Ela teve ressacas fenomenais e apagões: 'Achei que não precisava de ajuda'
Hilda*, 28, cresceu em uma família em que o consumo de álcool é comum nos encontros de parentes. Ela tomou o primeiro gole aos 10 anos.
Pra mim, era natural que assim que pudesse começar, iria beber. Como sempre fui muito precoce —comecei a sair sozinha muito cedo também—, minha família permitiu que fosse a esses eventos e bebesse. Hilda
Até os 20 anos, o consumo era esporádico e em doses baixas. Se tomava duas ou três cervejas na sexta, ficava o sábado e o restante da semana sem álcool, cumprindo atividades diárias.
Mas as responsabilidades da vida começaram a sobrecarregá-la: já tinha saído de casa aos 17 anos, começado a faculdade, entrado no mercado de trabalho e iniciado um relacionamento. "Não sabia lidar muito bem, comecei a beber mais frequentemente e a quantidade começou a aumentar bastante", lembra.
Diagnosticada com transtorno de ansiedade, começou a fazer psicoterapia. Com crise depressiva profunda, foi indicada a tomar remédios psiquiátricos, mas continuou bebendo.
Hilda tem a sensação de que sempre experimentou instabilidade emocional, então o álcool tinha muitos papéis em sua vida: um paliativo para os transtornos mentais e uma forma de se sentir pertencida.
Sempre fui muito sozinha e tive a sensação de que não me encaixava na família, nos grupos sociais. O álcool veio como um impulsionador social, de sentir que pertencia a algo. Hilda
Um relatório da OMS diz que a relação entre uso de álcool e depressão ainda não é considerada causal, mas há evidências sobre o efeito do álcool na depressão e na ansiedade. Algumas pessoas também aumentam o consumo como forma de tratar transtornos mentais.
'Ressacas fenomenais'
As doses e a frequência aumentaram, as bebidas ficaram mais fortes. Hilda ficava mais tempo no bar e começou a beber durante a semana.
Comecei a faltar nas aulas por causa da ressaca e começou a descontrolar. Tinha ressacas fenomenais, de ficar dias na cama. Hilda
Em outras ocasiões, teve apagões: bebeu tanto a ponto de não ter consciência do que estava fazendo. Uma vez, acordou dentro do carro de um "cara estranho" e com flashes de memórias. "Ele me deixou perto de casa, fui buscar mais bebida, bebi a noite toda e tive outro apagão."
Naquele dia, ela não sabe como chegou em casa toda machucada. Depois de dormir, acordou com crise de pânico. "Fiquei uns 12 dias em pânico em casa sem saber o que estava acontecendo."
O consumo excessivo de álcool coloca em risco a saúde e a integridade física, sendo associado a doenças cardiovasculares, câncer, acidentes de trânsito, quedas, afogamentos e lesões intencionais ou não intencionais. Também há repercussões sociais, incluindo problemas familiares, no trabalho e financeiros.
Após a crise, Hilda ficou três meses sem beber, um período "torturante", porque continuava frequentando ambientes com bebida alcoólica. Mas voltou ao vício e teve outro apagão. "Achava que minha maneira de beber não era nada espetacular, que não precisava de ajuda", diz.
Tinha na cabeça que alcoólatra é aquele que está na sarjeta, miserável, que está pedindo dinheiro, sem casa, sem família, que não trabalha. Depois entendi que é uma doença progressiva e esse pode ser o final dela. Hilda
Busca por ajuda
No final de 2022, Hilda estava mudando de empresa e planejava morar sozinha, mas viu que o álcool prejudicava a vida financeira. "Tinha muita coisa para planejar e precisava estar com a mente centrada", diz. "Não ia conseguir fazer tudo se continuasse bebendo."
Decidiu, então, se isolar para se afastar do álcool, mas teve nova crise de pânico após um mês. Quando estava prestes a marcar de sair para beber, lembrou de um convite que havia recebido dois anos antes do então sogro para participar de uma reunião de AA (Alcoólicos Anônimos). Em 18 de março de 2023, ela foi a um encontro do grupo.
