compostos presentes nesse plástico também já podem ter se soltado", explica.

Nesse cenário, além dos possíveis efeitos da presença dos microplásticos, tem-se também os problemas que esses poluentes podem causar à saúde, como aumento da incidência de câncer e alterações endocrinológicas. "Mas não sabemos ainda qual a quantidade a qual devemos estar expostos para termos esses problemas", avalia a especialista.

O que podemos fazer para reverter?

Os especialistas entrevistados por VivaBem foram unânimes: a situação dos microplásticos é urgente e reduzir a produção e o consumo desse tipo de produto é a única forma de começar a resolver a questão. Atualmente, a Unep estima que sejam produzidos mais de 400 milhões de toneladas de resíduos plásticos anualmente no mundo.

"Estamos falando de toneladas e toneladas de plástico sendo despejadas na natureza todos os anos", afirma Montagner. "É uma quantidade muito além da capacidade que o meio ambiente tem de degradar esses materiais no tempo que eles levam para se decompor", aponta ela.

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Na prática, no entanto, a resposta está longe de ser tão simples. Isso porque o plástico é muitas vezes fabricado a partir do petróleo (ou seus subprodutos), o que significa que implementar mudanças culturais e políticas públicas para reduzir o consumo esbarraria nos interesses da indústria petrolífera, conhecida por movimentar muito dinheiro e por seu enorme poder de lobby mundo afora.

E até os plásticos biodegradáveis, como as sacolas feitas a partir da cana-de-açúcar, podem ser uma cilada. "Esse tipo de material pode ser biodegradável em uma condição de aterro, ou seja, vai se decompor mais rápido em uma situação específica, mas não no asfalto, por exemplo. E ainda pode gerar microplásticos", alerta Montagner.

Diante desse cenário, criar alternativas está se tornando cada vez mais urgente. Uma delas que vem sendo estudada é desenvolver polímeros mais sustentáveis e que não criem microplásticos ao se decompor.

Recentemente, pesquisadores da Universidade da Califórnia San Diego desenvolveram um tipo de plástico biodegradável a base de algas que se decompõe em menos de sete meses e não deixa microplásticos como resíduos. A descoberta foi publicada no periódico Scientific Reports, da Nature.

Outra alternativa é a já conhecida reciclagem, processo que tem limitações, como a quantidade de vezes que o plástico pode ser reciclado e reutilizado para garantir a mesma qualidade e confiabilidade do produto final.

Atualmente, estima-se que menos de 10% dos resíduos plásticos gerados no mundo passem por reciclagem.
"Alternativas são sempre bem-vindas, mas nada se compara a repensar o uso", afirma Montagner. Para ela, por muitos anos as pessoas pensaram apenas nas possibilidades que o plástico poderia trazer para a vida moderna e pouco se investiu no destino deles após esse uso.

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Agora que isso se tornou um problema sanitário, uma preocupação para a saúde humana, as pessoas estão enxergando com mais facilidade que o uso excessivo é um problema. Cassiana Montagner, professora e pesquisadora da Unicamp

Para Soletti, é necessário implementar políticas públicas e leis que regulamentem o uso de plástico na sociedade —especialmente os de uso único—, além de readequar nossos hábitos. "Não há mais como continuar usando o plástico nesse ritmo", acredita.

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