Ouvir os depoimentos era como ouvir a própria história, o que gerou identificação. "Olhava para aquelas pessoas arrumadas, alegres, gentis e falava: 'Não é possível que essa pessoa passou por isso'. Eles falam que é a doença do 'ainda': se você não perdeu o trabalho, a família, é capaz que ainda perca."
Hilda seguiu nas reuniões e entendeu a gravidade do problema, uma doença sem cura, mas com tratamento. O senso de pertencimento também criou uma estabilidade emocional na vida dela.
"Conforme você vai praticando, se identificando, acaba que sua vida vai mudando e fica bem difícil você pensar em beber", diz. Sem o álcool dominando sua vida e com novos objetivos, ela voltou a estudar, trabalhar e ter esperança.
"Não é fácil, mas fica mais valoroso. Existe um propósito ao redor de ficar abstêmio, não só de construir a vida que o álcool estava tirando, mas de servir. A vida passa a não ser só pra mim, mas de utilidade, porque estou servindo e ajudando a salvar vidas, como a minha foi salva."
Como tratar alcoolismo
O tratamento é feito por equipe multidisciplinar. Profissionais de psiquiatria, psicologia, enfermagem e educação física integram o cuidado, pois a doença tem múltiplos fatores e geralmente está associada a outros transtornos.
Não tem como tratar alcoolismo sem tratar depressão e ansiedade. O tratamento requer muita técnica motivacional e prevenção à recaída. Jaira Freixiela Adamczyk, psicóloga e mestre em tratamento e prevenção à dependência química
A TCC (terapia cognitivo comportamental) é eficaz. O manejo dá ferramentas para o paciente lidar com os processos de recaída e treina habilidades sociais.
Avaliação inicial vai definir o melhor tratamento. É preciso estabelecer vínculo terapêutico entre a pessoa e o profissional, com acolhimento empático, escuta ativa e quebra de estigmas para motivar a parar de beber.
Entrevistar a família também é importante. Ela sofre com a situação e precisa ser parte do tratamento, com a terapia de família sendo uma opção.
Profissionais devem estar atentos à necessidade de medicação. Psicoterapeutas, assistentes sociais ou enfermeiros, além dos grupos de ajuda mútua, precisam monitorar a necessidade de remédios ou internação, cuja prescrição é feita por médicos.
Impacto do álcool é desigual
Racismo, pobreza e desigualdade social histórica contribuem para que a população negra seja a mais atingida pelas mortes atribuídas ao uso de álcool no Brasil. Igualmente, os fatores dificultam a busca e o acesso a tratamentos. As informações são do estudo Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2024, divulgado pelo CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) no fim de agosto.
Segundo os dados mais recentes disponíveis, de 2022, a taxa de mortes relacionadas ao álcool entre pretos e pardos foi, respectivamente, de 10,4 e 10,3 por 100 mil habitantes. Entre as pessoas brancas, a taxa foi de 7,9. As mulheres pretas e pardas são as mais vulneráveis, com uma taxa de mortalidade de 3,2 e 2,2; a taxa entre brancas é de 1,4.
Internação clínica
O tratamento do alcoolismo pode ser ambulatorial, com consultas regulares e acompanhamento dos profissionais já citados, mas casos graves exigem estratégias diferentes.
Casos graves de dependência do álcool incluem:
Fissura intensa, que é o desejo incontrolável de beber;
Sintomas de abstinência quando para ou diminui o consumo, como coração acelerado, sudorese, tremor, convulsão e crise de hipertensão;
Mecanismo de tolerância, em que a pessoa acaba tomando uma quantidade cada vez maior de álcool.
Quando há situação de desejo incontrolável e sintomas de abstinência importante, a internação para desintoxicação pode ser avaliada e a gente sempre tenta fazer de forma voluntária, para ser menos traumático e ter resultado exitoso no final. Helder Gomes, psiquiatra do Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto, no Ceará
Adamczyk reforça que a internação é uma forma de proteger a pessoa que não consegue parar de beber —e, portanto, tem dificuldade de seguir o tratamento. Com mais de 20 anos de experiência em clínicas de internação, ela já viu pessoas chegarem já tendo sofrido acidentes e outras perdas devido ao álcool.
O modelo de trabalho nesses espaços também é baseado nos princípios de Alcoólicos Anônimos, com assistência profissional. Os pacientes participam de grupos de apoio, leituras e seminários sobre a doença, prevenção à recaída e atividades que resgatam habilidades sociais e corporais.
Em casos mais graves, a internação é involuntária quando a pessoa perde o juízo da realidade. "Ela pode ficar em quadro alucinatório ou abstinência grave, com alterações cognitivas e psicóticas", explica Gomes. Mas são cenários menos comuns.
Medicamentos para tratar alcoolismo
Podem ser usados dentro ou fora da internação. Há remédios que diminuem o desejo de consumir álcool e outros que amenizam os sintomas da crise de abstinência.
Reposição de vitamina B1 às vezes é necessária. Pessoas com quadro mais crônico podem ter déficit do nutriente e apresentar sintomas neuropsiquiátricos.
Remédios não devem ser usados com álcool. Mas, se isso ocorrer, o psiquiatra diz que não há reação específica que coloque em risco a integridade do paciente. Algumas pessoas relatam que, durante o uso de medicamentos, a bebida alcoólica causa menos prazer.
Grupos de ajuda mútua dão resultados
"Conheço pacientes que nunca internaram, nunca tomaram remédio e estão abstêmios há mais de 20 anos", diz Adamczyk. Alguns não têm desejo ou perfil para participar de grupos de ajuda mútua, mas quando há vínculo, os índices de recaída são baixos.
Quem voluntariamente busca suporte para parar de beber encontra nos grupos um espaço de pertencimento e identificação. "A riqueza do grupo é a troca de experiência de vida, que brota no paciente a esperança de que existe ajuda", diz a psicóloga.
Lívia Pires Guimarães, presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos do Brasil, diz que o AA se define como "uma irmandade de pessoas que compartilham entre si suas experiências, força e esperança com o propósito de se manterem sóbrias e ajudar outras pessoas a alcançar a sobriedade". Entidade atua no Brasil há 77 anos.
Embora não haja equipes profissionais, a irmandade reconhece o alcoolismo como doença e a importância do tratamento especializado. Por isso, os participantes são orientados a indicar ajuda clínica aos novos membros.
Para os fundadores, o alcoolismo transcende o ato de beber, por isso a irmandade é regida por 36 princípios, divididos em 12 tradições, 12 conceitos e 12 passos, que orientam os grupos e indicam caminhos para a sobriedade. Tudo é sugerido, nada é imposto.
"O AA propõe rever, encontrar e desenvolver uma nova forma de se ver, de ver o outro e dialogar com mundo. A partir daí, a pessoa perde a vontade de beber, porque não encontra sentido e significado em beber", explica Guimarães.
No Brasil, a irmandade tem cerca de 4.000 grupos que fazem, ao todo, 8.740 reuniões por semana. Desses, 91 realizam 437 reuniões online semanalmente. O número de membros varia, bem como a frequência dos encontros, cuja decisão é coletiva.
Os princípios de AA envolvem:
- Ter o desejo de parar de beber como único requisito para ser membro;
- Acolher o recém-chegado ao grupo como a pessoa mais importante do dia;
- Manter o anonimato, tanto que não é preciso preencher qualquer ficha nem falar o nome nas reuniões;
- Ser um grupo autossuficiente, então não há cobrança de taxas ou mensalidades, nem são aceitas doações de não membros. A decisão de sustentar o grupo é voluntária;
- Não ter uma figura de governo. As lideranças que coordenam as reuniões são escolhidas coletivamente e há princípio de rotatividade, para que a pessoa não incorpore senso de governo.
*Nome fictício para manter o anonimato
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